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Os instrumentos e mecanismos capazes de coibir a corrupção no Brasil retrocederam em 2019, no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro. É o que revela a edição 2020 do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (CCC), do site Americas Quarterly, que avaliou países da América Latina numa escala de zero a 10 ao longo de 2019. Apesar de o Brasil continuar na quarta colocação, com nota 5,52, houve um declínio de 10% em sua pontuação em relação a 2019 – a maior queda entre os 15 países avaliados. Os retrocessos teriam origem nos três poderes: Executivo, Judiciário e Legislativo.
O índice mede a capacidade dos países da América Latina para detectar, punir e prevenir corrupção e avalia o ambiente que permite a eles lidar com o problema. Segundo o Americas Quarterly, esse ambiente analisado é formado por fatores que vão da independência e eficiência do Judiciário até a força das instituições democráticas, ONGs e do jornalismo investigativo.
O índice corrobora as conclusões da Transparência Internacional, que em janeiro deste ano mostrou que o Brasil manteve-se em 2019 no pior patamar da série histórica do Índice de Percepção da Corrupção (IPC). O país caiu uma posição, ficando em 106.ª, ao lado de países como Albânia, Mongólia, Costa do Marfim, Macedônia, Argélia e Egito no ranking mundial.
Brasil é o país que mais preocupa
O relatório do Americas Quarterly, revista econômica que cobre América Latina e Caribe que pertence ao grupo Americas Society, fundado por David Rockefeller em 1965, aponta o cenário de combate à corrupção no Brasil como o mais preocupante da América Latina. O país apresentou uma queda de 10% em sua nota em relação a 2018, apesar de continuar na mesma posição no ranking. A queda da nota brasileira se deve ao retrocesso na subcategoria “Capacidade Legal”, que caiu 14% em relação ao ano anterior.
O motivo, segundo o Americas Quarterly, é o “perceptível declínio na independência” de órgãos de controle e decisões judiciais recentes que “impactaram negativamente nas investigações de crimes de colarinho branco”. O resultado chama atenção porque havia, em 2019, uma grande expectativa depositada no novo governo que tomava posse no Brasil após 15 anos de domínio da esquerda, envolvida em casos de corrupção. A esperança de melhora também contava com a presença do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro como ministro da Justiça.
Ex-procurador da força-tarefa da Lava Jato, Carlos Fernando Lima encara a piora do país no combate à corrupção como natural. “Não creio que nada aconteça no ritmo que as pessoas supõem devesse acontecer. Creio também que isso é o tipo de avanço que está sempre sujeito a um certo movimento de contradição, então ele sofre retrocessos naturais em momentos de reação do sistema”, diz.
O ex-procurador, porém, admite ter havido retrocessos no ano passado. “Vejo que hoje, se nós demos dois passos para frente, estamos agora dando um passo para trás. Creio, sinceramente, que caminhamos para frente, mas nesse momento a sensação é de um retrocesso e ele é significativo”, afirma.
Fatos que contribuíram para queda na capacidade do Brasil de combater corrupção
A edição de 2020 do CCC lista uma série de acontecimentos ocorridos ao longo de 2019 que puxaram a nota do Brasil para baixo. Os principais fatores estão relacionados aos órgãos de controle e ao Poder Judiciário.
O relatório cita, por exemplo, o fato de Bolsonaro ter quebrado a tradição em 2019 e indicado um procurador-geral da República (PGR) fora da lista tríplice do Ministério Público Federal (MPF). Augusto Aras, que foi escolhido pelo presidente, não concorreu na eleição interna dos procuradores. O relatório também cita a suposta tentativa de Bolsonaro de interferir na Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro — episódio que gerou uma investigação em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e que pode piorar ainda mais a situação do Brasil no ranking do ano que vem.
“Esses movimentos ocorreram enquanto membros da família Bolsonaro estavam sob investigação por lavagem de dinheiro, corrupção e outros crimes”, destaca o relatório, sem citar o nome do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), alvo de uma investigação pela prática de "rachadinha" em seu gabinete quando era deputado estadual.
