Nesta quarta-feira (13), quando começa a Cúpula do Brics, em Brasília, o governo brasileiro precisará lidar com dois assuntos delicados para as relações com os países do grupo: a crise na Venezuela e a queda de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia.
Sobre o caso venezuelano, há pela frente uma missão quase impossível para os encontros com autoridades de outros países do grupo, especialmente China e Rússia: tentar convencê-los a lançar ao menos algum sinal de reprovação contra o regime de Nicolás Maduro.
Em relação à Bolívia, a recente renúncia de Evo Morales, ex-presidente do país, foi recebida com indignação pela Rússia, que classificou o evento como um golpe de estado. Neste caso, a tendência é que o governo brasileiro evite polêmicas, ainda que as divergências sobre a interpretação dos acontecimentos seja óbvia.
Segundo a agência de notícias russa Sputnik, a situação na Bolívia deverá ser tema de conversa bilateral entre Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Jair Bolsonaro. Será a primeira reunião mais prolongada entre os dois. Na reunião do G20, em Osaka (Japão), eles se encontraram brevemente.
A programação oficial da Cúpula do Brics ocorre entre quarta-feira (13) no fim da tarde e quinta-feira (14) no início da tarde, mas encontros bilaterais com líderes e chanceleres estão programados para antes e depois do evento, e articuladores da chancelaria dos cinco países já têm se reunido desde segunda-feira (11).
Grupo de Lima pressiona Itamaraty a falar da Venezuela com Brics
Durante a reunião do Grupo de Lima, na última sexta-feira (8), Julio Borges, comissionado para as relações exteriores do governo Juan Guaidó, defendeu uma política de aproximação com Rússia e China para solucionar o problema da Venezuela.
Em sua visão, os dois governos se tornaram financiadores do regime de Maduro, mas é possível convencê-los a abandonar ao menos parcialmente essa conduta. “Hoje, a engenharia financeira que mantém o regime no poder é eminentemente russa. Eles têm ali um papel medular, e nós podemos chegar a eles”, disse Borges a Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores do Brasil, e outros chanceleres presentes.
“E os chineses, como os senhores sabem, creio que são pessoas que, em dado momento, estariam dispostos a apoiar uma solução ‘ganha-ganha’ [isto é, com vantagens para os dois lados] no caso venezuelano”, acrescentou.
O chanceler do Peru, Gustavo Meza-Cuadra, disse na mesma reunião que “é necessário trabalhar para que a pressão venha também dos países que apoiam o regime”, que devem ser levados “a compreender que a situação é insustentável e compromete seus próprios interesses na Venezuela e na região”.
Diante dessas falas, Araújo foi questionado durante a coletiva de imprensa sobre como abordaria o tema Venezuela nas reuniões do Brics, mas respondeu de forma vaga. Afirmou que quer expor a percepção “de que nós somos, no Brics, o único país sul-americano, o único país vizinho da Venezuela” e que, por isso, o grupo deve tomar o Brasil “como referência para entender a realidade da Venezuela”.
“Continuamos tendo a esperança de que, ao perceber de maneira mais profunda a realidade do sofrimento do povo venezuelano, os demais países do Brics possam se dispor a ser uma parte da solução para esse problema”, disse o ministro.
A resposta foi acertada entre membros do Itamaraty. Dias antes, o secretário de Política Externa Comercial e Econômica do ministério das Relações Exteriores, Norberto Moretti, havia afirmado: “Nós somos vizinhos e enfrentamos as consequências muito práticas do que acontece hoje na Venezuela, muito especialmente sob a forma de influxos migratórios que ocorrem em Roraima. Sem nenhuma arrogância, acreditamos que a avaliação que o Brasil faz da situação da Venezuela deve ser ouvida com grande atenção pelos membros do Brics.”
Por que é tão delicado falar sobre a Venezuela com Rússia e China
Fortes interesses comerciais e geopolíticos tornam quase inútil o esforço de dissuadir chineses e russos de apoiar Nicolás Maduro.
Segundo Pedro Feliú Ribeiro, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP), China e Rússia são contrárias a qualquer tipo de sanção contra Maduro porque têm altos investimentos no país sul-americano e, além disso, não querem dar sinais de que abandonaram o princípio de não-intervenção.
Do ponto de vista comercial, os russos não querem perder um dos maiores compradores de seus produtos bélicos. “A Rússia virou o principal fornecedor de material bélico para a Venezuela, que passou a ser um dos grandes compradores do mundo. Com a alta do preço do petróleo nos anos 2000 e uma política nacionalista do chavismo muito vinculada às forças armadas, a Venezuela teve um grande fortalecimento bélico. A Rússia virou o grande fornecedor da Venezuela”, diz Ribeiro.
Segundo o professor, a crise econômica venezuelana não desmantelou essa relação comercial. “Mesmo em crise, mesmo com uma moeda pulverizada, a Venezuela ainda utiliza o petróleo como forma de garantia. Ela recebe o financiamento, compra o equipamento militar e dá o petróleo como garantia para a Rússia”, explica.
No caso da China, o comércio é mais diversificado, e a crise não afetou de forma substancial a parceria com os venezuelanos. “Mesmo no auge da crise venezuelana, a China continua investindo na Venezuela. Em 2015 e 2016, por exemplo, houve um volume de investimento significativo”, afirma Ribeiro.
Além do comércio, outro aspecto que desincentiva chineses e russos a tomar partido contra Maduro é o princípio de não-intervenção internacional adotado pelos dois países.
Ribeiro recorda que mesmo durante a intervenção russa na situação política da Ucrânia em 2014, Putin e a chancelaria da Rússia se esforçaram para sugerir que a revolta emanava da população da Crimeia.
Segundo o professor, as diversas tensões separatistas existentes tanto na China como na Rússia, países de dimensões continentais, fazem com que ambos os governos sejam cautelosos com a ideia de intervir em outras nações. Não querem, com uma atitude do tipo, abrir precedente para que haja intervenção internacional em seus próprios territórios.
Tese de golpe na Bolívia é motivo de discordância do Itamaraty com russos
Em duas notas oficiais publicadas em dias seguidos, os ministérios das Relações Exteriores doe Brasil e da Rússia mostraram sua discordância em relação à situação da Bolívia, onde o ex-presidente Evo Morales renunciou depois de denúncias de fraude no processo eleitoral do país.
Na segunda-feira (11), a chancelaria russa sugeriu que houve um golpe de estado na Bolívia. Em nota, afirmou que que os eventos que levaram à renúncia de Morales da presidência da Bolívia seguiram “as diretrizes de um golpe de estado orquestrado”.
Na terça-feira (12), o Itamaraty publicou uma nota em que “rejeita inteiramente a tese de que estaria havendo um ‘golpe’ na Bolívia”. Afirmou que Morales perdeu sua legitimidade como presidente “após a tentativa de estelionato eleitoral”, e que sua renúncia “abriu caminho para a preservação da ordem democrática”.
Ernesto Araújo e o presidente Bolsonaro já se pronunciaram sobre o assunto, criticando aqueles que classificaram como golpe de estado os acontecimentos na Bolívia.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, auxiliares da presidência sugeriram que o tema da Bolívia seja evitado pelo governo brasileiro durante a Cúpula do Brics. No entanto, é pouco provável que o tema deixe de ser abordado. Segundo a agência russa de notícias Sputnik, a chancelaria russa afirmou que o assunto deve ser uma pauta das reuniões que acontecem em Brasília.
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