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“Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria.” A frase, que se tornou um dos clássicos da política nacional, foi dita em 2016 pelo então senador Romero Jucá (MDB-RR) em uma conversa ao telefone com Sergio Machado, ex-presidente da Transpetro. A sangria a que Jucá se referia eram as investigações da Operação Lava Jato, que haviam chegado a dezenas de políticos brasileiros, incluindo ex-presidentes e figuras de peso no Congresso. A sugestão de Machado foi o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e a celebração de um “grande acordo nacional” para conter o avanço da Lava Jato.
Agora, em 2020, esse acerto político está em andamento e a Lava Jato vive seu pior momento desde que a operação começou, em 2014. A afirmação é do procurador aposentado Carlos Fernando Lima, ex-integrante da força-tarefa de Curitiba.
Segundo ele, a eleição do presidente Jair Bolsonaro permitiu o “acordão” para “estancar a sangria”. “O que nós vemos hoje é uma perseguição. Aquele acordão do começo do mandato de Bolsonaro sugerido por algumas autoridades, na minha opinião se refere ao acordão para o ‘vamos estancar a sangria’, nos moldes do que foi dito em uma gravação da Lava Jato. É preciso estancar a sangria e foi esse o acordão que surgiu com a eleição de Bolsonaro”, afirmou Carlos Lima em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.
“Esse momento é o pior de todos porque a Lava Jato se encontra completamente abandonada de qualquer tipo de apoio dentro dos órgãos de Estado”, diz o ex-integrante da operação. “Hoje temos uma Polícia Federal que está sob controle do presidente. O Poder Executivo nomeia o procurador-geral e acena com uma cadeira no STF. O STF, infelizmente, está sob a presidência de [Dias] Toffoli (...). Nós temos um Congresso Nacional que tem a função de fazer o impeachment do presidente e do PGR e dos ministros do Supremo. No entanto é onde estão os maiores investigados pela Lava Jato”, explica Lima. Para ele, acabar com a Lava Jato virou uma necessidade desses grupos políticos para dar um recado: "que ninguém mais tenha a ousadia de investigar pessoas poderosas".
Na entrevista, o procurador aposentado também diz acreditar que o país possa estar diante de uma perseguição política com fins eleitorais. “Podemos estar diante de um abuso, de uma perseguição política em relação a possíveis e eventuais candidatos a presidente ou outros cargos.”
Ele usa o exemplo das investigações em curso no país envolvendo governadores. “Num momento em que vemos as diversas ações contra diversos governadores, não estou dizendo corretas ou incorretas, mas ações extremamente rápidas... Eu conheço investigações há mais de 30 anos e pouquíssimas vezes eu vi investigações tão rápidas atingir poderosos de uma maneira tão significativa como agora”, afirma Lima.
Confira a entrevista completa de Carlos Lima à Gazeta do Povo:
O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que a Lava Jato em Curitiba é uma “caixa de segredos” e afirmou que há 50 mil documentos invisíveis à corregedoria do Ministério Público Federal (MPF) no banco de dados. O senhor foi membro da força-tarefa. Há falta de transparência no trabalho do grupo?
Carlos Lima: Veja bem, o trabalho de equipes investigativas tem natureza sigilosa. O sigilo é imposto na decisão que concede, pelo juiz de primeiro grau, acesso a informações de quebras de sigilo ou mesmo de buscas e apreensões. Então não cabe falar em transparência de informações sigilosas. Porque o acesso essas informações sigilosas são dadas pelo Judiciário para os procuradores do caso . Há um equívoco da PGR [Procuradoria-Geral da República], e acho que também do ministro Dias Toffoli em querer acessar esses documentos sem pedir autorização ao juiz competente. Era possível fazer um pedido caso a caso a um juiz para que ele determinasse ou não o compartilhamento [de informações]. Sempre foi assim que funcionou. O que me parece que está havendo é um completo desconhecimento de como funcionam as investigações. Investigações não são transparentes porque não são administração pública. São medidas que têm natureza jurisdicional.
