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Regime militar

O que o governo Bolsonaro fez para acabar com a ‘bolsa-ditadura’

Tanque do Exército nas proximidades da casa do presidente deposto, João Goulart, nas Laranjeiras, no dia do golpe de 1964. (Foto: Estadão Conteúdo/Arquivo)

Jair Bolsonaro (PSL) é o primeiro presidente da República após a redemocratização que é abertamente simpático ao regime militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Um tema recorrente de suas falas, ainda como deputado federal e na época de candidato a presidente, era a da crítica a indenizações pagas supostamente de modo errôneo a vítimas do período de exceção. As verbas foram apelidadas por ele e seus apoiadores de "bolsa-ditadura".

E as primeiras semanas de seu governo sugeriam que, de fato, a linha-dura na concessão a anistia passaria a valer. A gestão das indenizações passou ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves – que logo em suas primeiras declarações sobre o tema, indicou que poderia negar um pedido de pensão feito pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT). No Congresso, colegas de partido de Bolsonaro também buscavam apertar o cerco ao que chamaram de "indústria das indenizações".

Do começo da gestão até os dias atuais, as ações do Legislativo não prosperaram. Mas o governo promoveu algumas alterações em comissões que lidam com o assunto e em outras legislações relacionadas ao tema. Houve também negativas a pedidos de indenização que ganharam repercussão – e também "fake news".

As medidas do governo motivaram críticas dos partidos de oposição e também de organismos internacionais, que disseram ver retrocesso na política brasileira sobre o assunto.

'Bolsa-ditadura' é caixa-preta para o governo

"Ministra Damares cancela pagamento de 2000 anistiados, entre eles FHC, Lula, Chico Buarque, Gilberto Gil. A farra acabou!". Uma mensagem com a frase acima, acompanhada de uma foto da ministra e dos dizeres "Tchau, queridos", começou a circular pelas redes sociais em meados de fevereiro. A "notícia" fez sucesso entre bolsonaristas, que celebravam o fato de que, com a medida, os cofres públicos passariam a ter menos despesas.

A postagem, entretanto, é um boato. O Ministério dos Direitos Humanos não chegou a cancelar o pagamento de benefícios que já estão sendo concedidos. Por outro lado, ao longo deste semestre uma série de pedidos de indenização foram negados.

Um bloco dessas negativas foi apresentado em 2 de maio. Damares vetou, na ocasião, a concessão a 101 pedidos de indenização, que recorriam de negativas feitas em gestões anteriores. “Em todos os casos, os requerentes haviam entrado com recurso sem apresentar algum fator relevante. Em resumo, não trouxeram nada novo”, afirmou à época Damares, ao site do ministério.

Nesta quarta (24) e quinta-feiras (25), o Conselho da Comissão de Anistia, órgão ligado ao ministério de Damares, vai analisar outros 105 processos. Na lista não estão os pedidos feitos pelos ex-presidentes Dilma e Lula – embora Damares tenha dito, em março, que daria uma resposta às solicitações "em dois meses".

A ministra repete, para as pensões de anistiados, um discurso adotado pelo governo em relação a outros segmentos: o de que há uma "caixa-preta". Damares falou em diferentes oportunidades que os critérios estabelecidos pelas gestões anteriores para o pagamento de indenizações não são claros e que recursos públicos podem estar sendo destinados a quem não merece recebê-los.

Comissão polêmica: da composição ao presidente

Os pedidos de indenização são julgados pela Comissão de Anistia. E a alteração na composição do colegiado talvez tenha sido a maior modificação feita pelo governo Bolsonaro, até o momento, em relação aos assuntos ligados ao regime militar.

A primeira modificação foi a de transferir a Comissão do Ministério da Justiça, onde historicamente esteve vinculada, para o Ministério dos Direitos Humanos. E a mais recente veio em março, quando o grupo teve sua composição ampliada de 20 para 27 integrantes.

O aumento de membros não foi a modificação de maior repercussão: a decisão mais controversa foi a de indicar o advogado João Henrique Nascimento de Freitas para presidir o órgão. Freitas é simpatizante de Bolsonaro e trabalhou por muito tempo com o hoje senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, quando o parlamentar era deputado estadual no Rio de Janeiro. Além disso, o advogado tem um histórico de críticas públicas a decisões da Comissão de Anistia e foi um dos autores de um pedido para a suspensão do pagamento da pensão aos familiares do ex-militar Carlos Lamarca, que lutou contra o regime militar.

