O Brasil está em busca de uma saída para a crise eleitoral da Venezuela que priorize a manutenção de um canal de diálogo e evite o isolamento internacional do ditador Nicolás Maduro. Mas analistas avaliam que o Brasil já não tem a influência que tinha no passado sobre Caracas. Maduro se voltou para a China e para Rússia, países que, inclusive, reconheceram a contestada reeleição de Maduro e vêm oferecendo também apoio financeiro e militar. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) perde assim espaço e prestígio no tabuleiro político da América do Sul.
Durante os governos de Lula e da ex-presidente Dilma Rousseff, o Brasil agiu para colocar a Venezuela no Mercosul, apoiá-la em outros blocos diplomáticos e também para convencer os Estados Unidos a levantar sanções contra o país. Quando Lula voltou ao poder no Brasil no ano passado, tentou retomar a lua de mel com o ditador, mas a relação não foi mais a mesma.
"O Brasil já não é tão importante para a Venezuela como já foi, porque hoje os principais parceiros da Venezuela são a China e Rússia", pontua o doutor em Relações Internacionais e pesquisador da Universidade de Harvard, Vitélio Brustolin. O relacionamento com o bloco sino-russo se tornou essencial para a Venezuela sancionada de Nicolás Maduro, principalmente depois 2018, quando o país teve suas eleições contestadas.
À mesma época, o Brasil, presidido por Jair Bolsonaro (PL), rompeu com o país e reconheceu o candidato da oposição, Juan Guaidó, como presidente. Enquanto as sanções das nações democráticas do Ocidente ganhavam mais peso sobre a Venezuela, o país apostou no estreitamento com China e Rússia. A China fez altos investimentos em território venezuelano, sobretudo nas áreas energéticas e em infraestrutura.
Até 2023, de acordo com o site The Dialogue, que reúne uma base de dados alimentada pela Universidade de Boston, a Venezuela foi o país latino-americano que mais recebeu empréstimos da China: foram 17 que somam US$ 59,2 bilhões – cerca de R$ 324 bilhões na cotação atual. O Brasil ocupa a segunda posição em créditos tomados de Pequim, com 15 transações que somam US$ 32,4 bilhões.
A Rússia segue os mesmos passos da parceira China. Moscou já fez investimentos milionários em refinarias de petróleo na Venezuela e se tornou o principal fornecedor de armas para o país sul-americano. De acordo com um grupo de pesquisadores colombianos no International Social Science Journal, as transações militares entre os dois países já envolveram a venda de carros blindados, tanques, sistemas de defesa antiaérea e helicópteros.
Nesse relacionamento também se atribui o apoio político. Diferentemente do Brasil, Rússia e China reconheceram a reeleição de Nicolás Maduro como presidente da Venezuela. O reconhecimento veio horas depois do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) anunciá-lo como vencedor do pleito venezuelano sem comprovação do resultado.
Lula optou por uma relação "em cima do muro" com Maduro, na qual evita criticá-lo diretamente para não ser acusado de apoiar uma ditadura, mas fornece apoio velado. O ditador venezuelano parece ter se ressentido de não receber de Lula apoio incondicional, como fazem as ditaduras de Moscou e Pequim.
O "período dourado" no relacionamento de Lula com Chávez na presidência da Venezuela
O auge da relação entre Brasil e Venezuela foi durante os primeiros mandatos de Lula, quando Hugo Chávez ainda era o presidente em Caracas. A convergência ideológica entre os dois foi o que os aproximou. Parceiros no Foro de São Paulo, grupo que atua pela articulação da esquerda no mundo, Lula e Chávez também são fundadores da Unasul, bloco de integração regional que chegou ao fim após adotar um viés predominantemente de esquerda.
À época, o mandatário brasileiro tinha certa influência sobre o autocrata venezuelano. O petista, inclusive, chegou a atuar para uma aproximação entre Chávez e os Estados Unidos. Após Lula deixar a presidência do Brasil, em 2011, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) buscou manter esse elo. Foi durante seu primeiro mandato, inclusive, que a Venezuela passou a integrar o Mercosul.
A Venezuela passou a fazer parte do bloco em 2012, período em que o Paraguai havido sido suspenso – que barrava a entrada da nação de Chávez e Maduro no grupo desde 2006, quando Caracas oficializou seu desejo de ingressar no Mercado Comum do Sul. A entrada venezuelana contou com o apoio de Dilma e da então presidente da Argentina, Cristina Kirchner, e foi considerada uma manobra política da esquerda.