O senhor acredita que há um cerco da PGR contra a Lava Jato?
Carlos Lima: Evidente que há um cerco e um desejo que vai além de derrubar a própria concepção de forças-tarefas, que ele chama de lavajatismo. Há sim o interesse de minar a independência do Ministério Público, [há o interesse em promover] uma subordinação do Ministério Público, do membro que atua na ponta, ao procurador-geral da República. Isso nós vemos em diversos aspectos. Desde as tentativas que estão sendo feitas de calar procuradores, com as repetidas representações e processos administrativos contra Deltan Dallagnol [coordenador da força-tarefa da Lava Jato], por exemplo, até mesmo esse acesso – na minha opinião, indevido – a informações sigilosas das diversas investigações por todo o país.
Isso tudo mina a independência do Ministério Público e cria, na minha opinião, um grande monstro, uma PGR que não só tem a possibilidade de arquivar ou processar quem deseje, mas também de conhecer todas as investigações do país.
Nesse momento em que estamos vivendo, em que o próprio presidente [Bolsonaro] demonstrou interesse de conhecer e controlar investigações, o fato de centralizar todas essas investigações na mão do PGR [procurador-geral da República], indicado pelo presidente da República e ainda por cima com interesse em uma cadeira do STF, tudo isso é muito preocupante e muito grave [Bolsonaro afirmou recentemente que Augusto Aras seria um bom nome para ele indicar ao Supremo].
O alvo, na sua opinião, é a Lava Jato em Curitiba, especificamente, ou as forças-tarefas como um todo?
Carlos Lima: Sim, [o alvo é] a própria configuração constitucional do Ministério Público pós-88. O que nós estamos vendo é que se deseja um retorno do Ministério Público controlado pelos procuradores-gerais, como era antes de 88, para que nenhuma outra Lava Jato apareça. E também é sintomático que isso venha de um procurador-geral da República anterior a 88, que preferiu permanecer com o direito de ser advogado do que ingressar no novo regime jurídico pós-88. [O objetivo] não é só calar essa Lava Jato. É destruir essa Lava Jato de tal modo a que ninguém mais tenha a ousadia de investigar pessoas poderosas. O que nós temos no atual momento é uma luta pela preservação do Ministério Público tal qual foi desenhado em 1988 e não uma simples quirera entre a PGR e a Lava Jato de Curitiba.
A PGR lançou uma ofensiva para obtenção de dados de investigações da Lava Jato. Além de uma decisão do presidente do STF, que permitiu à PGR acessar a esses dados, o procurador-geral também editou uma portaria que altera regras de sigilo de documentos do MPF e que lhe dá mais poderes para obter dados de investigações. Como o senhor vê esses fatos?
Carlos Lima: Quando surgiu a polêmica com o presidente [Bolsonaro], naquela questão de ele querer acesso a informações e querer controlar investigações da Polícia Federal, eu disse na época que existem três grandes motivos pelos quais as pessoas políticas e poderosas desejam acesso ao controle de investigações. Uma delas é para tirar proveito, pode ser econômico ou político. Outra é para proteger os seus familiares, a si mesmo e seus amigos. Foi a tese que foi explicitada pelo presidente naquela reunião [ministerial, do dia 22 de abril]. A terceira é perseguir adversários políticos.
Num momento em que vemos as diversas ações contra diversos governadores, não estou dizendo corretas ou incorretas, mas ações extremamente rápidas. Eu conheço investigações há mais de 30 anos e pouquíssimas vezes eu vi investigações tão rápidas atingir poderosos de uma maneira tão significativa como agora. Nessas circunstâncias, nós temos que tomar cuidado e questionar essa centralização de informações. Não só informações de investigações passadas, mas de investigações em andamento. A compartimentação das investigações não tem nenhum outro objetivo que não a própria segurança do investigado. Se tivermos tudo isso acessível facilmente, teremos a possibilidade muito maior que seja mau usado. Se for, ainda por cima, centralizado na mão de um procurador-geral, nós teremos que confiar no caráter desse procurador-geral.
