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Diante de uma série de pressões sobre várias áreas do governo, desde falhas no combate à epidemia de dengue até turbulências nos mercados diante das incertezas fiscais, somadas às greves dos servidores, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) testa limites justamente da área mais frágil do governo: a articulação política com o Congresso.
A briga pública este mês entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, resgatou o fantasma do impeachment de Dilma Rousseff (PT), iniciado após uma crise semelhante. Embora a chance de um processo de destituição de Lula ainda soe remota para a maioria dos analistas, o governo sentiu-se acossado e tratou de tentar reagir às especulações.
O sinal amarelo para o risco de Lira desengavetar um dos 19 pedidos de impeachment de Lula protocolados na Câmara foi aceso primeiro pelo líder governista na Casa, José Guimarães (PT-CE), em entrevistas, e depois pelo próprio presidente da República, assustado com o encaminhamento no Congresso de demandas da oposição e as “pautas-bomba” que aumentam as despesas públicas e têm um impacto estimado em até R$ 80 bilhões sobre o Orçamento da União.
Lula convocou reunião emergencial com seus articuladores no Congresso na sexta-feira (19) e continuou as cobranças por melhora no diálogo com parlamentares em evento público na segunda-feira (22), puxando a orelha de ministros, inclusive do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB). No domingo (21) o presidente recebeu Lira para uma conversa no Palácio do Planalto. O presidente da Câmara não comentou sobre o que foi tratado, mas analistas avaliam que uma trégua temporária pode ter sido estabelecida.
Na terça-feira (23), o presidente voltou a admitir falta de apoio sólido no Legislativo e que precisa negociar, ressalvando que não abrirá mais espaços de poder para o Centrão.
Nessa toada, Haddad antecipou a volta dos Estados Unidos para acompanhar a votação do veto de Lula a R$ 5,6 bilhões de emendas parlamentares - a sessão foi adiada -, renegociar o programa de socorro ao setor de eventos (Perse) e enviar os projetos de regulamentação da reforma tributária, cuja tramitação já corre de forma independente.
5 semelhanças e 5 diferenças da crise enfrentada por Dilma
Lula resiste a fazer como seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que jogou pragmaticamente com o contexto de mais poder do Congresso, que manteve na gaveta cerca de 150 pedidos de impeachment. Muito além de transferência de recursos do Orçamento, os parlamentares do Centrão querem mais influência no governo, algo que o PT rechaça por completo, a exemplo da continuidade de Nísia Trindade à frente do Ministério da Saúde.
Neste contexto, a presença constante pelos corredores da Câmara do ex-presidente da Casa Eduardo Cunha, que deflagrou o impeachment de Dilma, gera alertas de perigo iminente para Lula. Apesar das semelhanças, há, contudo, importantes diferenças entre os conflitos Dilma-Cunha e Lula-Lira, que podem definir o seu desfecho. Veja quais são esses pontos.
Semelhanças:
- Base parlamentar frágil: Tanto na briga entre Lula e Lira quanto na disputa entre Dilma e Cunha, a fragilidade da base parlamentar do governo se mostrou evidente, tornando a governabilidade um desafio constante.
- Pautas-bomba: Em ambas as situações, a presença de pautas-bomba representou pressão adicional sobre o Orçamento, dificultando o equilíbrio fiscal e o cumprimento de metas econômicas. Até o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), aliado do governo, contribuiu com a proposta de novo privilégio de R$ 42 bilhões anuais para juízes, que está em análise no Senado.
- Erros de articulação política: Tanto Lula quanto Dilma resistem a mudar os rumos e deixam a articulação com o Congresso na mão de articuladores que enfrentam dificuldades. Os dois governos apresentaram erros de negociação pelo Planalto, somados à teimosia dos presidentes em modificar pautas que se mostravam inviáveis de serem levadas adiante.
- Escândalos envolvendo o PT: Mesmo após a liberdade de Lula e do desmantelamento da Lava Jato, novos fatos envolvendo falta de transparência e má gestão de governos petistas voltaram a incomodar. Um exemplo foi o escândalo envolvendo o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, investigado pela Polícia Federal por uma suposta relação criminosa com um dos proprietários da Construservice, empreiteira suspeita de desvios na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).
