Ex-titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco) do Rio de Janeiro, o ex-delegado Cláudio Ferraz conhece bem a atuação das milícias no estado. Conhecido no Rio como “O caçador de milícias”, Ferraz investigou a atuação desses grupos de 2007 a 2011, período em que esteve à frente da Draco - unidade que foi responsável pela prisão de quase 800 milicianos.
O delegado aposentado figura como um dos coautores do livro “Elite da tropa 2”, best-seller que inspirou o segundo filme da franquia “Tropa de elite”. No filme de José Padilha, o Capitão Nascimento (Wagner Moura) sai do Batalhão de Operações Especiais (Bope) para a Subsecretaria de Inteligência e descobre que a corrupção policial vai muito além do "arrego" pago por traficantes. O filme de Padilha traça um retrato das milícias no Rio, formadas por policiais.
No início de junho, Ferraz participou de uma reunião do Fórum Permanente de Segurança Pública do Rio de Janeiro na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj). Durante o evento, falou sobre sua experiência no combate à essas organizações - que ele e os demais participantes consideram uma ameaça à própria democracia.
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, Ferraz analisa o panorama da atuação das milícias no Rio de Janeiro de 2019 - oito anos depois que ele deixou de ser titular da Draco. O delegado aposentado diz que é preciso desmistificar as milícias e parar de enxergá-las como mal menor.
Confira a entrevista:
O senhor investigou as milícias por muito tempo e mencionou a cooptação, a intimidação e a eliminação, como métodos que grupos criminosos utilizam para sobreviver. Podemos dizer que a sociedade está cooptada pela milícia?
No sentido amplo eu creio que sim. Conforme eu havia dito, já existiam várias iniciativas, tanto na Itália quanto nos Estados Unidos, isso há mais de 30 anos, informando que um dos pilares fundamentais para você combater as organizações criminosas é a divulgação, o esclarecimento do povo do que realmente acontece, para evitar aquelas místicas de que se tratam de mal menor, de que se tratam de grupos que estão defendendo a população contra um inimigo tirânico.
Tanto é que o próprio nome milícia é um nome equivocado. Porque milícias são grupos de combate a uma opressão. Então existem discursos de legitimação, discursos que levam à manipulação da população. Então quanto mais houver esclarecimento, como essa iniciativa desse tipo de evento, imprensa jogar o holofote para esse tipo de atividade para que efetivamente haja uma eliminação desse discurso, essa contra informação do que realmente representa.
O que são esses grupos? Esses grupos são empresas ilegais que buscam o lucro. Mas, naturalmente, procuram se assenhorear de discurso de legitimação. Então, quanto mais fizer em termos da imprensa, que é fundamental se esclarecer quais são as verdadeiras práticas, o que se esconde por trás dessas práticas, é fundamental para que a população não seja manipulada.
Então, se você colocar nesse sentido amplo, posso afirmar que é uma das formas de cooptação, além da corrupção individual de cada agente para criar um ambiente de impunidade para esses integrantes, com o objetivo de atingirem o lucro que eles querem.
Em casos como Muzema, é fácil explicar por que a milícia é tão nociva. Afinal, prédios caíram, morreram pessoas. Mas quando a milícia opera, por exemplo, um sistema de transporte clandestino onde o transporte público não chega, como explicar que isso é errado, que também é um problema?
Sempre se questiona a população apoiar esse tipo de organização, mas também em que condições essa população está sendo instada a se manifestar? Seria, com as devidas proporções, perguntar para a pessoa se ela prefere ser morta com um tiro ou dez. A morte é inevitável. Então qual é o objetivo que a população quer e qual é o objetivo que as forças de segurança e justiça criminal deveriam adotar: distensionar para que a população tivesse tranquilidade para se desenvolver, nem com a milícia, nem com o tráfico ou outras organizações.
Agora, quando você chega a uma população que está imersa em um ambiente onde não tem opção, em tese ela vai optar por uma escolha que seria o mal menor. Mas o agente público responsável pelo estado não pode fazer esse tipo de pontuação, ele tem que combater de igual forma. Aliás, tem que combater com muito mais ênfase o grupo que cria efetivamente e objetivamente um risco para o Estado Democrático de Direito.
Veja bem, quando você se estabelece em uma área e você começa a criar monopólios, você está atacando o livre mercado, o livre comércio, que é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Quando você cria currais eleitorais, você está minando, você está vilipendiando a própria democracia. Então o risco disso é altíssimo, até porque se ele está ali oferecendo serviços que são demandas, necessidades que a população tem e o Estado não oferece, quando você vê elementos do Estado, turbinados por essa deficiência assumindo cargos no Estado que são cargos que deveriam estar vindo para minimizar e oferecer os serviços, ele não quer que melhore. Então se cria um círculo vicioso para se permanecer a população sempre em um estado de necessidade, que vá manter o domínio do curral eleitoral e com ganho financeiro do domínio da comunidade.
Então a gente fica em uma situação que não vai conseguir nunca evoluir.
É um problema para a democracia, em última análise?
É um problema para a democracia e que não vai ser solucionado com ações pontuais de organizações policiais combatendo os crimes praticados por eles. Como já dizia o falecido juiz [italiano] Falcone [que combateu a máfia italiana], você tem que destruir a organização, não simplesmente combater o crime praticado pela organização. Até porque você prende João, Manuel e Antônio, a reposição é imediata porque o recrutamento é imediato.
E como combater a organização?
Poderemos usar o chavão antigo de vai-se atrás do dinheiro, vai-se atrás das deficiências e se organiza de uma forma interdisciplinar soluções para essas deficiências. Você começa a pavimentar de uma forma que impede que essas organizações se destacam. E essa guerra é eterna, porque as demandas são enormes e a coisa avança por aí.
Com mais um detalhe: esse assunto tem que ser debruçado sem paixão, sem emoção, sem ideologia política, de uma forma bastante clara, objetiva e racional. Aí se fala, não temos dinheiro para isso. Já levantaram o custo que isso representa para o Estado? É uma questão de decisão, só que eu não quero porque é uma forma de fazer política que me interessa. Então essa é uma situação que precisa ser identificada e divulgada para que a população decida o que vai fazer.