O presidente Jair Bolsonaro disse em mais de uma oportunidade nas últimas semanas que considera retirar o Brasil da Organização Mundial de Saúde (OMS). "Tão logo acabe esse problema da pandemia, a gente vai pensar seriamente se sai ou não, porque [a OMS] não transmite mais confiança para nós”, declarou, no último dia 10. Um dia antes, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, anunciou que estava dando início a um pedido de investigação da atuação da entidade, em parceria com outros países.
A postura da OMS durante a pandemia do coronavírus tem sido questionada por vários países, de diferentes correntes ideológicas, que veem na organização problemas que vão desde condutas ineficazes e violação à soberania nacional até um suposto alinhamento com pensamentos de esquerda.
Sair da OMS, entretanto, não seria tarefa simples para o governo federal. O movimento tenderia a criar um impasse jurídico e também técnico. O rompimento de um tratado internacional, como o que o Brasil tem com a organização para a saúde ligada às Nações Unidas, é um evento raro, e não há consenso no direito em torno da tramitação do processo. Além disso, especialistas em saúde pública manifestam contrariedade à ideia, por entenderem que a participação na OMS traz contribuições ao país, que seriam perdidas.
Na última quarta-feira (17), a chefe do programa de emergências da OMS, Maria van Kerkhove, afirmou que cientistas dos EUA continuam trabalhando em parceria com a organização. O distanciamento entre EUA e OMS se verificou desde o início da pandemia de coronavírus e atingiu seu ápice em abril, quando o presidente Donald Trump anunciou que cortaria o financiamento que o país concede à entidade.
O posicionamento de Trump foi interpretado como um estímulo para as declarações de Bolsonaro. O presidente brasileiro argumentou também que a fala de van Kerkhove sobre a transmissão da Covid-19 — a de que a doença não seria repassada por pessoas assintomáticas —- indicaria uma falta de credibilidade da OMS. A chefe do programa de emergências da organização voltou atrás nessa declaração no dia seguinte.
Em abril, Bolsonaro chegou a publicar em suas redes sociais que a organização incentivaria a masturbação e a homossexualidade de crianças. Ele removeu a postagem, feita à época dos debates sobre a implantação das medidas de quarentena e isolamento. O presidente também questionou, em outras ocasiões, o que chamou de posicionamentos contraditórios da OMS sobre a cloroquina, medicamento visto por ele como alternativa para o tratamento da Covid-19.
Congresso precisa opinar sobre saída do Brasil da OMS?
A principal indefinição em torno dos aspectos jurídicos de uma decisão do governo federal de levar o Brasil a deixar a OMS é se isso poderia ser feito por meio de uma decisão isolada do presidente da República ou se a medida teria que ser aprovada pelo Congresso Nacional.
Segundo o advogado Claudio Timm, sócio da TozziniFreire Advogados, especialista em relações governamentais, o impasse em torno do tema remete a uma questão histórica, iniciada em 1926. Na ocasião, conta Timm, o Brasil discutia a rejeição a um tratado internacional e a obrigatoriedade ou não de Legislativo e Executivo precisarem apoiar o rompimento. Prevaleceu então o entendimento do jurista Clóvis Beviláqua: se para o Brasil aderir a um tratado seriam necessários o aval dos dois poderes, para a quebra bastaria a manifestação de um deles, porque isso indicaria um desacordo ao pressuposto inicial.
A decisão histórica, porém, foi posteriormente questionada. Em 1997, o então presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu excluir o Brasil de uma regulamentação da Organização Internacional do Trabalho (OIT). E o fez sem consultar o Congresso, de acordo com o entendimento de 1926. A medida foi contestada no Supremo Tribunal Federal (STF), em um julgamento que ainda está em curso. Para alguns ministros — entre eles Teori Zavascki, que morreu em 2017 —, a manifestação do Congresso é necessária.
"Ainda não houve uma conclusão do julgamento. O ministro Teori votou pela obrigatoriedade do Decreto Legislativo [consulta ao Congresso], mas com o entendimento de que isso valeria dali para a frente. Realmente não há uma definição sobre o caso", diz o especialista em relações governamentais.
Por causa desse quadro, Timm avalia que qualquer decisão em torno de uma eventual saída do Brasil da OMS motivaria uma batalha nos tribunais. "Bolsonaro teria respaldo jurídico, teria a tradição a seu lado, para romper de modo unitário. Mas há entendimentos que indicam o oposto", aponta.
O advogado ressalta que a situação é também um reflexo de um vácuo na lei máxima do país. "A Constituição de 1988 prevê claramente o processo para a adesão do Brasil a um tratado internacional, mas é silente em relação à denúncia, que é o movimento de saída".
A saída da OMS representaria ainda uma inovação no histórico da entidade, já que exclusões de países são raras. Um movimento ocorreu em 1949, liderado pela União Soviética. O país comunista e outros sob sua influência deixaram a OMS, mas permaneceram distantes da entidade apenas até 1955.
Pode haver impactos na saúde pública do Brasil?
Questões jurídicas à parte, especialistas avaliam que a retirada do Brasil da OMS traria impactos negativos à saúde pública nacional.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, destaca que a OMS e seu braço regional, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), têm exercido parceria com agentes públicos brasileiros. "Sempre que o CNS precisou de apoio para a construção de políticas públicas, em todas as ocasiões que procurou a Opas recebeu atenção", diz.
A professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), também enfatiza que a aproximação com a OMS é benéfica ao Brasil, em sua avaliação. "Não vejo nada de positivo para um país, seja ele qual for, em não fazer parte da OMS, especialmente em meio a uma pandemia, ainda mais considerando que os intervalos entre as pandemias serão cada vez mais curtos".
O presidente do CNS aponta que o investimento feito pelo Brasil na organização é revertido em benefícios para a rede pública nacional. "O dinheiro que o Brasil investe na OMS é retornado para o país por meio dos avanços na ciência, já que a OMS reúne saberes do mundo todo. Por exemplo, com a produção de vacinas, e a preparação para o combate a pandemias", ressalta.
A destinação de recursos públicos para a OMS é um dos aspectos mais contestados pelos apoiadores de Bolsonaro. No biênio 2020-2021, o Brasil será o país que destina a oitava maior contribuição anual entre as 196 nações que mandam verbas à instituição regularmente. Serão US$ 14,1 milhões – o equivalente a R$ 73,3 milhões considerando um dólar na casa de R$ 5,20. A verba brasileira corresponde a 2,9% de todo o dinheiro destinado por países à OMS.
A Gazeta do Povo questionou o Ministério das Relações Exteriores sobre o pedido de investigação da entidade anunciada pelo ministro Ernesto Araújo, mas não recebeu retorno até a conclusão desta reportagem.
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