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Ministros do TSE seguiram voto do relator, Benedito Gonçalves, sem discutir a inexistência de processo disciplinar aberto contra Deltan Dallagnol
Ministros do TSE seguiram voto do relator, Benedito Gonçalves, sem discutir a inexistência de processo disciplinar aberto contra Deltan Dallagnol| Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que cassou o mandato do ex-procurador e deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) contorna uma regra objetiva da Lei da Ficha Limpa, contraria a jurisprudência consolidada da Corte e ainda traz enorme insegurança jurídica, podendo ser usada agora de forma ardilosa para perseguir outros membros do Ministério Público e do Judiciário que cogitem deixar os cargos para se candidatarem.

Essa é a visão de vários juristas que analisaram o processo e assistiram ao julgamento desta terça (17) que tornou Dallagnol inelegível por causa de procedimentos preliminares, apresentados por opositores políticos ou aliados de pessoas que haviam sido investigadas, mas que estavam parados no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), inclusive por arquivamento.

O relator do caso, Benedito Gonçalves, votou pela cassação, considerando que esses procedimentos “poderiam” resultar, futuramente, numa demissão, o que impediria Dallagnol de se candidatar. A Lei da Ficha Limpa, no entanto, diz que a inelegibilidade só se aplica quando um procurador deixa o cargo para escapar de um processo administrativo disciplinar, um PAD, ou seja, fase posterior, quando o colegiado do CNMP já analisou a acusação e entendeu que haveria indícios de falta disciplinar que poderiam resultar em demissão.

Para se candidatar a deputado federal, Dallagnol deixou o Ministério Público Federal (MPF) em novembro de 2021, muito antes do prazo final para isso, que terminava em abril de 2022. Na época, não havia PADs abertos contra ele, o que foi atestado numa certidão oficial do próprio CNMP. Por esse motivo, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Paraná validou sua candidatura, e a Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) também pediu a rejeição do pedido encabeçado pelo PT para cassar seu mandato e torna-lo inelegível. Tudo isso foi ignorado pelo TSE, de forma unânime, porém, sem discussão entre os 7 ministros – nenhum debateu com o relator.

Regras da inelegibilidade devem ser interpretadas restritivamente

Doutor e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, o advogado e professor Horacio Neiva apontou, no Twitter, vários problemas da decisão. “As regras envolvendo inelegibilidade devem ser interpretadas restritivamente. E é isso o que a Justiça Eleitoral tem feito ao longo de diversos anos de jurisprudência consolidada”, postou.

Em 2019, esse entendimento foi reafirmado pelo plenário do TSE, ao reverter a inelegibilidade de uma prefeita que teve o registro de candidatura contestado por opositores políticos. “É entendimento pacífico desta Corte Superior que o direito à elegibilidade é direito fundamental. Como resultado, de um lado, o intérprete deverá, sempre que possível, privilegiar a linha interpretativa que amplie o gozo de tal direito. De outro lado, as inelegibilidades devem ser interpretadas restritivamente, a fim de que não alcancem situações não expressamente previstas pela norma”, diz a decisão, relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso.

A regra da Ficha Limpa – que exige abertura de PAD – deve ser interpretada restritivamente, ou seja, de forma literal, porque a elegibilidade é direito político fundamental. A lógica é que só a instauração de um processo administrativo disciplinar “envolve um juízo pela administração da gravidade de fatos”, explicou Horacio Neiva. Segundo ele, também não cabe à Justiça Eleitoral “avançar para examinar o conteúdo dos processos preliminares e realizar um juízo de se eles resultariam ou não em uma possível, hipotética e não sabida punição”.

O advogado e professor ainda aponta para o risco de que, para retirar da disputa eleitoral um juiz ou magistrado que queira de candidatar, bastaria que seus adversários apresentassem contra ele vários pedidos de investigação por falta disciplinar, como os que havia contra Dallagnol.

A procuradora da República Nathália Mariel escreveu, também no Twitter, que apesar de ter "zero simpatia" pelo ex-colega, gosta "muito de segurança jurídica e fundamentação, especialmente na área eleitoral, independente dos envolvidos".

“A posição do TSE  sempre foi pela interpretação restritiva de inelegibilidades em razão da importância dos direitos políticos plenos. Aí hoje deu uma virada de 180 graus. Casuística ou não? Só sei que dar aula de direito eleitoral no Brasil é sempre uma missão.”

Procurador da República, Bruno Calabrich disse à reportagem que o preocupa a fundamentação “frágil” do TSE para cassar Dallagnol. “Quando decisões dessa gravidade são tomadas com base em motivos jurídicos pouco convincentes, a consequência é a fragilização da própria autoridade que profere a decisão. É ruim para todo o sistema e para a sociedade.”

O advogado David Sobreira, apresentador do podcast Onze Supremos, considerou que houve uma “alteração ad hoc” na jurisprudência do TSE, ou seja, uma alteração incomum, feita com um propósito pré-estabelecido. “Sindicâncias nem sempre se tornam PAD e, ainda que assim o fosse, a LFL [Lei da Ficha Limpa] utiliza a pendência PAD como marco temporal.”

Especialista em direito eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a advogada Isabel Mota diz que, na época da aprovação da Lei da Ficha Limpa, se opôs a ampliação das causas de inelegibilidade, como essa aplicada a Dallagnol, que retira quem deixou o cargo durante PADs. “Era uma preocupação minha ampliar demais uma circunstância que era ser para ser excepcional”, afirma.

Ela, no entanto, compreende que a decisão contra Dallagnol partiu da suposição de que ele queria fugir de uma condenação futura. “Já se falava muito no mundo jurídico que a próxima sanção dele superaria muito a advertência e poderia levar à demissão. A exoneração era uma cartada que ele tinha para fugir de uma punição disciplinar mais grave”, lembra.

Dallagnol pode recorrer ao STF, se Moraes deixar

Ainda é possível à defesa de Deltan Dallagnol recorrer ao próprio TSE, por meio de um apelo chamado “embargos de declaração”, que visa esclarecer obscuridade, omissão ou contradição na decisão. Uma reversão, no entanto, é considerada improvável. Outra possibilidade é apelar ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de um recurso extraordinário.

Nesse caso, a defesa deve suscitar questões constitucionais não analisadas pelo TSE, e caberá ao presidente da Corte Eleitoral, Alexandre de Moraes, analisar previamente o recurso e autorizar sua remessa ao STF. É também uma possibilidade considerada remota na Corte.

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