O ano de 2020 marca o encerramento da Década de Ação pela Segurança no Trânsito da Organização das Nações Unidas (ONU). No projeto, governos de todo o mundo, incluindo Brasil, se comprometeram a adotar medidas para prevenir os acidentes no trânsito, que matam cerca de 1,25 milhão de pessoas por ano. A proposta faz parte das ações da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que reconhece a segurança no trânsito como um pré-requisito para assegurar vidas saudáveis e tornar as cidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis.
O prazo para alcançar as metas ambiciosas de redução da violência no trânsito está chegando ao fim e o país ainda deixa muito a desejar. No entanto, logo em seus primeiros meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) trouxe iniciativas polêmicas em relação a políticas de trânsito. A primeira delas foi anunciada em seu perfil no Twitter, no início de fevereiro, quando disse que o Ministério da Infraestrutura tomaria medidas de "desburocratização" que incluiriam a ampliação da validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), indo de cinco para dez anos. Nas semanas seguintes, o presidente também determinou o cancelamento da instalação de oito mil radares em rodovias federais e informou que pretendia dobrar o limite de pontos por infrações de trânsito, indo de 20 para 40.
Alterações quanto à validade e o limite de pontos da CNH dependem de mudanças no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Portanto, precisam ser feitas por meio de projeto de lei aprovado na Câmara e no Senado. O caso dos radares seria menos burocrático: a decisão do presidente pela suspensão da instalação dos equipamentos foi imediata.
O objetivo da maior parte dos 8 mil novos radares seria substituir equipamentos que atualmente estão inativos porque os contratos com as concessionárias venceram e novos prestadores de serviço não foram admitidos. "Sabemos que a grande maioria destes tem o único intuito de retomo financeiro ao Estado", escreveu o presidente, acrescentando que todos os contratos de radares seriam revisados para verificar "a real necessidade de sua existência para que não sobrem dúvidas do enriquecimento de poucos em detrimento da paz do motorista".
"Se o próprio governo desconfia que há radares instalados em função de contratos que não seguiram padrões técnicos, é claro que isso tem que ser revisto", opina o engenheiro especialista multidisciplinar em trânsito Celso Mariano. "Mas não há nenhum registro conhecido de uma falha técnica de, por exemplo, em um trecho que o limite de velocidade é de 60 km/h, o radar multar a partir de 55 km/h. Isso, sim, seria uma armadilha."
Em reação à declaração de Bolsonaro, no último dia 10 de abril a juíza Diana Vanderlei, da 5ª Vara Federal em Brasília, proibiu a retirada de radares de velocidade das rodovias federais de todo o país e ordenou que o contrato com as concessionárias seja renovado. O posicionamento da juíza respondia a um pedido de liminar feito pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES), mas a decisão não é definitiva e cabe recurso.
"Se precisa de estudo técnico para o radar estar lá, é óbvio que precisa de estudo técnico para dizer que ele não precisa estar lá", enfatiza Mariano. "Falta-nos a maturidade de tratar o trânsito como o problema social gravíssimo que ele é. E isso é reflexo de descompromisso da gestão pública."
Na prática, tanto as propostas de alteração no CTB quanto o posicionamento do governo federal a respeito dos radares representam um afrouxamento na fiscalização de trânsito, o que pode levar a mais acidentes. "O Brasil tem uma legislação que guarda excelente iniciativas para a segurança no trânsito, mas peca na execução dela", afirma a coordenadora do grupo de pesquisa Trânsito e Transporte Sustentável, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Alessandra Bianchi.
A professora não consegue ver mudanças propostas para a pontuação da CNH como algo positivo. "E mais: eu acho que é uma falácia muito grande quando as pessoas falam em indústria da multa, porque é muito fácil levar essa indústria à falência. Basta não fazer as coisas erradas no trânsito", pontua. "E eu não estou dizendo que [o sistema] seja perfeito. Eventualmente, o agente de trânsito também erra." Ela aponta, no entanto, para a gravidade das infrações que levam à perda da carteira, como furar o sinal vermelho ou exceder o limite de velocidade. "Nós precisamos, sim, que os condutores tomem mais consciência e dirijam de forma mais segura."
