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Rússia traz balé e cantor de Putin que defende a guerra para fazer propaganda política no Brasil
O cantor preferido do ditador Vladimir Putin, Ildar Abdrazakov, vem defendendo a invasão da Ucrânia pela Rússia.| Foto: EFE/SERGEI CHIRIKOV

O Brasil é o palco da nova edição do Russian Seasons, projeto internacional da ditadura de Vladimir Putin que leva eventos alegadamente culturais para outros países. Peças de teatro, ballet e exposições artísticas estão ocorrendo no Rio de Janeiro e São Paulo neste mês de junho. Apesar do viés cultural, analistas avaliam que o projeto é uma estratégia de soft power russo para expandir sua influência política no Brasil.

Após realizar interferências na cena cultural da Rússia, Putin aposta ainda nos laços com artistas russos como instrumento de propaganda. Um dos principais exemplos é o cantor de ópera Ildar Abdrazakov, que está em solo brasileiro após ter tido apresentações canceladas nos Estados Unidos e na Europa por ter feito declarações de apoio à invasão militar da Ucrânia pela Rússia e ser muito próximo do ditador Vladimir Putin.

"No meio de um cenário como a guerra, em que a Rússia vem enfrentando bastante dificuldade de ganhar apoio e até algum tipo de respeito dos outros países, essa campanha aparece justamente para tentar amenizar um pouco a imagem que a Rússia tem no mundo", avalia Giovana Branco, que é mestre em relações internacionais e especialista em Rússia.

O Brasil tem atraído cada vez mais atenção da Rússia pois tem potencial para exercer liderança política em meio aos países da América do Sul e até do chamado Sul Global (termo usado para designar os países em desenvolvimento). Na área econômica, já se tornou o terceiro maior comprador de derivados de petróleo oferecidos por Moscou a baixos preços para compensar prejuízos causados por sanções internacionais. A reportagem entrou em contato com a embaixada da Rússia no Brasil para comentar o tema, mas não recebeu resposta até a publicação da matéria.

De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, Putin tem promovido o intercâmbio cultural como uma forma de "limpar a imagem" russa que se deteriorou com a guerra — a estratégia é chamada de soft power (força suave, em português literal). "Esse evento [o Russian Seasons] tem justamente o objetivo de fazer com que os brasileiros conheçam a cultura russa de uma forma que as pessoas também admirem também a Rússia. Acho que esse é o principal ponto de fazer esse tipo de projeto em meio a um conflito armado é transformar a imagem que as pessoas têm sobre os russos", avalia Branco.

O doutor em relações internacionais e pesquisador da Universidade de Harvard Vitélio Brustolin, explica que o soft power tem capacidade de influenciar o comportamento ou percepção das pessoas através de métodos sutis, como a música ou o cinema por exemplo. "A Rússia faz isso com seus escritores, seu teatro e principalmente seu ballet, que é conhecido no mundo todo", conta.

Foram apresentações como as que o Brasil recebe que foram barradas em diversas regiões do mundo. Os Estados Unidos, e algumas nações na Europa e Ásia, por exemplo, cancelaram apresentações do balé russo nos últimos dois anos com a intenção de frear essa estratégia. O soft power utiliza-se de ferramentas sutis para influenciar as pessoas e moldar percepções sobre determinados temas ou um país.

Longe de ser uma exclusividade russa, a manifestação artística é explorada como "arma" política por diversos países. Vitélio Brustolin relembra que "Hollywood e o próprio cinema americano são uma ferramenta de soft power dos Estados Unidos, assim como o K-Pop da Coréia do Sul".

Russian Seasons traz ao Brasil aliados de Putin "sancionados" pelos EUA e Europa

No Brasil, o Russian Seasons teve início na segunda-feira (17), no Theatro Municipal do Rio, no Rio de Janeiro. Além das apresentações e exposições artísticas, o projeto também inclui uma palestra sobre a cultura russa. Ao todo, são treze eventos para "celebrar a cultura russa" no Brasil. O projeto é uma promoção viabilizada pelo Ministério da Cultura da Rússia com apoio do Ministério da Cultura brasileiro.

