O Senado está prestes a votar o projeto de lei complementar que relaxa a Lei da Ficha Limpa. Na pauta do plenário desta quarta-feira (9), o PLP 192/2023 propõe unificar o prazo de inelegibilidade em oito anos para casos de condenação judicial, cassação ou renúncia.
O texto, contudo, enfrenta resistência de governistas devido a um ponto controverso que, acreditam, pode abrir uma brecha jurídica capaz de tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) novamente elegível, em tempo para se candidatar nas eleições presidenciais de 2026.
Entre outras alterações na legislação eleitoral, o texto propõe alteração na alínea “d” do artigo 1º da Lei Complementar 64/1990 (Lei das Inelegibilidades), que determina a inelegibilidade por abuso de poder político - como no caso do ex-presidente -, para que passe a exigir "comportamentos graves que possam resultar em cassação". Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo reconhecem que a especulação vem dessa mudança, pois Bolsonaro não teve o seu mandato cassado.
O debate do projeto em plenário começou em 3 de setembro, mas foi suspenso a pedido de senadores, tanto contrários quanto favoráveis, para analisar questões mais sensíveis. Aprovado pela Câmara, o texto recebeu no Senado parecer favorável do relator, Weverton Rocha (PDT-MA).
Márlon Reis, um dos criadores da Lei da Ficha Limpa, alertou sobre a possibilidade de o projeto atual beneficiar Bolsonaro ao afirmar que a inelegibilidade só ocorre em casos que envolvem cassação de registro ou diploma, que não é o caso do ex-presidente.
Neste sentido, o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) propôs uma emenda ao texto para garantir que candidatos condenados por abuso de poder econômico ou político permaneçam inelegíveis, mesmo que não tenham sido eleitos.
Projeto define data para começar a inelegibilidade, com duração de oito anos
O PLP 62/2023 estabelece que os oito anos de inelegibilidade devem ser contados a partir dos seguintes marcos: decisão judicial que leva à perda do mandato; eleição em que o abuso de poder foi cometido; condenação por um órgão colegiado; ou renúncia ao cargo. Hoje é levado em conta para iniciar o impedimento a data de cumprimento da pena. A lei atual considera inelegíveis os condenados por abuso de poder nas eleições em que participaram e por mais oito anos.
Weverton Rocha destacou que o projeto não atende apenas a interesses políticos e lembrou que a Constituição atribui ao Congresso a responsabilidade de legislar sobre inelegibilidade e seus prazos. "Esse projeto corrige, assim como no Código Penal e em outras leis brasileiras, a questão de que quem erra deve pagar sua pena, mas precisa haver um prazo para isso. Ninguém pode ficar punido indefinidamente", disse o senador.
A professora de Direito Constitucional Vera Chemin acredita que há uma chance de o ex-presidente viabilizar candidatura em 2026 com a aprovação da reforma da ficha limpa, a depender de outros fatores. Embora Bolsonaro não tenha sido cassado, perdeu parte de seus direitos políticos com a condenação do TSE. Se surgirem novas condenações de efeito semelhante, a sua inelegibilidade poderá ir além dos atuais oito anos, conforme do PLP 192/2023.
Segundo a jurista, a possibilidade de Bolsonaro concorrer à Presidência dependerá da natureza dos crimes que lhe forem imputados e da interpretação sobre se estes estão relacionados aos atos que provocaram sua inelegibilidade, declarada pela Justiça Eleitoral. “Em caso positivo, continuaria inelegível por pelo menos 12 anos”, afirma.
Flávio Bolsonaro acusa governo de barrar votação de projeto com especulações
Na última sessão de debate sobre o projeto, o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) defendeu a mudança por corrigir “pontuais injustiças” da Lei da Ficha Limpa, quando usada de maneira mal-intencionada.
“Há casos de inelegibilidade não decorrentes de uma condenação criminal, mas de outra espécie de julgamento”, sublinhou, dando como exemplo a cassação do ex-deputado Deltan Dallagnol (Novo-PR), “sob um argumento que não convence”.
