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Após cinco semanas epidemiológicas em que a média de mortes diárias pela Covid-19 no Brasil se manteve no mesmo patamar, o Ministério da Saúde anunciou que o país chegou ao "platô" nesse quesito, termo que indica uma estabilização no avanço do índice. Mas isso não significa que já é hora de relaxar: os estágios da pandemia estão em diferentes níveis até mesmo dentro de um mesmo estado, a curva de casos confirmados da doença segue ascendente e há ainda a sombra da subnotificação.
Portanto, embora tenha chegado ao platô de óbitos, o país ainda não conseguiu estabilizar a curva de contágio da doença, o que significa que pode haver uma longa travessia antes de haver, de fato, o declínio de casos e mortes pelo coronavírus.
O boletim epidemiológico especial nº 20, do Ministério da Saúde, apontou que entre as semanas epidemiológicas (SE) 22 (de 24 a 30/05) e 26 (de 21 a 27/06), a média de mortes diárias teve pouca oscilação: passou de 974 óbitos na SE22 para 1.013 na SE26. “No Brasil, embora os números de óbitos sejam elevados, desde a semana epidemiológica 22 o número de mortes tem se mantido relativamente constante. Aumenta um pouco, diminui um pouco. Embora o número seja elevado, tem que o número de óbitos tem se mantido em um platô”, destacou o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo de Medeiros, em coletiva de imprensa no dia 1.º de julho.
O problema é que a curva de contágio segue crescendo neste mesmo período, sem nenhuma variação negativa no decorrer dessas semanas epidemiológicas. Na SE22, a média diária de casos era de 21.577, mas esse número pulou para 35.155 casos confirmados por dia, em média, na SE26. Isso indica que algumas das medidas de flexibilização adotadas em alguns estados e cidades resultaram em aumento da contaminação pela Covid-19, já que não há unidade da federação ou município com redução consistente em ambos os indicadores.
Platô sem estabilização de casos
O anúncio do Ministério da Saúde de que o país alcançou o platô pode dar uma falsa sensação de segurança. Mas especialistas em saúde pública consultados pela Gazeta do Povo dizem que a situação no país ainda é muito delicada e não permite nenhum deslize, sob pena de haver uma nova escalada de mortes.
Doutor em saúde pública e pesquisador da Fiocruz, Raphael Guimarães ressalta que há uma diferença substancial no comportamento da incidência e mortalidade pelo novo coronavírus, e que esses indicadores são modificados por fatores diferentes. Enquanto a incidência está relacionada à capacidade de disseminação do vírus (onde entram as medidas de isolamento social) e de enfrentamento dos casos (ligada à robustez dos sistemas de saúde), a mortalidade é multifatorial (depende da idade e comorbidades associadas).
Ele explica que o que é observado em outros países é que, para incidência de casos, há um aumento exponencial, relacionado à disseminação do coronavírus, que leva a um patamar bastante elevado para, então, cair. Esse é o padrão esperado e é um termômetro: não significa que se alcançou uma etapa para ficarmos menos preocupados.
No caso da mortalidade no Brasil, visualmente o platô foi alcançado. “Mas não significa que estamos com a doença estabilizada no país, porque não temos estabilização estatística”, ressalta. Ele explica que a demora no diagnóstico – representada pelos atrasos para confirmação de casos e mortes em investigação – aliada à subnotificação dão essa impressão de estarmos no platô. “Pode ser que daqui a uma semana, tenhamos um aumento. É preciso ser muito cauteloso quando olhamos o platô, porque não significa que estamos no ponto da doença que é só administrar para sair da questão da pandemia”, pontua.
O professor Gonzalo Vecina Neto, do departamento de política, gestão e saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, diz que o Brasil não chegou a estabilização. “O que diminuiu foi a velocidade de crescimento, que é diferente de estabilização. O Ministério da Saúde não está fazendo o que deveria fazer, que é testar a população”, critica. Desde março a pasta anuncia a intenção de fazer um programa de testagem em massa no país, mas a iniciativa não deslanchou até o momento.
Ele lembra que flexibilizar as medidas de isolamento social faz o risco do contágio da doença aumentar e, tomar essas medidas num momento em que a contaminação ainda é alta, faz os casos da Covid-19 se multiplicarem ainda mais. “A liberação do isolamento social implica em aumentar o número de casos. Não tem milagre. O correto é ter 14 dias consecutivos de queda para flexibilizar um pouco a economia. Flexibilizar a economia com casos crescentes é um desastre”, resume.
Flexibilização do isolamento contribuiu para interiorização
As medidas de afrouxamento do isolamento social nas últimas semanas, além de refletidas no aumento do número de casos da Covid-19, também acentuaram o processo de interiorização da doença.
Análise de pesquisadores do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), com base nos dados da SE24, já alertava para essa tendência. Na virada para a SE26, o interior superou as capitais no que diz respeito ao número de mortes pelo novo coronavírus – a quantidade de casos já havia sido ultrapassada antes.
Raphael Guimarães, da Fiocruz, explica que esse processo de esvaziamento de casos nas capitais é reflexo da migração para interior e cidades de pequeno porte – 90% dos municípios brasileiros já registraram ao menos um caso do novo coronavírus. “Em algumas capitais, essa curva [de contágio] sequer chegou na curva exponencial. Para algumas delas, vai ter aumento exponencial para chegar no patamar de platô, por isso, ainda precisa ter muita cautela para discutir flexibilização”, aponta.
Guimarães reforça que em nenhum momento foi cogitado conter o vírus. “Uma vez que ele surgiu e está disperso no muindo, não há força da natureza que o contenha. A gente vai passar pela fase de pandemia, mas as pessoas continuarão tendo a Covid, e haverá casos de agravamento. A única coisa que sabemos, hoje, é que não vai voltar no tempo e deixar de existir a Covid. Precisamos saber gerir, para dar conta dos casos que vão continuar existindo pra sempre”.
E é essa a gestão esperada de lugares que estão flexibilizando as medidas de isolamento, a ser mensurada pela capacidade de atendimento dos novos casos. No caso brasileiro, o intercâmbio de casos entre capital e interior culmina na sobrecarga dos sistemas de saúde das cidades que são polos regionais ou capitais, já que os municípios de pequeno e médio porte nem sempre contam com sistemas de saúde adequados para casos de média e alta complexidade, como ocorre com pacientes da Covid-19.