Mais tarde, em 2016, o país foi suspenso do Mercosul por causa, entre diversas razões, da ruptura da ordem democrática. A saída coincidiu com o impeachment de Dilma no Brasil e com Maurício Macri, de direita, assumindo a presidência da Argentina. Lula, entretanto, passou a ignorar as razões que ocasionaram a suspensão da Venezuela e defendeu, recentemente, que o país volte a fazer parte do bloco econômico:
“Esperamos poder receber muito rapidamente de volta a Venezuela. A normalização da vida política venezuelana significa estabilidade para toda a América do Sul”, disse Lula durante viagem que fez à Bolívia em julho. O petista também fez acenos positivos para que o país de Nicolás Maduro integre o Brics (acrônimo para o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que recentemente aceitou cinco novos membros: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. Mas nem mesmo esses acenos de Lula foram capazes de destravar o relacionamento com o ditador Nicolás Maduro.
Relação limitada com Maduro diminui influência de Lula no regime chavista
Na concepção de analistas, Lula apostou no diálogo e aproximação com o ditador venezuelano para tentar negociar questões delicadas com Maduro, como as eleições presidenciais, por exemplo. A aposta do brasileiro era de que esse relacionamento poderia funcionar como aconteceu com o falecido Hugo Chávez, mas a relação de Lula com o sucessor de Chávez, contudo, não é a mesma.
Na quinta-feira (15), em entrevista à Rádio T, de Curitiba (PR), o mandatário brasileiro assumiu que as relações com a Venezuela estão deterioradas e que seu relacionamento com Maduro é "frio". "Eu mantenho relações com a Venezuela desde que tomei posse, em 2003. Tive muitas relações com o [Hugo] Chávez", afirmou Lula
"Essa relação ficou deteriorada porque a situação política está ficando deteriorada na Venezuela. Eu conversei pessoalmente com o Maduro antes das eleições, dizendo para ele que a transparência do processo eleitoral e a legitimidade do resultado eram o que iria permitir a gente continuar brigando para que fossem suspensas as sanções contra a Venezuela”, afirmou o presidente brasileiro.
Historicamente, o petista faz acenos ao regime chavista, evitando críticas até mesmo quando virou alvo de ataques de Nicolás Maduro. Nesta semana, inclusive, Lula chegou a mudar o tom em relação à Venezuela. Na mesma entrevista à rádio, afirmou que ainda não reconheceu as eleições venezuelanas e que Maduro "deve explicações ao mundo".
Nesta sexta (16), Lula elevou mais um pouco tom. Dessa vez, durante declarações à Rádio Gaúcha, chegou a chamar o governo de Maduro de "regime com viés autoritário". “Eu acho que a Venezuela vive um regime muito desagradável. Não acho que é ditadura, é diferente de uma ditadura. É um governo com viés autoritário, mas não é uma ditadura como a gente conhece tantas neste mundo”, afirmou.
Brasil perde prestígio como líder regional
Apesar de ser um país evidentemente hegemônico na América do Sul, devido ao seu tamanho geográfico e potência econômica que representa na região, o Brasil perdeu sua capacidade de ser um mediador regional e também influenciar em grande decisões, segundo avalia o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Vitélio Brustolin. "O Brasil já não é tão mais importante para a Venezuela e nem para a América do Sul. É por isso que países menores, com menos população, PIB e projeção internacional, atuam sozinhos", pontua Brustolin. Ele diz enxergar um vácuo político para ascendência de novos atores regionais.
Outros especialistas ouvidos pela reportagem também afirmam que o atual impasse com a Venezuela evidencia o enfraquecimento brasileiro como ator político regional. Em busca de uma solução "pacífica" para o impasse entre governo e oposição na Venezuela, a maioria dos países da América do Sul se posicionou de forma independente. Para Elton Gomes, professor do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), o Brasil perdeu seu prestígio como ator regional.
O docente pontua ainda que, caso o Brasil atuasse como líder regional, o normal seria que as demais nações sul-americanas acompanhassem o posicionamento brasileiro. Mas não foi isso que aconteceu. "O Brasil está fugindo um pouco da sua tradição: a sua liderança natural na região. E, quando digo região, me refiro à América do Sul, porque há países na América Latina que não temos qualquer influência. O Brasil não foi capaz de fazer com que seu discurso, sua narrativa e seu posicionamento fossem acompanhados pelos demais", avalia Gomes.