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) defendeu a aprovação do projeto e criticou a estratégia dos líderes governistas de retardar a votação com especulações em torno do suposto favorecimento ao ex-presidente. Ele negou essa possibilidade e lamentou a postura da base do governo.
Condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder político nas eleições de 2022, quando se reuniu com embaixadores para avaliar o processo eleitoral, Bolsonaro tornou-se inelegível até 2030. Bolsonaro também foi condenado pelo uso eleitoral das comemorações do Bicentenário da Independência, em 7 de setembro de 2022. Mas, em ambos os casos, não houve cassação.
Os que questionam o risco de Bolsonaro contestar a inelegibilidade a partir da aprovação do projeto argumentam que a gravidade da sua condenação permanece, sem possibilidade de a alteração legal afetar a situação dele. De toda forma, a reversão da inelegibilidade não ocorreria automaticamente. A defesa de Bolsonaro precisaria encaminhar um pedido ao TSE para avaliar a situação conforme as novas regras.
Segundo o consultor do Senado Arlindo Fernandes de Oliveira, nada modifica o cenário para Bolsonaro. “Ao declarar a inelegibilidade do ex-presidente, o TSE afirmou que sua conduta resultaria na cassação do registro. O tribunal só não cassou o registro do candidato porque não havia registro a ser cassado, uma vez que não foi reeleito”, disse.
Relator governista descarta tese de favorecimento a Bolsonaro e outros
Criticado por alguns companheiros da bancada governista do Senado, o relator, Weverton Rocha, também descartou qualquer favorecimento. Ele disse que o ex-presidente foi condenado pelo TSE em duas ações por abuso de poder político, uso indevido da mídia e conduta vedada a agente público. “Ambas as decisões determinaram a inelegibilidade por oito anos após as eleições de 2022”, frisou. Segundo o senador governista, o fato de o registro não ter sido cassado ocorreu somente porque o ex-presidente não foi eleito.
Outros, contudo, evocam o princípio de benefício retroativo da mudança. Para esses, como o projeto vale para casos de inelegibilidade já definidos e não só para as próximas condenações, ajudaria a derrubar a inelegibilidade de Bolsonaro. O próprio ex-presidente tem dito, sem falar explicitamente sobre o projeto, que "algo ainda pode acontecer" para restaurar seus direitos políticos. Também seriam beneficiados o ex-deputado Eduardo Cunha (Republicanos-RJ), o ex-governador Anthony Garotinho (Republicanos-RJ) e o ex-governador Roberto Arruda (PL-DF).
Críticos apontam risco de o projeto enfraquecer o combate à corrupção
Para Adib Abdouni, advogado constitucionalista e criminalista, o projeto, sob o pretexto de promover ajustes na legislação eleitoral, representa um retrocesso nos dispositivos da Lei da Ficha Limpa, originada por iniciativa popular. Ele argumenta que a proposta permitiria a revisão da elegibilidade de pessoas já condenadas, aplicando as mudanças de forma imediata, inclusive para casos passados.
Abdouni também ressalta que o texto parece casuístico, beneficiando algumas pessoas ao facilitar seu retorno ao cenário eleitoral, em prejuízo da probidade administrativa e da moralidade no exercício do mandato, considerando o histórico dos candidatos.
Em nota, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) classificou o projeto como “grave retrocesso” por "desfigurar o combate à corrupção" trazido pela Ficha Limpa, beneficiando condenados por crimes graves ao reduzir ou anular a sua inelegibilidade.
O Instituto Não Aceito Corrupção também divulgou nota condenando o PLP 192/2024 por "enfraquecer brutalmente a Lei da Ficha Limpa", que ao longo de 14 anos "barrou "candidaturas indesejáveis à luz da prevalência do interesse público". A entidade liderada pelo advogado Roberto Livianu reclama ainda da ausência de debate democrático em torno da proposta tanto na Câmara quanto no Senado.
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