Nos próximos dias, o Congresso receberá o detalhado e definitivo projeto do governo para um novo arcabouço fiscal para o país, em substituição ao atual teto de gastos. A tendência é de a maioria dos parlamentares – em partidos de centro e de direita – trabalhar de forma coordenada para alterar a proposta em vários pontos, devido às várias inconsistências deixadas pelas apresentações prévias feitas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Congressistas já acenam com mudanças substanciais no texto para evitar a excessiva dependência de um contínuo aumento de arrecadação e para desarmar o risco iminente de elevação da carga tributária. Cientes desses desafios, negociadores do Planalto deflagraram desde mês passado uma batalha para convencer mercado e sociedade de que a sua proposta foca de fato em limites e metas para despesas públicos, contrariando o insistente discurso contra a austeridade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
As reações até agora foram em geral bem mais positivas que negativas, mas não impediram as críticas, sobretudo em relação ao excessivo otimismo com as receitas extras, tidas como essenciais para colocar o modelo de pé.
A proposta prevê que o crescimento dos gastos em determinado ano será de até 70% da expansão da receita primária em 12 meses até julho do ano anterior. Por exemplo: se as receitas tiveram avanço real de 2% em 12 meses até julho deste ano, as despesas de 2024 poderão crescer até 1,4%.
Mas haverá outras balizas, de forma que o gasto federal nunca crescerá menos que 0,6% – mesmo em caso de queda na arrecadação – nem mais que 2,5%. Além disso, o pagamento do piso da enfermagem e o Fundeb, o fundo da educação básica, não serão afetados por esses limites, e haverá um piso para o investimento público.
No último dia 30, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se reuniu com os líderes partidários e os ministros Haddad e Alexandre Padilha (Relações Institucionais), que apresentaram linhas gerais da proposta. Após o encontro, afirmou ter “profundo compromisso” com a pauta. “Esperamos a evolução do processo legislativo, em que a concepção inicial do Executivo pode sofrer alteração, sem perder de vista que disciplina e equilíbrio fiscal são fundamentais ao país”, acrescentou.
Mais cedo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse ter ouvido com satisfação a proposta, mas avisou que o plenário da Casa vai debatê-la com rigor e fará nela “ajustes necessários”.
O projeto de lei que o Congresso aguarda já é alvo do lobby dos setores empresariais contrários às medidas consideradas pelo governo como necessárias para tornar crível o marco fiscal, entre as quais a taxação de setores como importadores on-line e apostas eletrônicas e o fim de benefícios fiscais a outros setores.
Em recentes entrevistas, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro-chefe da Casa Civil do governo de Jair Bolsonaro (PL), não tem poupado críticas o arcabouço fiscal apresentado por Haddad. Para ele, a proposta tem viés inflacionário ao estar baseada no aumento de receitas e não prever corte de despesas.
“Âncora fiscal serve para impedir o desequilíbrio entre receitas e despesas, sem que o governo gaste muito mais do que arrecada e, com isso, eleve a dívida pública a patamar que leve desconfiança a investidores sobre a capacidade de o país honrar o pagamento de sua dívida”, disse.
Em um primeiro momento, o líder da oposição no Senado, senador Rogério Marinho (PL-RN), disse estar pronto para colaborar com “política fiscal consistente”. “Se o arcabouço apresentado der solidez, mostrar que a trajetória da dívida vai declinar ou ao menos estabilizar, terá o nosso apoio”, afirmou.
Dias depois, porém, Marinho foi mais crítico. Um relatório apresentado na quarta-feira (5) pelas lideranças da minoria e da oposição no Senado afirma que a proposta do governo é limitada e “desconectada do comando constitucional de instituição de um regime que garanta a sustentabilidade macroeconômica do país”.
“Com o pouco que foi divulgado, sabemos que o plano é inexequível”, disse o senador. Segundo o relatório, a proposta corre o risco de impor ao governo medidas para incrementar receitas “sem considerar limites jurídicos políticos e da própria atividade econômica”, além de não tratar da qualidade do gasto público.
O presidente do partido Novo, Eduardo Ribeiro, também criticou o arcabouço, que classificou de "frágil" e baseado em "projeções que só se concretizarão com aumento de impostos".
O professor de políticas públicas do Ibmec-DF Arthur Wittenberg explica que o fato de os líderes do Congresso terem recepcionado a proposta de marco fiscal com declarações instantâneas de apoio dos presidentes da Câmara e do Senado pode até indicar que eles têm o controle sobre as bancadas e a votação. “Mas a consolidação do arcabouço fiscal dependerá das votações de outras matérias, como a reforma tributária, o que poderá fazê-lo se arrastar”, avalia.