Durante o evento de abertura, que aconteceu no Theatro Municipal do Rio nesta segunda (17), a ministra da Cultura da Rússia, Olga Lyubimova, acompanhou a agenda. Ocupando o posto desde 2020, Lyubimova está na lista de sanções dos Estados Unidos, da União Europeia e do Reino Unido e tem sido uma defensora da guerra contra a Ucrânia. Quem também está de passagem pelo Brasil por causa do evento e está na mira de sanções ocidentais, é Ildar Abdrazakov, músico aliado do ditador Vladimir Putin e que participou da abertura do Russian Seasons no Rio de Janeiro.

O baixo (cantor com um tipo de voz mais grave) é um cantor clássico russo e foi apontado como uma pessoa próxima de Putin. Após declarações de apoio ao Kremlin diante a invasão russa à Ucrânia, Abdrazakov teve apresentações canceladas nos Estados Unidos e em países da Europa. No ano passado, o músico também declarou apoio à reeleição de Putin para a presidência da Rússia. O autocrata foi reeleito para seu quinto mandato em um pleito contestado pela sua legitimidade, especialmente por potenciais candidatos de oposição terem sido assassinados ou impedidos de concorrer livremente.

Na última semana, o músico ganhou uma premiação do ditador russo pelo "seu trabalho nas artes russas". A premiação foi vista como um reconhecimento da lealdade de Abdrazakov ao governo russo. O apoio declarado a Putin resultou no cancelamento de contratos do cantor com óperas em Paris e Zurique. No Brasil, o baixo faz três apresentações na capital carioca.

A máquina de influência russa e o interesse no Brasil

A presente edição do Russian Seasons desembarca no Brasil ao mesmo tempo em que Vladimir Putin tenta uma aproximação com o governo brasileiro através do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Desde que invadiu a Ucrânia, a Rússia foi isolada pelas nações democráticas do Ocidente, sendo alvo de embargos comerciais que deram à Rússia o título de país mais sancionado do mundo.

"É uma escolha com certeza direcionada, não é por acaso que a Rússia coloca um evento como esse no Brasil [...] Não é à toa que o Brasil é escolhido neste cenário em que a Rússia tem menos parceiros em potencial para sediar um evento como esse. A Rússia agora está em um momento em ela coloca seus esforços nos aliados em potencial, e o Brasil com certeza é um desses aliados", explica Giovana Branco, que também é doutoranda em Ciência Política.

A Ucrânia resiste à invasão não provocada da Rússia há mais de dois anos. A agressão internacional começou quando o ditador russo ordenou, em fevereiro de 2022, que suas tropas invadissem o território vizinho. Em meio ao seu isolamento, Moscou buscou estreitar laços com antigos parceiros, sobretudo os países-membros do Brics (acrônimo para o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que agora também conta com Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos). A aproximação com o Brasil rendeu a Putin retornos econômicos e, conforme revelou a Gazeta do Povo, o país se tornou o segundo principal importador de diesel russo.

O Brasil como membro dos Brics e agente influente na América Latina, pode justificar o interesse de Putin em apostar na aproximação com Lula. Na concepção de Giovana Branco, esse evento visa ainda moldar a percepção que a população brasileira tem dos russos.

A Rússia já apostava em sua máquina de influência para conquistar novos espaços. O principal alvo do país foram nações africanas. Vitélio Brustolin ainda explica, porém, que para diferentes regiões, são aplicadas estratégias diferentes. O método utilizado por Putin para aumentar sua integração junto ao continente africano foi através do que os especialistas chamam de hard power (força 'bruta', em português literal): poder militar e econômico.

Por meio do envio de mercenários e empresas mineradoras e de energia para explorar riquezas naturais de países como Mali, República Centro Africana e República Democrática do Congo, a Rússia expandiu sua influência em território africano pelo menos desde a última década. Essa tendência foi impulsionada pela invasão à Ucrânia. Em troca de influência diplomática, Moscou passou até a cuidar da segurança e das campanhas políticas de presidentes e líderes regionais.