- Nova matriz econômica: A decisão de Lula de repetir o modelo da "nova matriz econômica" de Dilma – conjunto de medidas econômicas tipicamente intervencionistas que levaram ao colapso das contas públicas e a uma recessão profunda – agravou os desafios para seu governo e criou novos, em boa medida gerados pela sua visão estatista do problema e das soluções, alimentando incertezas no horizonte. Este fator, porém, foi contido por reformas já feitas.
Diferenças:
- Lula não é Dilma: Apesar de pertencerem ao mesmo partido, Lula e Dilma têm histórias distintas, estilos políticos e estratégias diferentes. O presidente ainda se nutre de uma persona carismática, enquanto Dilma foi engolida pelas crises que gerou por falta de jogo de cintura e experiência.
- Lira não quer repetir erros de Cunha: Ao contrário de seu antecessor na presidência da Câmara, Arthur Lira busca adotar uma postura cautelosa e ampliar retaguardas. Em relação às retaliações, Lira tem perfil mais agressivo no varejo cotidiano de barganhas do que no atacado das ameaças. Ele também espera que governistas apoiem a candidatura de seu sucessor – ainda indefinido – nas eleições para a presidência da Câmara em fevereiro de 2025.
- Economia ainda não afundou: Ao contrário do período sob o governo de Dilma, a economia ainda não atingiu níveis tão críticos sob a gestão de Lula, embora enfrente desafios significativos que já afastaram investidores. A recessão brutal e a inflação explosiva de Dilma parecem distantes devido às reformas aprovadas nos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
- Poder da Câmara aumentou: O poder da Câmara dos Deputados cresceu consideravelmente desde o período de Dilma, nos governos Temer e Bolsonaro, além do atual. Os deputados exercem uma influência ainda maior sobre a pauta de votações e sobre fatias do Orçamento da União.
- Superioridade da oposição nas ruas e redes sociais: A oposição trava com o governo um contexto absolutamente polarizado, com a diferença de que seu líder na direita, Bolsonaro, consegue mobilizar apoio popular nas redes sociais e nas ruas de forma bem superior do que os governistas. Os oposicionistas exploram esse contraste como a prova de um "presidente sem povo". Não por acaso, o Planalto licitou quatro empresas de comunicação digital para reagir.
Fatores de impeachment foram postos em marcha
Mesmo que consiga desarmar insatisfações no Congresso, o governo continuará sob forte tensão. Após Fernando Collor de Mello (1992) e Dilma Rousseff (2016) – políticos e observadores consagraram uma espécie de manual sobre o tema, que fixa três pré-condições para que o processo para afastar um chefe do Executivo ocorra: situação econômica desfavorável, manifestações populares nas ruas e falta de apoio parlamentar ao governo. Este último ponto, encorajado pelos demais, pode gerar a crise que faz presidentes da Câmara puxarem o gatilho.
O último pedido de impeachment de Lula, encabeçado pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), reuniu 140 assinaturas de colegas e foi engavetado por Lira por achar que não havia as pré-condições. Após 15 meses do início do terceiro mandato de Lula, os fatores de impeachment estão em fase embrionária, sem atingir estágio incontornável.
Os indicadores econômicos enfrentam abalos fustigados pela inconsistência fiscal e pela conjuntura internacional adversa. Os protestos de rua contra o governo, que foram reprimidos pelo ativismo judicial, sobretudo após o 8 de janeiro de 2023, ressurgiram um ano depois, impulsionados por convocações do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), como os grandes atos políticos em São Paulo, de 25 de fevreiro, e no Rio de Janeiro, no último domingo (21).
Apesar de associadas à oposição, as manifestações refletem também insatisfação da sociedade com a piora do custo de vida, a insegurança pública, as deficiências no sistema de saúde e as polêmicas na agenda de costumes e na política externa do governo. Essa situação está refletida nas pesquisas de aprovação do governo, o que motiva demonstrações cotidianas de preocupação de Lula, que chegou a sugerir a criação de um SAC para ouvir reclamações.