Enquanto a região carece de uma coordenação regional conjunta, os países se posicionaram de forma independente sobre as eleições contestadas na Venezuela: Brasil e Colômbia atuam em conjunto por uma solução pacífica entre governo e oposição e pelo não isolamento internacional da Venezuela. A Bolívia reconheceu a reeleição de Maduro. Chile e Suriname não reconheceram as eleições e apontam irregularidades. Argentina, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai reconheceram Edmundo González, da oposição, como vencedor do pleito. Esses países se alinharam com os Estados Unidos na estratégia de isolar Caracas.
O Brasil se aliou ao México e à Colômbia em busca de diálogo com a Venezuela. O México, contudo, acabou abandonando as negociações nos últimos dias supostamente devido à transição de governo que o país lida neste momento. Andrés Manuel Lopez Obrador, de esquerda, está passando o cargo para sua protegida Claudia Sheinbaum.
"A Colômbia não é o segundo país mais importante na América do Sul. O natural seria que a tríade sul-americana se reunisse: Argentina, Brasil e Chile. Mas esse governo brasileiro tem impasses com os dois países", ressalta o cientista político.
Lula e o presidente argentino, Javier Milei, não têm um relacionamento devido à divergência ideológica. O impasse entre os dois líderes já foi apontado por analistas como um empecilho para a estratégia de política externa brasileira. No Chile, apesar do que tem um governo de esquerda, o presidente Gabriel Boric diverge do mandatário brasileiro quando os assuntos são a Venezuela e as guerras em curso no mundo. Lula vem dando declarações contrárias à Ucrânia e a Israel.
Maduro não dá previsão para entrega de atas e governo Lula se vê em "sinuca de bico"
As tentativas do governo Lula para encontrar uma saída pacífica para a instabilidade política na Venezuela parecem frustradas: duas semanas se passaram desde o pleito e não existe qualquer previsão de quando o ditador Nicolás Maduro vai entregar as atas eleitorais. A divulgação dos chamados "dados desagregados por mesa de votação" é colocada como condicionante pelo governo brasileiro e outros países da região para reconhecerem os resultados divulgados pelo CNE.
O Brasil foi o único país da América do Sul que contou com um membro do seu governo como observador nas eleições presidenciais na Venezuela, que aconteceram no dia 28 de julho. Lula enviou seu assessor para assuntos especiais, o ex-chanceler Celso Amorim, para acompanhar a votação em Caracas. No país, Amorim teve encontros com Maduro e também com o principal nome da oposição, Edmundo González Urrutia.
De acordo com Amorim, ele foi o porta-voz da mensagem sobre a importância da divulgação dos documentos. Ao chanceler de fato do Brasil, Maduro afirmou que as atas seriam entregues nos dias seguintes após a votação. A promessa, contudo, ainda não foi cumprida. Durante esclarecimentos prestados no Senado Federal nesta semana, Amorim admitiu que não há previsão de quando a documentação será entregue.
"Eu aprendi que na diplomacia não se estabelecem prazos. Eles podem até ser usados, em alguns momentos, mas não são verdadeiros, são apenas um estímulo para que as coisas possam acontecer. Eu acho que não adianta nada eu estabelecer um prazo hoje e depois de amanhã descobrir que as coisas estão evoluindo mas que vão tomar mais tempo", disse Amorim para justificar a demora de Maduro para entregar as atas eleitorais.
Uma fonte da chancelaria brasileira já havia revelado à Gazeta do Povo que não havia previsão para esta entrega e nem mesmo uma certeza sobre o comprometimento do regime chavista em fazê-lo. A demora também não é bem interpretada nos bastidores do Palácio Itamaraty. Apesar da sutil mudança de tom em relação à Venezuela, Lula foi um grande defensor do pleito no país e também de Maduro.
Agora, contudo, o mandatário e seus articuladores se veem de mãos atadas. Na avaliação do cientista político Elton Gomes, o atual impasse político na Venezuela - que o Brasil não consegue desamarrar e nem encontrar apoio de outras nações para sua atuação - representa uma "rachadura na hegemonia brasileira". "O Brasil insistiu muito na Venezuela e no que já parecia uma tragédia anunciada", pontua o professor da UFPI.
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