Qual a sua opinião sobre a criação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), gestada pela PGR? [A Unac centralizaria em Brasília as grandes investigações de corrupção do país].
Carlos Lima: Eu tenho algumas restrições históricas em relação à Unac. Eu prefiro o modelo de forças-tarefas. Existe uma discussão entre os dois modelos. Eu creio que a Unac corre o risco de se burocratizar não chamando pessoas que tenham interesse em investigar, mas sim, muitas vezes, pessoas que se acomodam na carreira. Isso pode tornar as investigações ainda mais complexas, mais difíceis. Principalmente, me preocupa centralizar em um órgão só, e é necessário discutir muito bem isso para saber como se darão as decisões que serão tomadas dentro dessa Unac. Se nós criarmos um grande procurador dessa unidade, que controle todas as informações, todas as investigações relevantes do país, nós estaremos dando muito poder para uma pessoa só. Isso é preocupante. É melhor que tenhamos um modelo descentralizado, com todas as críticas que se podem fazer aos modelos de força-tarefa, mas que são democráticas pela própria natureza. É melhor do que dar poder excessivo para uma estrutura que pode ser tanto burocrática quanto autoritária.
Recentemente, Augusto Aras pediu que o STF, a partir de agora, só autorize acordos de delação da Polícia Federal se houver concordância do MP. O que o senhor acha dessa movimentação?
Carlos Lima: Eu tenho manifestação em jornais na época contra a possibilidade da Polícia Federal fazer acordos [de colaboração premiada]. São razões técnicas, pura e simplesmente. Mas que, correta ou não a decisão do Supremo, estariam superadas pela decisão do STF [a Corte entendeu que a PF pode celebrar acordos de delação sem a participação do MP]. Infelizmente, no Brasil o Supremo decide e muda suas decisões conforme o sabor dos ventos. Não há nada garantido em uma jurisprudência no Brasil, mesmo do Supremo Tribunal Federal. Eu creio que a posição intermediária, manifestada pelo procurador-geral, está tecnicamente mais na direção de garantir que o titular do direito de acusar, que é o Ministério Público, exclusivamente, tenha participação nessa decisão. Mesmo porque só o Ministério Público pode denunciar uma pessoa. Então você excluir ou dizer que essa colaboração é suficiente só poderia ser feito pelo Ministério Público.
Mas, neste momento atual, eu duvido das boas intenções do procurador-geral. Acho que o que ele deseja agora é que não apareçam novas colaborações do tipo de Sergio Cabral [ex-governador do Rio de Janeiro], do qual ele pediu uma série de arquivamentos de assuntos que nós, população, sequer sabemos do que se trata. O que é muito grave, porque supostamente envolveria pessoas com prerrogativa de foro. Neste momento, o que me parece, é um desejo, dentro dessa campanha contra o lavajatismo, de que se retorne a um certo controle de colaborações que envolvam pessoas politicamente relevantes.
O senhor considera que esse é o momento mais difícil para a Lava Jato até agora?
Carlos Lima: Esse momento é o pior de todos porque a Lava Jato se encontra completamente abandonada de qualquer tipo de apoio dentro dos órgãos de Estado. Hoje temos uma Polícia Federal que está sob controle do presidente. O Poder Executivo nomeia o procurador-geral e acena com uma cadeira no STF. O STF, infelizmente, está sob a presidência de Toffoli, que tem se mostrado bastante pródigo, especialmente nas férias, em determinar uma série de medidas que depois, como aconteceu no caso Coaf, não se sustentam juridicamente. Nós temos um Congresso Nacional que tem a função de fazer o impeachment do presidente, do PGR e dos ministros do Supremo... No entanto é onde estão os maiores investigados pela Lava Jato.
Então o que nós temos é que o sistema de freios e contrapesos não está funcionando adequadamente. Na verdade, o que existe é um grande acordão nacional no sentido de deixar as coisas como eram antes da operação Lava Jato.
