A ciência mostra que o Brasil é um país menos corrupto do que foi há algumas décadas. A afirmação pode parecer estranha para quem acompanha diariamente os jornais e está acostumado com novos casos de corrupção aparecendo todos os dias. Mas é o que garante o pesquisador Edgardo Buscaglia, especialista em crime organizado pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos.
Buscaglia já prestou assessoria em políticas públicas para setores públicos e privados em 118 países focados em combater e prevenir crimes econômicos transnacionais complexos ligados à corrupção política e à corrupção no setor privado. O especialista já prestou consultoria para países como Colômbia, El Salvador, Índia, Indonésia, México, Rússia e Ucrânia.
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, Buscaglia afirma que o Brasil melhorou no combate à corrupção e ao crime organizado, mesmo que esse não seja o sentimento da sociedade civil. Segundo ele, a percepção de que agora há mais corrupção do que antes é causada pelo fato de os casos estarem vindo à tona. “Agora tudo está descoberto. Então parece que você tem mais corrupção, mas na realidade os indicadores que nós analisamos mostram que existe menos crime organizado do que antes e o Estado está reagindo muito melhor do que antes”, analisa.
Ele alerta que não é possível alcançar a meta de acabar com o crime organizado, mas que é preciso diminuí-lo. “O crime organizado não vai embora, não desaparece. A corrupção não desapareceu em nenhum país do planeta”, afirma.
Buscaglia esteve no Brasil a convite do Instituto New Law e da Associação Brasileira de Direito e Economia e falou com a Gazeta do Povo.
Confira a entrevista:
Você estuda o crime organizado na América Latina. Como descreveria a situação brasileira nessa questão?
Desde 1993, nós temos avaliado o quão bem ou mal os países combatem o crime organizado. Isso me levou a um ponto em que eu desenvolvi uma metodologia em que coleto dados objetivos. São dados de arquivos de processos judiciais, casos reais de corrupção em que você tem uma denúncia de corrupção. É preciso saber como o Estado reage a essa denúncia de corrupção ou de crime organizado.
Nós usamos, como estrutura para avaliar, cada um dos 180 países a que temos acesso pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. Essas são duas estruturas legais que aplicam universalidade à nossa análise. O Brasil ratificou essas convenções, então o Brasil deve aplicá-las.
Temos avaliado os esforços brasileiros anticrime e antimáfia desde os anos 2000. E o Brasil, em 2003, 2004, estava lá em cima no ranking de países que violavam a maioria dos artigos das convenções. O Brasil não tinha instituições para combater o crime organizado dentro e fora do Estado. Das 45 instituições necessárias para combater o crime organizado, o Brasil tinha apenas 13. Não tinha leis, não tinha instituições.
A boa notícia é que agora o Brasil tem todas as 45 instituições funcionando. Então não é uma surpresa para nós que o crime organizado tenha diminuído. Em outras palavras, agora você tem uma redução no crime organizado na média dos 23 tipos de crime econômicos que nós medimos em 180 países.
O Brasil agora está entre os 22 melhores países do mundo em termos de combate ao crime organizado. E, quando se combate bem o crime organizado, você vê mais corrupção porque ela está sendo combatida. E as pessoas vão dizer que há mais corrupção do que antes. Não, o Estado está combatendo o câncer e você começa a ver mais casos de corrupção, mais políticos na prisão, mais homens de negócios na prisão. Não é que você tenha mais corrupção, é que o câncer agora está sendo curado.
O Brasil está entre os 22 melhores países em termos de aplicação na prática, não apenas na teoria, de 45 instituições antimáfia dentro do sistema Judiciário e com técnicas para tirar os recursos das redes criminosas de políticos, de empresários e do crime organizado.
Então o Brasil fez um ótimo progresso. Essa é a notícia boa. O Brasil ainda tem muito o que fazer? É claro, cada país pode melhorar de várias maneiras. Eu estive há pouco discutindo com o ministro da Justiça [Sergio Moro] muitas outras medidas que ainda não foram aplicadas, mas que eles estão planejando implementar. Como, por exemplo, incorporar a sociedade civil na convenção sobre crime organizado.
Há muitas coisas a fazer, mas o mais importante é que o Brasil está planejando fazer. Há mais de 50% dos parlamentares brasileiros que foram indiciados por corrupção, organização criminosa. Então isso é único. Não ocorre em países como Itália e os Estados Unidos. Então há uma reação de limpeza do sistema político. Isso é algo que deveria deixar muitos brasileiros orgulhosos.
Mas essa não é a percepção da maioria dos brasileiros, porque a corrupção continua aparecendo e muitos políticos não foram ainda responsabilizados. O esforço brasileiro tem sido suficiente?
O sistema político, que se tornou uma máfia por tantas décadas, não será limpo em poucos anos. Muitos países levaram gerações para mudar as regras do jogo. Os políticos no Brasil estavam acostumados a agir como mafiosos, vendendo favores, vendendo contratos públicos. Mudar esses hábitos leva muitos anos. O importante é que o Brasil começou a mudar as regras do jogo. Agora eles não estão livres para serem políticos corruptos e quando você combate a corrupção seriamente, você a vê mais.
Os cidadãos comuns não são investigadores profissionais, eles vão pensar que há mais corrupção do que antes porque o Brasil estava sob uma “pax mafiosa”. Pax mafiosa significa que você tem um acordo, um pacto de silêncio. Os italianos chamam de Ormetà: políticos não falam, a sociedade não vê nada, empresários que estão ganhando contratos públicos não falam.