Acontecimentos no Poder Judiciário também impactaram a performance do Brasil em 2019. O relatório cita o vazamento de mensagens atribuídas a procuradores da Lava Jato e ao ex-juiz Sergio Moro, que “deram um golpe na credibilidade do caso”, segundo o Americas Quarterly. Além disso, o estudo destaca que durante a crise política causada pelos vazamentos, o STF mudou o entendimento sobre a validade da prisão após condenação em segunda instância. “O julgamento levou à soltura de alvos importantes da Lava Jato, incluindo o ex-presidente Lula”, destaca o estudo.
O relatório também cita a menor mobilização popular contra a corrupção e o ambiente mais desafiador para o trabalho de jornalistas como motivos da queda no desempenho brasileiro na capacidade de combate à corrupção.
O ex-procurador Carlos Lima destaca como retrocessos algumas decisões do Congresso, como a aprovação do projeto de lei de abuso de autoridade e as mudanças no pacote anticrime; no STF, como a proibição da prisão em segunda instância e a mudança de entendimento sobre a competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de caixa dois; e do presidente Jair Bolsonaro, com as tentativas de interferência na PGR, na PF, na Receita Federal e no antigo Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.
“Nós podemos dizer que todos os três poderes reagiram contra o combate a corrupção que a Lava Jato representava. A população não mudou de posição, mas ela está um pouco cansada”, avalia.
Para Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, 2019 ficou marcado por vários retrocessos no combate à corrupção. "Apesar de, em 2018, o país ter saído das eleições sob forte influência da pauta anticorrupção, com muito discurso e muita promessa, o que se viu em 2019 foram graves retrocessos legais, institucionais e até retóricos", diz.
"Além das tentativas do governo de enfraquecer a Lei de Acesso à Informação, o Congresso aprovou leis desastrosas, como a reforma que enfraqueceu ainda mais o controle dos gastos dos partidos ao mesmo tempo que aprovaram reforço de caixa bilionário para as agremiações. No campo institucional, houve um crescimento da interferência política sobre os órgãos de controle como há muito tempo não se via", reforça Brandão. "Até no plano retórico foi marcante o retrocesso, com o presidente de República sistematicamente deslegitimando e incitando o ódio de seus seguidores à imprensa e à sociedade civil – o que não é menos grave, pois são dois pilares de controle social da corrupção", completa.
Relatório destaca pontos de atenção para 2020
O relatório do Americas Quarterly também cita alguns pontos de atenção para o Brasil em 2020. O documento lista, por exemplo, as investigações referentes aos filhos do presidente.
“O progresso nas investigações contra os filhos de Bolsonaro aumentará a volatilidade e a polarização políticas, inclusive com pedidos de impeachment com base em obstrução de Justiça. Falhas nas investigações podem reforçar as percepções de que a aplicação da lei foi politicamente seletiva”, destaca o relatório.
“Nós tivemos o episódio da interferência da PF, que foi esse ano, foi grave e agora está nos demonstrando um painel muito complexo que envolve a corrupção da família do presidente e da sua atitude de colocar tudo em risco, todo o seu governo, para salvar seus filhos. Não só seus filhos, porque temos questões com funcionários fantasmas dentro do próprio gabinete do presidente enquanto deputado federal”, diz Lima.
A família e os apoiadores de Bolsonaro são alvos de diversas investigações em andamento. No dia 18 de junho, a polícia prendeu Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente. Queiroz é investigado por operar um esquema de "rachadinha" no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Queiroz foi preso na casa do advogado Frederick Wassef, que advoga para Bolsonaro e seus filhos.
O STF também tem investigações que envolvem apoiadores do presidente, que levaram Bolsonaro a mostrar insatisfação com o ex-diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. O Supremo tem dois inquéritos que podem atingir aliados do presidente em andamento: um investiga a disseminação de fake news; enquanto o outro investiga o financiamento de manifestações antidemocráticas.