Quantos processos éticos e disciplinares foram abertos na Câmara dos Deputados [contra parlamentares envolvidos na Lava jato]? Quantas investigações efetivamente estão andando na Procuradoria-Geral da República? Até me parece que o grupo de trabalho da operação Lava Jato na PGR foi desfeito. Qual o interesse do atual presidente da República em apoiar investigações, quando boa parte dessas maiores investigações hoje se referem a rachadinhas envolvendo os gabinetes de seus filhos?
Nós temos uma maioria da população que está a nosso favor. Temos relevantes ministros do STF e do STJ, desembargadores e juízes que são favoráveis a continuidade do combate à corrupção. Entretanto, a maior parte dessas pessoas está aturdida e calada. A Lava Jato é a única voz que se contrapõe, mesmo com todos os riscos de [os procuradores] serem questionados. Basta ver a abertura da última sindicância em relação a Deltan Dallagnol porque ele fez uma crítica técnica à decisão do Toffoli a respeito do compartilhamento [do banco de dados da operação]. Nós vemos que a Lava Jato é a única voz e está em franco ataque para ser calada. Depois disso, infelizmente a imprensa está em um relativismo muito grande. Qualquer informação e qualquer afirmação tem o mesmo valor. Então nós, como sociedade, estamos completamente desamparados. E a Lava Jato encontra-se sozinha.
O ataque à Lava Lato é um ataque à democracia?
Carlos Lima: É um ataque a nossas instituições republicanas e democráticas. Porque quando você dá poder excessivo para alguém que está no topo... A Lava Jato submete seus pedidos a quatro graus de jurisdição: o poder de primeiro grau, segundo grau, STJ e STF. É muito grave quando você dá um poder excessivo ao procurador-geral da República, que pode arquivar o que ele desejar, sem controle do STF, e pode processar e investigar quem ele desejar. É muito grave especialmente num ambiente em que estamos, com essa dúvida sobre a influência do presidente Jair Bolsonaro sobre a Polícia Federal e o Ministério Público. Podemos estar diante de um abuso, de uma perseguição política em relação a possíveis e eventuais candidatos a presidente ou outros cargos. Isso é muito grave, nós temos que viver em um país em que as instituições funcionem de maneira republicana e democrática, coisa que hoje eu não confio estar acontecendo.
Como sair dessa confusão? O senhor enxerga alguma luz no fim do túnel?
Carlos Lima: Tem uma grande mobilização dessas pessoas que estão dentro das instituições, no sentido de fazerem valer a sua voz e fazer mudar os posicionamentos das diversas instituições, principalmente no STF. Há também uma parte do Parlamento que ainda apoia as investigações. Mas não vamos ter uma mudança significativa. Ao contrário, as mudanças nos últimos anos têm sido para pior. Como está muito difícil, não creio que teremos avanço no curto prazo. Minha esperança é que o silêncio dos bons, como diria Martin Luther King, não prevaleça. Que eles voltem a se manifestar, se contrapor. Que a imprensa volte a discutir os fundamentos de uma informação dada por alguém, não simplesmente aceitá-la como mais um relatório, não mais uma notícia opinativa e investigativa. Eu gostaria que não se tornasse comum o que está acontecendo hoje, que é esse relativismo moral em que o acusado da Lava Jato pode ser nomeado para um ministério ou para órgãos importantes dentro da Câmara; e que um procurador da República que ousa discutir tecnicamente uma decisão do Supremo [Deltan Dallagnol] é processado. Essa discrepância entre condutas e condições é que está realmente acabando com a nossa República.
O senhor já foi otimista em relação ao futuro...
Carlos Lima: No curto prazo não temos como ser otimistas. Ainda acredito no longo prazo porque eu acredito que a experiência do combate à corrupção, os princípios republicanos, vão prevalecer. Entretanto, o que nós vemos hoje é uma perseguição. Aquele acordão do começo do mandato de Bolsonaro sugerido por algumas autoridades, na minha opinião se refere ao acordão para “vamos estancar a sangria”, nos moldes do que foi dito em uma gravação da Lava Jato. É preciso estancar a sangria e foi esse o acordão que surgiu com a eleição de Bolsonaro.