Em favor dessa tese, Wittenberg acredita que a oposição deverá apresentar requerimentos de audiências públicas, gerando transtornos, sobretudo na Câmara. “Com tudo isso, não há estimativa clara para a sua conclusão”, diz. Haddad já avisou que o governo não pensa em plano B, caso o projeto que vai enviar não avance nos moldes desejados.
Neste cenário incerto, parlamentares do centro se anteciparam e já abriram o debate acerca do marco fiscal enquanto aguardam a proposta do governo. O deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) protocolou projeto alternativo (PLP 62/2023), com apoio da bancada do partido, propondo tornar a dívida pública baliza para o controle das despesas, em contraste com a proposta do governo, que torna a arrecadação um tipo de âncora fiscal.
Para o cientista político Ismael Almeida, o projeto de Pedro Paulo avança em relação à proposta de Haddad. Enquanto o governo prevê um limite de gastos com banda de crescimento real da despesa primária de 0,6% a 2,5% ao ano, o deputado propõe limite mais restritivo, de 1% ou 0,5%, dependendo de superávit ou não no exercício anterior.
Além disso, o PLP inclui medidas para a manutenção da dívida em patamar sustentável. Uma delas, por exemplo, prevê redução gradual, nos dois exercícios financeiros seguintes, de ao menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança. “A diferença fundamental entre os projetos é que o de Pedro Paulo não se baseia em hipotético aumento de receitas para justificar mais despesas agora. Em vez disso, prevê aumento de despesas menor, guiado pela dívida pública”, diz Almeida.
Alvo ambicioso do arcabouço fiscal desperta dúvidas de analistas
Pela proposta, o governo se compromete a melhorar, ano após ano, as suas contas, até alcançar em 2026 saldo positivo das contas públicas equivalente a 1% do Produto Interno Bruto (PIB). As primeiras dúvidas surgiram do piso de 0,6% para o crescimento de despesas, que Haddad quer cobrir com crescimento da economia e reforma tributária. Nesse ritmo, a curva de endividamento em dez anos subiria do patamar atual de 73% para 95% do PIB.
O maior receio de deputados e senadores críticos à proposta do governo é que o sucesso dela esteja mesmo sendo condicionado também à redução da taxa básica de juros e à reforma tributária, classificada pela ministra do Planejamento, Simone Tebet, como a “bala de prata” do governo, portanto mais valiosa que a “bala de bronze” representada pelo arcabouço fiscal.
A projeção de mais rigidez fiscal somente após desdobramentos na área tributária deixa a proposta do governo menos empolgante para o plenário. Basta lembrar que o Tesouro anunciou déficit primário de R$ 41 bilhões para fevereiro, o maior dos últimos 26 anos para o mês. Não por acaso, a equipe econômica trabalha com igual afinco para trazer ao sistema tributário contribuintes que estão fora dele e corrigir distorções nos setores não regulados, que impactam em perda importante de arrecadação.
É por essa razão que o Ministério da Fazenda pretende anunciar também nos próximos dias a adoção de medidas saneadoras para arrecadar de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões em recursos novos.
Aprovação do novo arcabouço fiscal requer maioria simples
O arcabouço fiscal de Lula começará a tramitar como projeto de lei complementar, cuja aprovação depende dos votos favoráveis só da metade mais um de cada Casa: 257 deputados e 41 senadores. O teto de gastos, instituído no governo do presidente Michel Temer (MDB), nasceu de emenda constitucional aprovada em dezembro de 2016. De 2019 a 2022, o regime foi descumprido cinco vezes, com aval do Congresso, sobretudo em razão das centenas de bilhões de reais do Tesouro para reagir à pandemia.
A última flexibilização veio com a proposta de emenda à Constituição 32/2022 (PEC da Transição, ou PEC fura-teto), que permitiu ao governo Lula deixar de fora do teto R$ 145 bilhões do Orçamento de 2023, para bancar programas sociais e outras despesas permanentes. Com a PEC veio também a determinação para o governo apresentar o novo arcabouço.
Felipe Salto, economista-chefe da corretora Warren Rena e um dos maiores especialistas em contas públicas do país, disse em entrevista ao site InfoMoney estar confiante na capacidade de a nova regra fiscal de conter a trajetória da dívida pública, mesmo sem o governo Lula atingir as metas de voltar ao azul no caixa até o último ano do mandato do presidente. Embora o sucesso do arcabouço dependa da execução e da capacidade do governo cumprir a regra, ele o considera um bom primeiro passo.
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