Agora tudo está descoberto. Então parece que você tem mais corrupção, mas na realidade os indicadores que nós analisamos mostram que existe menos crime organizado do que antes e o Estado está reagindo muito melhor do que antes.
Quando falamos de Lava Jato, por exemplo, há uma comparação com a operação italiana Mãos Limpas. Mas, quando olhamos para a Itália de hoje, não parece haver menos corrupção. Nós vemos um cenário bem ruim depois da operação. Como o Brasil pode fugir deste mesmo desfecho?
A experiência italiana é bem interessante. As autoridades italianas, como o juiz Giovane Falcone, nos anos 1990, começaram a realmente atacar o crime organizado dentro do Estado. Naquela época você tinha o crime organizado sequestrando pessoas, colocando bombas nas ruas. Os sequestros na Itália estavam fora de controle. Muitos desses grupos estavam cometendo atos de terrorismo. A Itália avançou anos-luz em termos de melhorias. Agora não se vê esse tipo de violência na Itália.
Mas o crime organizado não vai embora, não desaparece. A corrupção não desapareceu em nenhum país do planeta. Corrupção e crime organizado são como pecados humanos. Se você é católico, sabe que o pecado não acaba. Nós somos seres humanos, com um lado obscuro e um lado bom.
Então não se pode ter como objetivo crime organizado zero. O que você tem que fazer é controlar o crime organizado. Assim, o crime organizado se torna menor. Eles [os criminosos] não cometem crimes contra a humanidade, como no México acontece o tempo todo. Então, ao invés de comprar e vender seres humanos, eles vão comprar e vender cigarros. É preciso conter o crime organizado.
A Itália fez isso. Na Itália, a maioria dos negócios sujos das organizações criminosas agora são conduzidos na Albânia, por exemplo. Não são conduzidos em solo italiano. Em solo italiano, o que eles fazem é lavar dinheiro; e eles lavam muito dinheiro. Mas, em termos de crimes mais sérios, com os quais a Itália estava acostumada, houve avanços [em contê-los].
A coisa mais importante que eu sempre digo para jornalistas é: você sempre tem que dar uma olhada em como o Estado reage à corrupção. Quando [o ex-primeiro ministro italiano Silvio] Berlusconi cometeu atos de corrupção, foi indiciado. Ele foi sentenciado. Pode ter se safado por causa de tecnicalidades [jurídicas], mas foi sentenciado. Quer dizer, o Estado reagiu frente à Berlusconi. Não houve impunidade.
O Brasil é um país em que você tem na cadeia [o ex-presidente] Lula, você tem na prisão [o ex-deputado federal] Eduardo Cunha, você tem na prisão pessoas de todas as ideologias, de esquerda, direita, centro. Então você não pode dizer que o Estado não está reagindo. O que o Brasil tem feito é ficção científica no México, na Argentina e em outros países. Então acho que vocês deveriam gostar disso. Os cidadãos não precisam ser experts em crime organizado, mas eles não devem ver como desvantagem haver mais casos de corrupção aparecendo.
A corrupção está sendo combatida, então você vai ver duas coisas. A pax mafiosa, aquele pacto de silêncio, agora será aberta, pública e muito barulhenta. E, em segundo lugar, você vai ver todos esses grupos de crime organizado dentro do Estado reagiram. Eles vão gerar uma contrarreforma mafiosa. Vão tentar retroceder e matar a reputação de ministros, ameaçar juízes. É assim que eles geralmente reagem quando o Estado está fazendo seu trabalho. Quando você vê o Estado combatendo a corrupção e o crime organizado com mais eficácia, começa a ver ataques como o que Sergio Moro está sofrendo nos últimos dias [vazamento de mensagens atribuídas a ele]. Esse é um indicativo de que o Estado está funcionando. Os criminosos estão sofrendo. Por isso estão reagindo.
Em todos os países do mundo – até na Suíça, Japão –, promotores podem cometer abusos e indiscrições. Quando há qualquer possível abuso, deve ser investigado. Mas o Brasil tem evoluído, não há dúvidas. Podemos provar isso cientificamente.
É correto dizer que há crimes menos piores cometidos por organizações criminosas?
Há tipos mais sérios de crimes organizados, que são menos frequentes agora do que dez anos atrás. Não estou falando de comprar ou vender cigarros ou jogo ilegal. Jogo ilegal há em Frankfurt [Alemanha]. Eu estou falando de tipos mais sérios de crimes, como sequestro, assassinato, tráfico de órgãos. Esses crimes foram reduzidos no Brasil graças ao trabalho das autoridades e da sociedade civil também.
Boa parte da sociedade civil apoia os esforços de Sergio Moro e de seu pessoal. Isso é muito positivo. A sociedade nesse país não fica em silêncio. Pode ficar confusa, pode ficar preocupada, pessimista. Mas a sociedade civil nesse país é famosa por ter reagido.
Eu estava aqui em junho de 2013 e eu lembro que vocês tiveram uma manifestação enorme contra os gastos públicos, logo antes da Copa do Mundo. Isso é uma notícia boa. A sociedade civil neste país tem sido parte da solução muitas vezes. Então, eu sou um otimista, como você pode perceber. Acho que ainda há muito a ser feito, mas o Brasil está evoluindo.