Muito se fala em educação para o trânsito como a solução para reduzir a violência, mas a conscientização de que nossas ações no trânsito interferem e impactam a vida de outras pessoas e do coletivo não é o suficiente. "A educação pode muito, mas não pode tudo", opina o consultor de segurança no trânsito da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) Victor Pavarino. "Se estamos falando de ações coordenadas de engenharia e fiscalização, isso implica que elas são parte complementar do conjunto de esforços. Se prevalece a impunidade, ou sua sensação 'térmica', e faltam condições materiais para o comportamento seguro – a exemplo de boas calçadas, ruas que limitem as velocidades –, o discurso educativo se esvazia.”
Alessandra concorda. "Se nós queremos parar de matar as pessoas no trânsito como um país, nós vamos ter que investir também em fiscalização", afirma. "Em outros âmbitos, como na família, nós educamos e monitoramos. No trânsito nós temos tido muita dificuldade em entender que fiscalizar também faz parte da educação. Não basta dar a regra: é preciso fiscalizar se essa regra está sendo cumprida e, eventualmente, punir aquelas pessoas que não estão a cumprindo para que o sistema possa funcionar de uma forma mais segura."
Mortes em estradas federais caíram 25%. E radares ajudaram, diz Dnit
Segundo o Ministério da Saúde, entre 2010 a 2016, houve redução de 12% nas mortes no trânsito, passando de 42.244 para 37.345. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) aponta que os radares contribuíram para a queda de 24,7% no número de mortes nas rodovias federais entre 2010 e 2016 – de 7.083 para 5.333 mortes por ano. O compromisso firmado na Década de Ação pela Segurança no Trânsito da ONU é de reduzir as mortes no trânsito em 50% até 2020, não ultrapassando 19 mil vítimas fatais por ano.
"Em nível mundial, os principais fatores de risco a serem considerados na criação de uma legislação apropriada são a direção sob influência do álcool, o excesso de velocidade, o não uso de capacete para motociclistas e os mecanismos de retenção para adultos e crianças. O Brasil atende a todos esses critérios recomendados por nós, menos o que diz respeito à velocidade", explica Pavarino. "O país atendeu à demanda da autonomia, que permite às autoridades locais reduzir os limites de velocidade das vias. No entanto, apesar dessa autonomia, ainda não atende aos quesitos de limites de velocidade de no máximo 50 km/h em vias urbanas."
Dinheiro gasto com feridos no trânsito faz falta em outros tratamentos
Quando se fala em trânsito é fácil pensar apenas na questão da engenharia e infraestrutura – como condições de estradas, sinalização adequada e qualidade do asfalto. A segurança no trânsito, porém, está diretamente vinculada à saúde pública. Acidentes no trânsito são a nona causa de mortes no mundo e, de acordo com a OMS, o Brasil é o quinto colocado entre os países recordistas em mortes no trânsito. Ainda segundo o órgão, em 2015 os gastos relacionados à violência no trânsito foram equivalentes a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
"Nos fins de semana, a gente vê os leitos de prontos socorros absolutamente lotados por acidentados no trânsito", ressalta Mariano. Como qualquer outro aspecto da saúde pública brasileira, vale a lógica do cobertor curto: não há dinheiro o suficiente para cobrir todas as despesas e, quando tira-se de um lugar, falta em outro. Assim, as macas, remédios e médicos alocados para cuidar dos 380 mil brasileiros feridas gravemente pelo trânsito todos os anos não estão sendo usados para outros tratamentos.
"O impacto das lesões e mortes no trânsito, implicando custos socioeconômicos de grande monta – e onde os custos pré e pós-hospitalares representam grande percentual – influenciou políticas públicas, principalmente em países de alta renda. E não apenas na segurança viária, mas também na indução do transporte ativo, no investimento em ciclovias e na qualidade do transporte público", conta o consultor da Opas/OMS.
Segundo ele, países europeus e o Japão adotaram essa postura desde a segunda metade do século passado sendo, mais tarde, seguidos por Canadá, algumas cidades dos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. "Mas na maior parte dos países em desenvolvimento a mentalidade sobre os ditos acidentes serem um 'preço natural do progresso' ainda impede o avanço das políticas públicas."
Mariano acredita que a raiz da violência no trânsito é a falta de uma consciência cidadã. "Nós não conseguimos reconhecer o trânsito como algo muito importante. O trânsito foi feito para facilitar a nossa vida, é compulsório participar dele e não existe vida social sem ele. Ele é indissociável do conceito de sociedade: nós somos seres que se locomovem", pondera. Assim sendo, precisa ser tratado com a devida seriedade, defende ele.
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