As alterações despertaram reação em órgãos da sociedade civil e no Ministério Público. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), pertencente ao órgão, encaminhou um ofício a Damares pedindo a revogação da portaria que efetivou a mudança na Comissão, dizendo que entre os novos membros havia pessoas "com atuação judicial contrária à concessão de reparação, a atos da Comissão de Anistia e do Ministro da Justiça e à instauração da Comissão Nacional da Verdade".

Apesar dos protestos, o colegiado seguiu com sua formação. E a ministra Damares seguiu as críticas aos governos anteriores ao dizer que a Comissão de Anistia "fugiu de sua finalidade".

Em audiência na Câmara em 22 de maio, a ministra expôs aos parlamentares uma compra que o colegiado fez de um HD externo, no valor de R$ 7 milhões. Ela também comentou sobre as obras do Memorial da Anistia, que foram alvo, em 2017, de uma operação de Polícia Federal, Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria-Geral da União (CGU) por supostos desvios de verbas. Os valores desviados seriam de R$ 3,8 milhões.

Identificação de ossadas sob suspense

Fora do âmbito do Ministério dos Direitos Humanos, outra decisão tomada pelo governo Bolsonaro que teve relação com a memória do regime militar foi a de extinguir colegiados ligados à administração pública federal.

A medida criou a possibilidade de encerramento do Grupo de Trabalho de Perus (GTP), que estuda 1.047 ossadas achadas em um cemitério na Zona Oeste da cidade de São Paulo. Estima-se que parte dessas ossadas sejam de corpos de vítimas do regime militar. O grupo é formado, entre outras instituições, por integrantes do Ministério dos Direitos Humanos e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. As ossadas de Perus foram encontradas em 1990, cinco anos após o fim do regime militar.

A possível extinção do grupo gerou reações de entidades como o grupo Tortura Nunca Mais e a Anistia Internacional. Mas à Gazeta do Povo, o Ministério dos Direitos Humanos negou a possibilidade e disse que "está sendo feito um novo acordo de cooperação técnica" entre a pasta e outras entidades ligadas ao GTP.

Comemoração do golpe de 1964

Além das medidas práticas, o governo Bolsonaro fez, até agora, algumas sinalizações em relação ao regime militar que foram na mão oposta do realizado pelas gestões anteriores e que contrariaram diferentes segmentos da sociedade.

Uma dessas medidas foi uma ordem emitida por Bolsonaro, depois retirada, para que as Forças Armadas fizessem comemorações públicas em 31 de março, data do aniversário do golpe de 1964. E mesmo sem as comemorações públicas, o Palácio do Planalto chegou a divulgar um vídeo favorável ao golpe.

A peça trazia um homem declamando um texto dizendo que o Brasil vivia um período de "medo" até que o Exército assumiu o poder. "A bandeira verde e amarela voltou a triunfar e o medo deu lugar à confiança no futuro. O Exército nos salvou", cita o texto. Posteriormente, o agora ex-ministro Santos Cruz, à época titular da Secretaria de Governo, falou que o vídeo havia sido divulgado "por engano".

'Bolsa-ditadura': e no Congresso, o que está sendo feito?

A tendência de se rever as pensões pagas a vítimas da ditadura e outras medidas de reparação aos danos causados pelo regime militar foi também defendida pelos então novos deputados federais e senadores, no começo do ano. Tanto na Câmara quanto no Senado iniciativas foram apresentadas nesse sentido.

A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) protocolou um pedido para abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que avaliasse os trabalhos da Comissão da Verdade, que funcionou entre 2011 e 2014. Segundo a deputada, o grupo olhou "apenas um lado" da história e não analisou possíveis violações cometidas por militantes de esquerda. O pedido da parlamentar não alcançou o número mínimo de assinaturas e acabou engavetado.

Já no Senado uma requisição de CPI foi apresentada pelo senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), mas com foco nas indenizações pagas pelo governo. "Ninguém está questionando o direito à anistia, ninguém está questionando um período histórico. Estamos questionando os critérios, a forma como está sendo pago", disse o parlamentar em fevereiro, quando o pedido foi apresentado.

A solicitação da CPI mencionava expressamente os ex-presidentes Lula e Dilma, mas o senador negava motivação partidária na investigação. Apesar de o pedido ter obtido as assinaturas suficientes, a CPI não foi instalada.

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