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A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, foi formalizada na terça-feira (7) como a futura presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cargo que deve assumir no dia 3 de junho substituindo o ministro Alexandre de Moraes. Segundo analistas ouvidos pela reportagem, ela é vista como mais discreta que Moraes. Mas Cármen Lúcia deve manter a linha dura do seu predecessor na vertente de atuação que o TSE chama de "combate às fake news" e nas restrições às Big Techs (grande empresas de redes sociais e tecnologia) - ações que, na prática, resultam na restrição da liberdade de expressão no Brasil.
Ou seja, segundo o advogado especialista em liberdade de expressão e digital, André Marsiglia, a ministra deve manter a atuação que tem sido adotada pelo Tribunal nos últimos anos na qual o órgão vem extrapolando sua função de evitar que campanhas eleitorais sejam marcadas por sujeira, trapaça e notícias falsas. Em diversos casos a Corte criou conceitos arbitrários e acabou impedindo a divulgação de fatos verdadeiros e realizou até censura prévia de conteúdos.
Marsiglia afirma que a tendência "linha dura" não se deve necessariamente ao próprio Moraes, mas a uma postura do STF que é estendida à Corte Eleitoral.
“Entendo que Moraes não age apenas em nome próprio. Acredito que ele seja porta-voz de uma postura linha dura do próprio STF. Por isso, Carmen Lúcia será, a meu ver, a continuidade de um cenário com jurisprudências agressivas e até mesmo decisões de censura no âmbito das redes sociais”, disse.
O jurista diz que Cármen Lúcia esteve à frente da uma decisão do TSE chamada resolução 23.732, sobre propaganda eleitoral que levou o Google a não veicular publicidade eleitoral no pleito municipal de 2024em seus anúncios. Dentre outros pontos, a resolução confere uma amplitude tal aos temas que podem ser entendidos como publicidade eleitoral que, basicamente, qualquer anúncio político nas redes ou apps está passível de ser enquadrado nessa categoria.
Ela já deu declarações nesse ano de que combaterá “políticas antidemocráticas” e de que o papel do STF tem de ser ativista, pois ela não será juíza de “um mundo caduco”. “São declarações muito próximas do que Moraes e Barroso [o ministro do STF Luís Roberto Barroso], os ministros que mais se expõem, têm dito na imprensa”, disse o analista.
No entanto, essa tendência mais intervencionista pode ser contrabalançada. A saída de Moraes abre uma vaga que será preenchida por André Mendonça, que deixa o cargo de ministro substituto para ser titular no TSE.
O advogado especialista em Direito Eleitoral, Adriano Soares da Costa, avalia que a chegada de Mendonça pode resultar em uma mudança parcial da Corte. Ele afirma que, pelo perfil do ministro, os entendimentos sobre liberdade de expressão e, por exemplo, dos limites à aplicação do conceito de abuso de poder (econômico e político) podem voltar à tradição do TSE, “sem a característica expansiva que lhe deu a Corte sob a presidência de Moraes”.
Marsiglia também avalia que Mendonça possa se destacar como uma voz mais moderada na Corte e que sua presença atenue exageros, como ocorreu em casos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, contanto que ele “consiga se desgarrar do espírito corporativo do tribunal e faça suas convicções imperarem”.
Mendonça se tornou ministro do STF por indicação de Bolsonaro. Os ministros do Supremo também ocupam a presidência, a vice-presidência e cargos de ministros titulares e substitutos de do TSE em um sistema de rodízio periódico.
Ministra diz que "fake news" violam direito à informação correta e à democracia
Na manhã desta terça-feira, 7, Cármen Lúcia deu mais uma prova de que manterá o combate às "fake news" como uma das prioridades do TSE. Durante o evento “Liberdade de Imprensa no Brasil: Da Constituição à Realidade”, organizado pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), ela afirmou que as fake news não passam de mentiras e que, portanto, violam o direito das pessoas acessarem a informação correta e, também, evitam que possam pensar e decidir de forma livre, sendo, dessa forma, contrárias às liberdades que são as bases dos princípios democráticos.
A ministra ainda afirmou que o momento atual é único na história da humanidade, pelo grande volume de dados que são passados com grande velocidade para os aparelhos celulares. Segundo ela, o volume e a velocidade com que as informações são acessadas pelas pessoas impedem que possam raciocinar sobre elas, o que também viola o exercício do livre pensar e, portanto, as liberdades e os princípios democráticos.
“Eu temo pela criação no mundo de um novo coronelismo, o coronelismo digital", disse Cármen Lúcia.
"O que acontece hoje, cria-se como se fosse um espaço extra, supranacional e diz assim: nós não temos direito e nós fazemos o que quisermos, o algoritmo dita o que chega para você. Alguém aqui acha que esse algoritmo não tem alguém que dita, manipula e ganha dinheiro com isso? Ou você acha que chegou no seu espelhinho, chiparam a sua liberdade e você sequer se dá conta de que você não é mais livre?”, afirmou a ministra.
"Chipar" é uma gíria utilizada para dizer que foi colocado um microchip em alguém ou alguma coisa. Nesse sentido, ao dizer que todas as informações chegam por meio dos aparelhos celulares e das redes, Cármen Lúcia afirma que a liberdade das pessoas está sendo controlada por um chip e por aqueles que o comandam.
