A Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (19), para suspender um artigo do Regimento Interno da própria Corte que permite abrir investigações de ofício, sem passar pela Procuradoria-Geral da República (PGR), como é o caso do inquérito das fake news. O presidente Jair Bolsonaro passou a ser investigado nesse inquérito após colocar em dúvida o sistema eletrônico de votação sem apresentar provas em live transmitida pela TV Brasil.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é assinada pelo ministro-chefe da pasta, Bruno Bianco, e por Bolsonaro. A ação pede a suspensão liminar do texto até o julgamento definitivo do tema no plenário do tribunal. A argumentação cita que o artigo viola preceitos fundamentais, como os princípios acusatório, da vedação de juízo de exceção e da segurança jurídica.
O artigo referido é o de número 43 do regimento interno da Corte. O texto cita que "ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente [do STF] instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição". O dispositivo foi utilizado para a abertura, em 2019, do inquérito das "fake news" sem pedir manifestação ao Ministério Público Federal.
O uso do artigo nesse sentido fere o princípio acusatório, consagrado na Justiça brasileira, que trabalha com a separação entre órgãos que podem solicitar a abertura de investigações e eventualmente denúncias (Ministério Público) e outro que realiza o julgamento (Poder Judiciário). O inquérito das fake news, por exemplo, é questionado no mundo jurídico por sua arbitrariedade, já que o STF estaria atuando como juiz, vítima e acusador de um julgamento ao mesmo tempo.
“É preciso encontrar um ponto de equilíbrio reflexivo entre sistema acusatório, devido processo e defesa das instituições, sob pena de, no pretexto de uma legítima defesa de prerrogativas, naturalizar-se o exercício arbitrário das próprias razões”, aponta a ação.
Bolsonaro sinaliza com diálogo
A apresentação da ação foi o ato final de um dia em que Bolsonaro sinalizou diálogo com Legislativo e Judiciário. Em um discurso em Cuiabá, Bolsonaro chegou a dizer que estava aberto a conversar com os ministros Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, do STF. Um avanço e tanto para quem havia prometido, no último sábado (14), entrar com um pedido de impeachment contra ambos.
A declaração de paz do presidente da República aconteceu um dia depois de o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, se reunir a portas fechadas com o presidente do STF, Luiz Fux. Foi um gesto para reabrir um diálogo interrompido por causa do embate do voto impresso na Câmara. Ainda na quarta, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), também conversou com Fux, destacando a importância de se reconstruir pontes entre os poderes.
Em um sinal de boa vontade nesta quinta, Pacheco deu encaminhamento às indicações do presidente da República ao STF, André Mendonça, e à PGR, Augusto Aras. Até quarta-feira (18), senadores ouvidos pela Gazeta do Povo afirmavam e endossavam a leitura de que, em decorrência do clima político, Pacheco e Bolsonaro haviam se distanciado e isso tornava incerto quando o Senado sabatinaria André Mendonça para o STF e Augusto Aras em sua recondução à PGR.
A ideia de Bolsonaro de entrar com um pedido de impeachment contra Barroso e Moraes gerou desconforto em Pacheco e alguns senadores. Ao ponto de aliados e conselheiros sugerirem ao presidente da República que desistisse da ideia. Ao que parece, Bolsonaro concordou, em parte. Segundo o jornal O Globo, a ação encampada para mudar o Regimento Interno do STF foi apresentada como uma alternativa para Bolsonaro se convencer de adiar o pedido de impeachment contra os ministros da Corte.
Impeachment de Moraes e Barroso não prosperaria no Senado
O pedido de impeachment contra Moraes e Barroso já era dado como natimorto no Senado. Ainda na quarta-feira, a leitura feita pela base governista era de que o presidente da República não daria continuidade a essa pauta.
"Acho que não segue com isso, não vai tocar esse assunto. Isso caberia a nós, parlamentares. Eu mesmo já fiz pedido de CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito], de impeachment e convocação [de ministros do STF], e a gente não consegue sustentar isso no Senado", disse Luiz Carlos Heinze (RS), que é segundo-vice-líder do PP.