PT se opõe a Lira e ao ajuste fiscal e piora crise
Em meio a tudo isso, a postura de enfrentamento da presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), contra Lira e contra o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adiciona risco extra à governabilidade. O cientista político e consultor eleitoral Paulo Kramer destaca que o momento decisivo na crise entre Dilma e o então presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ) foi exatamente a incapacidade da presidente em controlar a bancada do PT, que se posicionou contra o Cunha no Conselho de Ética. A isso se seguiu a implementação das emendas parlamentares obrigatórias e, por fim, o afastamento de Dilma.
“Em seu terceiro mandato, Lula enfrenta dificuldades em governar sem se apoiar no presidencialismo de coalizão, modelo desmantelado por Cunha. Como resultado, o governo, já fragilizado pela queda na aprovação popular, irrita Lira com cada tentativa de subjugá-lo, provocando respostas enérgicas”, explicou. Apesar de Lira ter chamado Padilha de incompetente e desafeto, Lula afirmou que manteria o ministro no cargo "só por teimosia" e ainda devolveu a ele o poder de liberar emendas parlamentares.
O Planalto também não se ajudou ao demitir um primo de Lira da chefia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Alagoas. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira (PT), tratou de dizer no fim da semana passada que o impasse criado pela demissão de Wilson César Santos, a pedido do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), acabou e Lira foi convidado a indicar o sucessor de Santos.
“Se Lula insistir muito em confrontar o presidente da Câmara, corre o risco de seguir o mesmo destino de Dilma. Essa ameaça é ampliada e acelerada pelo fato de que Lira não pode ser reeleito para um terceiro mandato consecutivo, o que o preocupa com possíveis retaliações por parte do PT quando estiver fora do cargo, especialmente durante a pré-campanha eleitoral de 2026”, salientou o cientista político Paulo Kramer.
Economia é o maior risco para o mandato de Lula
Os pedidos de impeachment de Lula apontam crimes de responsabilidade que vão da reunião com o ditador venezuelano Nicolás Maduro no Brasil até a comparação que fez da ação militar de Israel contra o grupo terrorista Hamas ao nazismo. Mas os maiores riscos para o mandato de Lula estão mesmo na economia, após ter caído na armadilha da “nova matriz econômica”, que acabou custando o mandato de Dilma, com rejeição popular alta.
O analista financeiro Vandyck Silveira explica que o governo atual repete os erros de Dilma na expansão fiscal agressiva, elevando o endividamento à casa de 80% do Produto Interno Bruto (PIB). “A persistir desse modelo, espera-se a resiliência de juros, baixo crescimento do PIB, mais pressão inflacionária e salto na dívida pública”, disse. Para piorar, o esforço de Lula para recuperar popularidade leva à queda de braço com o Congresso por verbas.
Segundo o especialista, a independência do Banco Central (BC) evitou a explosão inflacionária da era Dilma e, não por acaso, o mercado prevê efeitos negativos na saída do presidente da autoridade monetária, Roberto Campos Neto, no fim do ano. “Temo que déficits orçamentários persistentes do governo tirem credibilidade do país e cobrem juros maiores para os títulos da dívida”, avalia.
O cientista político João Henrique Hummel, diretor da Action Consultoria, avalia que Lula tem colocado em risco o desempenho de seu governo toda vez que desafia a realidade adversa no Congresso. “Lula se esquece que tem dois anos a mais para governar. Se provocar a ira da base parlamentar que já não é dele, qual futuro pode esperar?”, questiona.
“Eduardo Cunha tinha uma pergunta emblemática: vamos para o voto? O voto é de quem representa a sociedade. Quem não tem maioria teme o voto do plenário e sofre com as intrigas. Foram votados requerimentos e projetos na Câmara semana passada e o governo não fez nem cócegas para barrar e ainda brinca de não pagar emendas. O que isso vai dar?”, questiona.