A independência da PF e do MPF também é destacada como ponto de atenção para 2020 no relatório da Americas Quarterly. “A independência do Ministério Público Federal e da Polícia Federal sob o governo Bolsonaro continuará sendo uma questão crítica. O presidente investiu em mudanças de liderança para consolidar seu poder, mas a maioria dos funcionários dessas instituições está determinada a resistir a interferências”, destaca o documento.
Em abril deste ano, o ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, pediu demissão do cargo acusando o presidente de interferir politicamente na PF. O presidente trocou o ex-diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, por Alexandre Ramagem. Mas a nomeação foi barrada pelo STF. Quem assumiu o cargo foi Rolando de Souza. O primeiro ato dele no cargo foi trocar o comando da PF no Rio de Janeiro — uma demanda do presidente, que insistia na troca desde agosto de 2019.
Para Brandão, o ano de 2020 agravou os retrocessos no combate à corrupção no Brasil. "A ingerência política sobre os órgãos de controle não apenas continuaram, mas se tornaram tão ostensivas e agressivas que culminaram numa saída escandalosa do principal símbolo da luta contra a corrupção no governo, que era o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, além do próprio presidente da República sendo investigado criminalmente por suas manobras na Polícia Federal", diz o diretor-executivo da Transparência Internacional. "Este processo já vinha escancarando as contradições do governo e agora em cima dele vieram as novas revelações do caso Flávio Bolsonaro, com essa chocante notícia de que quem escondia o Queiroz era aquele obscuro advogado Wassef, que tinha trânsito livre e frequente no Palácio", completa.
O Americas Quarterly também destaca uma preocupação com indicações de Bolsonaro para vagas no STF e no STJ. Até o fim do mandato, o presidente vai poder indicar substitutos para dois ministros do Supremo: Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, além de outros ministros e desembargadores de outros tribunais. “A seleção de figuras políticas alinhadas com o governo levantaria novas questões sobre a independência do Judiciário”, avalia o relatório. A maior parte dos atuais ministros foi indicada na era petista, envolvida no escândalo do mensalão, iniciativa dos petistas para tentar "comprar" o Congresso.
Ponto positivo em 2019 pode piorar nota do Brasil em 2020 no combate à corrupção
Um ponto considerado positivo no relatório sobre a capacidade do Brasil combater a corrupção em 2019 pode acabar piorando a nota do país no próximo relatório: a aproximação com o Centrão.
Segundo o relatório do Americas Quarterly, a ruptura inicial do governo Bolsonaro com práticas do presidencialismo de coalizão, como a oferta de cargos públicos em troca de apoio no Congresso, beneficiou a pontuação do Brasil na subcategoria “Democracia e Instituições Políticas”, com a ressalva de que "essa interrupção, a longo prazo, levanta sérias questões sobre governabilidade”, aponta o documento.
Em 2020, o presidente intensificou a aproximação com políticos do Centrão e já iniciou a troca de cargos por apoio no Congresso, o que pode puxar a nota do Brasil para baixo no índice CCC do ano que vem. Nem sempre essa negociação resulta em casos de corrupção, mas o passado recente do "toma-lá-dá-cá" mostra que os cofres públicos sofreram enormes prejuízos, vide o caso Petrobras na Lava Jato.
2020 trouxe outros retrocessos para combate à corrupção
Além dos retrocessos já mapeados pelo Americas Quarterly para 2020 no Brasil no âmbito do combate à corrupção, há outros pontos que colocam o país cada vez mais para trás nesse tema.
Entre esses fatos, a tentativa do governo de promover mudanças na Lei de Acesso à Informação (LAI) via medida provisória (MP) durante a pandemia de coronavírus. A MP previa a suspensão do atendimento de pedidos via LAI a todos os órgãos e entidades da administração pública cujos servidores estão sujeitos a regime de quarentena ou home office e valia até o fim de dezembro deste ano. Entretanto, a MP foi derrubada por uma decisão do STF no final de abril.