O gesto de Pacheco em destravar os trâmites da indicação de Mendonça e dar prosseguimento à sabatina de Aras, marcada para a próxima terça-feira (24), também é sinal de que a ameaça de impeachment contra ministros do STF ficou para trás.
Para senadores, o presidente da Casa agiu como um diplomata ao tomar a iniciativa e sinalizar ao presidente da República o desejo de colocar um fim à tensão entre os poderes.
Como ficam as sabatinas de Aras e Mendonça no Senado agora
A aposta feita pela base governista é que o governo conseguirá aprovar a recondução de Aras e a indicação de Mendonça sem grandes problemas. Senadores independentes e de oposição entendem, contudo, que a votação de Aras pode ser mais apertada do que sua primeira, enquanto a do ex-ministro da Advocacia-Geral da União (AGU) também pode ser apertada. Mas não descartam a aprovação.
Mesmo a tensão entre poderes estando recente e fresca na memória dos senadores, o líder do PSDB, Izalci Lucas (DF), acredita que o clima político não contaminará ambas as indicações. "Independente do presidente [Bolsonaro], são indicações que não terão dificuldades [de aprovação]. Aras conversa com todo mundo, comigo também, tem lá suas explicações de tudo o que é questionado e acho que não terá nenhuma retaliação do presidente", pondera.
Tanto Aras quanto Mendonça vem trabalhando pessoalmente junto a senadores por sua aprovação. Izalci é um dos que admite ter sido procurado. "Tanto um quanto o outro têm trabalhado aqui, apesar do governo. O André [Mendonça] não está vindo só porque foi indicado pelo presidente. Ele tem, realmente, o carinho de muitos senadores. Eu mesmo gosto dele, é pessoa competente, ponderada", avalia.
Diferentemente de Mendonça, que já se articula há mais tempo, Aras começou os diálogos com senadores "agora", mais recentemente, explica Izalci. "Mas acho que não terá grandes problemas", reforça o líder do PSDB no Senado. Ele admite que Aras será cobrado pela omissão em posicionamentos a temas relacionados a Bolsonaro, mas entende que isso não impedirá sua aprovação.
"Se a cada fala do presidente ele for se manifestar, aí vai ficar por conta disso. E o Brasil tem outras coisas a cuidar, não dá para cuidar só do que o presidente fala. Aras está focado naquilo que é importante, o que é relevante, ele está cuidando", analisa Izalci.
Como atuam os "bombeiros" na crise entre os poderes
Desde o fim de semana, quando o presidente da República ameaçou encaminhar ao Senado o pedido de impeachment contra Barroso e Moraes, a base governista procurou demover tal ideia sustentando que isso provocaria um desgaste à toa, uma vez que o Senado não discutiria o requerimento.
A base de Bolsonaro até deixou clara a avaliação de que ele não precisaria "abaixar a cabeça" a Barroso e Moraes e recuar em tudo o que disse. Mas que moderar o tom e buscar uma fala mais conciliatória seria o ideal. Foi a linha adotada pelo presidente da República nesta quinta.
“A minha voz vai continuar sendo usada. Não estou atacando ninguém, nenhuma instituição. Algumas poucas pessoas estão turvando as águas do Brasil. Quero paz, quero tranquilidade. Converso com o senhor Alexandre de Moraes, se quiser conversar comigo. Converso com o senhor Barroso, se quiser conversar comigo", disse Bolsonaro. "Ele fala o que ele acha que está certo, eu falo o que acho que está para o lado de cá. E vamos chegar num acordo”, comentou, em evento em Cuiabá (MT).
Já senadores aliados de Pacheco também atuaram para defender que ele procurasse um diálogo direto com Bolsonaro. A ideia era que o presidente do Congresso falasse o que pensa sobre o impeachment dos ministros do STF, ainda que deixando claro que a proposta não o agrada pessoalmente e só estremeceria mais a relação entre poderes.
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