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Relações internacionais

Saiba quais são as cinco crises internacionais que Lula pode causar na presidência do Brics

Cúpula do Brics 2024
A última reunião de chefes de Estado do Brics foi realizada no ano passado na Rússia, mas sem a presença de Lula. (Foto: Alexander Nemenov/EFE)

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O Brasil assumiu a presidência rotativa do Brics neste mês e anunciou uma lista com as prioridades da agenda brasileira à frente do bloco. O grupo de nações emergentes, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã, tem ganhado um caráter anti-Ocidente devido à influência sino-russa e, para analistas, a agenda proposta pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode trazer tensões para sua política externa.

A presidência brasileira nos Brics teve início neste mês e tem duração até dezembro. Durante este período, o Brasil guia as discussões do grupo e sedia os encontros do bloco, inclusive a cúpula de líderes. Em anúncio feito nesta semana, o Planalto divulgou uma lista com cinco prioridades da presidência brasileira à frente dos Brics. São elas:

  • Facilitação do comércio e investimentos entre os países do agrupamento, por meio do desenvolvimento de meios de pagamento;
  • Promoção da governança inclusiva e responsável da Inteligência Artificial para o desenvolvimento;
  • Aprimoramento das estruturas de financiamento para enfrentar as mudanças climáticas, em diálogo com a COP-30;
  • Estímulo aos projetos de cooperação entre países do Sul Global, com foco em saúde pública;
  • Fortalecimento institucional do BRICS.

Na avaliação de Cezar Roedel, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ainda que o Brasil esteja à frente do Brics neste ano, são os interesses de China e Rússia que devem prevalecer no bloco. Para o especialista, a rotatividade de outros países à frente do bloco é "meramente figurativa".

"O grupo é coordenado ideologicamente a partir da aliança russo-chinesa, que dá as diretrizes estratégicas aos demais membros do bloco, embalados pela esperança de que terão no futuro algum lugar de destaque na nova ordem proposta pelo eixo autocrático", afirma Roedel em referência à composição dos Brics, que desde sua expansão se tornou um grupo formado majoritariamente por ditaduras.

Nesse sentido, os analistas avaliam que a agenda que o Brasil pretende engajar ao grupo reflete os interesses das duas nações mais influentes.

Investir em pagamentos sem dólar pode atrair sanções ao Brasil

O Brasil pretende dar sequência a discussões sobre mudanças no sistema financeiro internacional e focar no desenvolvimento de meios de pagamento para os países membros do bloco. O principal foco deve ser o Brics Pay, plataforma de pagamentos que pode servir como uma alternativa ao Swift - um sistema de envio de mensagens bancárias de compensação de pagamentos internacionais controlada por bancos do Ocidente.

A implementação do sistema é discutida entre os membros dos Brics desde 2018, mas começou a sair do papel somente neste ano, sob a presidência russa no bloco. A motivação para desenrolar as tratativas foi a suspensão da Rússia do Swift, o que afetou seu comércio internacional. Houve ainda um grande incentivo de Lula que, de acordo com o chanceler russo, Sergey Lavrov, é um dos idealizadores da proposta.

O sistema propõe que os países que formam os Brics, além de outras nações interessadas, possam fazer pagamentos de transações comerciais entre si com moedas locais e sem o uso do dólar. A proposta, contudo, já foi alvo de críticas do presidente eleito nos Estados Unidos, Donald Trump. Em recentes declarações, o republicano afirmou que vai taxar os países dos Brics que insistirem na desdolarização.

“Exigimos que esses países se comprometam a não criar uma nova moeda do Brics nem apoiar qualquer outra moeda que substitua o poderoso dólar americano ou eles enfrentarão 100% de tarifas e deverão dizer adeus às vendas para a maravilhosa economia norte-americana", escreveu Trump em uma rede social.

Para a doutora em relações internacionais e coordenadora de Relações Internacionais da Faculdade Mackenzie Rio, Fernanda Brandão, a promoção de uma plataforma de pagamentos dos Brics reflete interesses políticos do bloco.

"Os Brics surgem com esse objetivo desde o início, primeiro com a intenção de fortalecer as relações comerciais entre os países do bloco e depois com a criação de meios de pagamentos próprios", pontua.

A professora relembra ainda que China e Rússia já possuem sistemas de pagamentos que não utilizam o dólar, como uma estratégia de diminuir a dependência da moeda americana. Mais que isso, esses meios também têm o intuito, no caso da China, de impulsionar sua própria economia e, no caso da Rússia, de se esquivar de sanções econômicas.

Discussões com IA no bloco podem ajudar o acesso da Rússia à tecnologia

O Brasil também sugeriu que os Brics iniciem discussões sobre o desenvolvimento da Inteligência Artificial. Especialistas apontam que, embora a proposta busque aproveitar o avanço da China nesse campo para beneficiar os países em desenvolvimento do bloco, há uma preocupação de que a Rússia utilize essa pauta para fortalecer sua máquina de guerra. Atualmente Moscou está impedida por sanções internacionais do Ocidente de importar componentes tecnológicos relacionados ao desenvolvimento de Inteligência Artificial por causa da invasão à Ucrânia.

A Rússia tem empregado a tecnologia de IA em suas operações militares contra Kyiv, o que gera receios sobre o uso da tecnologia com fins bélicos. Um dia depois do Brasil anunciar sua agenda à frente dos Brics, a Rússia anunciou que o maior banco do país faria acordos com a China no setor de Inteligência Artificial.

As iniciativas no âmbito dos Brics e da parceria sino-russa representam uma estratégia de Moscou para desafiar o mercado de Inteligência Artificial, que é dominado pelos Estados Unidos, e no qual a Rússia enfrenta restrições. O tema já havia sido abordado pelo bloco no ano passado, durante a presidência russa.