A Rússia fornece armas, apoio e treinamento militar para diversas nações africanas. Apenas no ano passado, Putin anunciou a assinatura de acordos de cooperação militar com mais de 40 países do continente. Desde as investidas do Kremlin no continente, o bloco emergiu como o mais simpático à Rússia nas Nações Unidas: numa votação de fevereiro de 2023, conclamando a Rússia a retirar-se da Ucrânia, 22 países da União Africana, de 54 membros, se abstiveram ou não votaram.

Putin é acusado de interferir politicamente na cultura russa

Na Rússia, a cultura e a política possuem proximidades históricas. O Teatro Bolshoi, local onde nasceu o Balé e a Ópera Bolshoi, uma das maiores e mais renomadas companhias de balé e óperas do mundo, já recebeu fortes atores políticos da história russa para atos além da cultura. O espaço do teatro foi inaugurado em 1825 e em fevereiro de 1946 foi utilizado por Joseph Stalin como palco para o discurso em que ele afirmou que "o capitalismo mundial avança através da crise e das catástrofes da guerra”.

Política e cultura convergem desde então. Em 2022, depois que as tropas russas invadiram a Ucrânia, o Bolshoi apresentou Spartacus, de Aram Khachaturian, um balé de 1956. Em entrevista ao jornal The New York Times, em abril de 2022, o professor de Princeton e historiador do Bolshoi, Simon Morrison, explicou que a apresentação faz uma representação sobre "a libertação dos oprimidos" e que pretendia harmonizar com "os princípios ideológicos da União Soviética".

À imprensa, o Bolshoi afirmou que os lucros provenientes do balé seriam revertidos para ajudar os familiares dos militares enviados à “operação especial” na Ucrânia — essa é a forma como a invasão russa à Ucrânia é tratada pela Rússia com sua população. Ainda de acordo com o jornal norte-americano, a apresentação teria acontecido após pressão de Vladimir Putin para intervir na direção do teatro.

Após o início da agressão russa à Ucrânia, diversos artistas do Bolshoi deixaram o teatro como uma forma de protesto à guerra. O então diretor-geral do teatro, Vladimir Urin, foi uma das figuras que assinou uma carta pública anti-guerra. A iniciativa, contudo, não agradou ao ditador russo. Após o posicionamento, Putin sugeriu unir o Bolshoi ao Teatro de Mariinsky, a outra principal academia de teatro da Rússia, mas com sede na cidade de São Petersburgo. A intenção de Putin era passar a direção do Bolshoi ao maestro Valery Gergiev, que era diretor artístico e geral de Mariinsky. Mas mais do que isso, o maestro era um aliado de Putin.

Assim como o baixo Ildar Abdrazakov, que está no Brasil para apresentações no Russian Seasons, o maestro Valery Gergiev possui fortes laços com Putin. De acordo com o jornal The Guardian, o artista teria apoiado, em 2014, a anexação da Criméia à Rússia, além de ter declarado apoio às eleições de Putin para a presidência russa. Após o início da guerra, o músico se recusou a distanciar-se de Vladimir Putin e viu sua carreira musical com o Ocidente esvaecer.

Valery Gergiev foi considerado persona non-grata e teve apresentações canceladas na Alemanha, França e Estados Unidos. O maestro também perdeu cargos em renomadas instituições culturais em países como Suíça e Itália. Por outro lado, o posicionamento do maestro estreitou sua relação com Putin. Em dezembro de 2023, quase dois anos após o início da guerra, Putin nomeou Valery para a direção-geral do Bolshoi, oficializando sua interferência no principal símbolo cultural da Rússia.

Para atrair mais público e difundir a propaganda, os eventos do Rússia Seasons no Brasil são oferecidos praticamente de graça, por preços de aproximadamente R$ 5.

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