Organizações soam alarme para aumento de casos de corrupção durante pandemia
Organizações que promovem o combate à corrupção têm soado alarmes sobre o provável aumento de casos de corrupção durante a pandemia de coronavírus em países da América Latina. “A necessidade de rapidamente mobilizar recursos massivos — adquirindo equipamentos médicos caros, implementando pacotes de estímulo sem precedentes e muito mais — poderia criar um ambiente propício à corrupção”, afirma o Americas Quarterly. A crise sanitária no Brasil dispensou a necessidade de licitação para contratação de insumos e serviços, abrindo uma janela para casos de corrupção.
Para a organização, o surto de Covid-19 atinge a América Latina depois que a onda anticorrupção ganhou força na região há alguns anos, mas está perigosamente retrocedendo em alguns países.
No Brasil, por exemplo, desvios de verbas relacionadas ao combate ao coronavírus já estão sendo investigados. Escândalos envolvendo desvios de recursos públicos que deveriam ser utilizados no enfrentamento da pandemia se espalharam de Norte a Sul do país. Há casos em São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas, Santa Catarina, Paraíba, Amapá, Pará, entre outros estados.
“O combate à pandemia vai nos causar problemas porque mostra que a corrupção ainda está endêmica. Foi só surgir uma oportunidade de se facilitarem as regras de licitação que as fraudes começaram a acontecer”, lamenta Lima. “Caminhamos claramente para uma piora, de fato. Nada melhorou, mais esses fatos Covid e saída de Sergio Moro [do ministério da Justiça] já indicam que a situação vai piorar”, completa o procurador aposentado.
Brandão concorda. "Estamos vivendo agora na pandemia a tempestade perfeita da corrupção, com gastos públicos extraordinários e flexibilização sem precedentes dos controles. Os retrocessos do governo federal na transparência dos dados da pandemia, associados aos inúmeros escândalos nos estados e municípios também projetam uma imagem muito ruim para o país no mundo – e não tem discurso populista que resolva isso", diz.
Para Lima, as mudanças e a consolidação da agenda anticorrupção no país levam tempo. “Precisamos trabalhar na próxima eleição com uma pauta de retorno a avanços legislativos no combate à corrupção”, diz. Brandão lembra que a Transparência Internacional lançou em 2018 um pacote com medidas para o combate à corrupção no Brasil. "Além de conhecê-las, é preciso que a sociedade civil cobre dos representantes eleitos maior compromisso com essas medidas", destaca.
O ex-procurador da Lava Jato ressalta, porém, que qualquer mudança passa, necessariamente, por caminhos democráticos. “Todas as mudanças serão feitas dentro do sistema democrático pelos legisladores eleitos e serão decididas depois pelo Supremo que está aí. Não há o que fazer, nem motivo para mudar”, afirma.
Brandão também destaca a consolidação da democracia como caminho para melhorar a capacidade do Brasil de combater a corrupção. "Algo que se faz cada vez mais necessário sustentar: fortalecimento da democracia. No mundo inteiro são os países com sistemas democráticos mais sólidos que alcançam melhores resultados no controle da corrupção, enquanto na outra ponta, dos que estão perdendo essa batalha, são todos regimes autoritários ou estados falidos. A luta contra a corrupção é, afinal de contas, uma luta por direitos", diz o diretor-executivo da Transparência Internacional.
“Precisamos mudar muita coisa. O combate à corrupção passa por mudanças na política. Isso vai demorar mais uns 15, 20 anos, mais ou menos, se tudo der certo”, finaliza o procurador aposentado.
Situação da América Latina
O país com a melhor pontuação no CCC em 2020 foi o Uruguai, com nota 7,78. Isso significa que é mais provável ver atores corruptos sendo processados e punidos lá do que em outros países da América Latina.
O Uruguai é seguido no ranking por Chile (6,57), Costa Rica (6,43), Brasil (5,52), Peru (5,47), Argentina (5,32), Colômbia (5,18), México (4,55), Equador (4,19), Panamá (4,17), Guatemala (4,04), Paraguai (3,88), República Dominicana (3,26), Bolívia (2,71) e Venezuela (1,52).
A nota é composta por três subcategorias: capacidade legal, democracia e instituições políticas e sociedade civil, mídia e setor privado.