Durante a cúpula de líderes dos Brics, Putin anunciou a criação de uma Rede Aliança de Inteligência Artificial com especialistas, os países membros dos BRICS e outras nações interessadas para desenvolver a tecnologia. O Brasil deve prosseguir com as discussões ao longo deste ano, durante sua presidência.

Apoio de Lula nos Brics a Moscou e Pequim pode fazer Brasil ser visto como aliado do "eixo das ditaduras"

O terceiro mandato do presidente Lula tem sido marcado por declarações em prol do chamado Sul Global, termo utilizado para se referir às nações em desenvolvimento. O mandatário brasileiro fez críticas ao dólar, a decisões políticas dos Estados Unidos e da União Europeia e abandonou a tradicional postura de neutralidade do Brasil ao se posicionar sobre os conflitos em curso no mundo.

Se afastando cada vez mais das nações ocidentais, Lula tem sido visto como um aliado de Vladimir Putin no contexto da guerra que o país enfrenta contra a Ucrânia. Enquanto países como os Estados Unidos e aqueles que integram a União Europeia têm adotado sanções contra Moscou com a intenção de frear a máquina de guerra russa, o Brasil tem seguido o caminho oposto.

Essa postura, contudo, não se restringe à Rússia, mas a todos os países que agora integram os Brics e são alvos de sanções do Ocidente, como é o caso do Irã. Para analistas, as pautas que o governo petista deseja promover no bloco podem ajudar esses países a burlarem os embargos que lhes foram impostos, além de afastar o Brasil cada vez mais das nações democráticas ocidentais.

Fortalecimento institucional dos Brics pode fazer Brasil ser classificado como opositor do Ocidente

Outro ponto de preocupação é quanto à tentativa de fortalecer o bloco institucionalmente. Os Brics, como pontua o professor da UFPI Elton Gomes, não são uma organização formal e suas decisões não são vinculantes.

"Para além do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, também conhecido como Banco dos Brics), o grupo promove reuniões de chefes de Estado e de ministros que visam estabelecer parâmetros para a cooperação em áreas de interesse comum desses estados que o compõem", pontua.

Nesse sentido, o professor avalia que as metas propostas, em sua maioria, são genéricas e não devem ter muito impacto para além do discurso. Os analistas, contudo, vêm com preocupação uma institucionalização do bloco, o que pode reforçar o caráter anti-Ocidente que os Brics têm adquirido sob influência da Rússia e da China.

"O fortalecimento institucional é justamente a tentativa de reforço das narrativas perpetradas pela aliança russo-chinesa contra a ideia de Ocidente, democracia e liberalismo, em propositura meramente ideológica por parte do governo brasileiro, sem considerar que se trata de uma contradição", avalia Cezar Roedel.

Na avaliação de João Nyegray, professor do curso de Negócios Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), a proposta brasileira de fortalecer institucionalmente os Brics pode enfraquecer o projeto de um sistema internacional multilateral baseado em valores democráticos e direitos humanos.

"Quando o Brasil fala em fortalecimento institucional, é uma tentativa de consolidar mecanismos internos, o que também não me parece fácil porque há diferenças bastante consideráveis entre esses países, que são nações que estão tendendo ao autoritarismo", pontua o professor.

Lula pode bancar visita de ditador russo ao Brasil e desrespeitar decisão de tribunal internacional

A presidência do Brasil nos Brics pode retomar uma discussão que gerou dor de cabeça a Lula: a presença de Vladimir Putin na Cúpula de Líderes do bloco. Ainda em 2023, quando o Brasil sediou a Cúpula de Líderes do G20, o mandatário brasileiro afirmou que não prenderia o autocrata russo caso ele decidisse participar do evento no Rio de Janeiro. Se ele repetir essa postura e Putin aceitar o convite, Lula será o protagonista de uma crise internacional de grandes proporções.

A Rússia, como membro do G20, teve seu presidente convidado para a reunião no Brasil, e o mesmo procedimento será adotado para o encontro de líderes dos Brics. Entretanto, Putin possui um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra, incluindo o sequestro de crianças ucranianas que foram levadas para adoção forçada na Rússia. O Brasil, como signatário do Tratado de Roma, que estabelece as regras de cooperação com o TPI, tem a obrigação de executar a prisão de Putin.

Desde a emissão do mandado de prisão em 2023, as democracias ocidentais têm pressionado os países signatários para que cumpram o acordo. No mesmo ano, Putin cancelou sua participação na Cúpula dos Brics na África do Sul, após o presidente Cyril Ramaphosa afirmar que tentar prender o líder russo seria considerado uma declaração de guerra contra a Rússia.

Neste ano, a cúpula será realizada no Brasil. Segundo a legislação brasileira, caso Putin venha ao país, sua prisão precisará ser autorizada por um juiz federal de primeira instância, conforme uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2020. Porém, como não existe uma lei específica para o caso, o juiz deverá decidir com base em analogias e princípios do direito penal e internacional que considere aplicáveis, criando um vácuo legal sobre a questão.

Em paralelo, a diplomacia de Lula tenta criar argumentos na ONU para contornar a decisão do TPI. O Brasil chegou a sugerir criar uma imunidade mundial para criminosos de guerra e assim ignorar a sentença.

Se Lula insistir na ideia de trazer o ditador ao Brasil, os países signatários do Tratado de Roma, especialmente as nações do G7, o grupo das sete maiores economias democráticas do planeta, devem exercer pressão pela prisão de Putin. Se ceder, Moscou pode declarar guerra, mas se Lula ignorar a pressão pode fazer do Brasil um pária internacional.

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