Debate sobre liberdade de expressão pode frear abusos da Justiça Eleitoral
O advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo Alexandre Rollo afirma que, mais do que uma escolha da ministra, a tentativa de controle sobre o que é verdade e o que é mentira é uma tendência não só de todo o TSE, mas da Justiça Eleitoral como um todo. Ele diz que um dos argumentos dos magistrados é combater as chamadas deep fakes que são manipulações de vídeos a partir de sistemas de inteligência artificial que conseguem literalmente alterar o que uma pessoa está falando em um vídeo gravado.
Por outro lado, Adriano Soares diz acreditar que as ações do TSE podem ser freadas pelo debate o intenso sobre liberdade de expressão deflagrado no Brasil e nos Estados Unidos pela acusação de censura feita pelo bilionário Elon Musk, dono do X (antigo Twitter) contra Alexandre de Moraes. A denúncia de Musk ocorreu em abril por meio do próprio X e foi o resultado de revelações do escândalo apelidado de "Twitter Files Brazil".
O caso foi resultado de uma investigação feita pelo jornalista americano Michael Shellenberger em parceria com os brasileiros David Agape e Eli Vieira, da Gazeta do Povo, sobre mensagens internas trocadas entre executivos do X entre 2020 e 2022. Elas trouxeram a público diversas ordens do TSE enviadas ao X (antigo Twitter) determinando a suspensão de conteúdos e perfis, acusados de propagar "desinformação". Em sua maioria, os perfis eram de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ou de políticos, jornalistas e influenciadores conservadores.
O bilionário Elon Musk republicou algumas das postagens de Shellenberger e chegou a chamar Alexandre de Moraes de tirano. Em consequência, o Congresso dos Estados Unidos solicitou ao X o envio de toda a documentação do TSE para a rede, e emitiu um relatório no qual concluiu que houve censura por parte da Corte Eleitoral.
Nesta terça-feira, o Congresso dos Estados Unidos divulgou uma nova leva de documentos que mostram como o TSE determinou a suspensão imediata de contas de políticos, jornalistas e figuras públicas do X e de outras redes sociais.
Para Adriano Soares, a atuação da plataforma X e de Musk em questionar a legalidade de ordens judiciais, que violam o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil) teriam potencial para mudar o cenário de intervenção excessiva do TSE no processo eleitoral, sobretudo no que diz respeito a um viés ideológico.
Cármen Lúcia votou pela inelegibilidade de Bolsonaro e censura a documentário
Como os ministros do STF se revezam nos cargos no TSE, em 2022 ela votou como ministra efetiva em processos controversos. Um deles, o julgamento do abuso de poder político e econômico de Jair Bolsonaro, resultou na inelegibilidade do ex-presidente. Cármen Lúcia votou contra ele.
Bolsonaro foi acusado de se valer de recursos de seu cargo político e de bens da União para fazer pré-campanha eleitoral ao realizar uma reunião com embaixadores estrangeiros em julho de 2022, a fim de debater o processo eletrônico de votação. Prevaleceu a posição do relator do processo, corregedor-geral da Justiça Eleitoral, o ministro Benedito Gonçalves, de que o ex-presidente “estava fazendo política e estava fazendo campanha”.
Cármen Lúcia acompanhou o voto do relator, afirmando que não houve roupagem de diálogo institucional entre Bolsonaro e os embaixadores. "A alegação que é feita, sem que houvesse provas, contra o processo eleitoral, a Justiça Eleitoral ou ministros desta casa não tinha razão de ser a não ser desqualificar a própria Justiça e, com isso, atacar a democracia."
Outro voto controverso de Cármen Lúcia foi quando admitiu a censura ao documentário “Quem mandou matar Jair Bolsonaro” da Brasil Paralelo, em outubro de 2022. Uma fala da ministra negando que a suspensão do filme até o fim do segundo turno era censura teve ampla repercussão.
“Não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento no Brasil. Esse é um caso específico, estamos na iminência de ter o segundo turno das eleições. A inibição é até o dia 31, dia subsequente ao do segundo turno, para que não haja comprometimento da lisura, da higidez, da segurança, do processo eleitoral e dos direitos do eleitor. Mas vejo isso como situação excepcionalíssima”, disse.
Alexandre Rollo explica que, na legislação brasileira, não é proibido retirar de circulação um vídeo que incite a crimes ou que faça apologia do racismo ou do nazismo, por exemplo. Mas, segundo o advogado, a censura prévia é inconstitucional. Ou seja, deixar de veicular algo sem saber o seu teor ou as informações que contém.
Atuação da ministra deve ser mais discreta que a Alexandre de Moraes na presidência do TSE
Ainda que mantenha a linha dura no combate às "fake news" e às Big Techs, a atuação de Cármen Lúcia tende a ser mais discreta que a de Moraes. Alexandre Rollo afirma que o ministro tem um estilo mais “xerifão” e que gosta muito de aparecer, ao contrário da ministra, que não tem muito esse estilo.
A atuação de Cármen Lúcia é tida, inclusive, como mais moderada, alinhada à uma visão clássica da magistratura e a uma postura mais sóbria e discreta. Apesar de decisões alinhadas às de Moraes, a ministra busca manter um distanciamento prudente nas questões que lhe serão submetidas a julgamento, segundo Adriano Soares. “Acredito que a presidência dela será um retorno ao Tribunal Superior Eleitoral comedido, ajustado àquela bitola constitucional na qual sempre atuou”, afirma.