A catástrofe política na Venezuela, confirmada nesta segunda-feira (29) com o anúncio da vitória fraudulenta do ditador Nicolás Maduro nas eleições presidenciais, segue desafiando o governo brasileiro a se posicionar claramente em defesa da democracia.
O silêncio e a cautela excessiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em repudiar ou reconhecer a reeleição de Maduro espelham a longa história de afinidade ideológica e de parceria política dele e do seu partido com o regime chavista, o que agora limita a sua atuação na crise venezuelana.
A ligação de espectro esquerdista e dedicada a uma coordenação sul-americana em oposição a Washington foi exacerbada pelo apoio explícito do PT à ditadura chavista e pela atuação de figuras-chave como o assessor especial da Presidência Celso Amorim. Esses fatos comprometem a neutralidade do Brasil nas negociações do episódio.
Em meio à forte pressão da comunidade internacional por transparência do processo eleitoral, o partido de Lula divulgou nota exaltando as eleições na Venezuela, chamando Maduro de “presidente reeleito”, ignorando a série de manipulações e atrocidades antes e depois da abertura das urnas.
Apesar das pesquisas indicarem ampla vitória da oposição, o PT chamou o processo de “jornada pacífica, democrática e soberana”. A legenda ainda culpou as sanções internacionais, impostas justamente em razão das ações autoritárias de Maduro, como responsáveis pelos “graves problemas” no país vizinho.
O chanceler venezuelano, Yván Gil, agradeceu, em nome de Maduro, as "calorosas felicitações" do PT. "Agradecemos o reconhecimento do trabalho do poder eleitoral e dos resultados que demonstram a soberania do povo venezuelano", publicou no X nesta terça-feira (30).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aliado histórico do PT e de Lula, também parabenizou o ditador venezuelano. Em uma postagem nas redes sociais, o movimento agrário afirmou que o povo decidiu pela “resistência” ao imperialismo e o apoio a um “projeto popular de condução do país”.
O MST lembrou do “aniversário de 70 anos de [Hugo] Chávez”, afirmando que a vitória de Maduro “também simboliza a permanência e atualidade da luta dos povos na América Latina que seguem enfrentando o imperialismo”. Outras 11 organizações brasileiras de esquerda adotaram o mesmo posicionamento, em nota conjunta.
O Palácio do Planalto, por sua vez, optou por “aguardar a disponibilidade das atas eleitorais” e pediu aos observadores estrangeiros que investiguem os relatos de irregularidades na apuração que se avolumaram nos últimos dias.
Cautela mostra que diplomacia cedeu a interesse partidário, dizem especialistas
Segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a diplomacia vacilante e a retórica pró-Maduro do PT descrevem o grande desafio para a imagem de Lula, que espera ser visto ainda como estadista e defensor de saídas pacíficas e negociadas.
O presidente já havia sofrido abalos quando pediu para candidatos inabilitados na corrida presidencial venezuelana deixassem de reclamar e apoiassem outro nome. Dessa vez, as alternativas para contornar os fatos, que incluem denúncias de fraude, podem ser mais embaraçosas e escassas.
“A não condenação do Brasil da fraude eleitoral na Venezuela envergonha a diplomacia brasileira, que deixou de ser instrumento de política de Estado. O governo ignorou todos os indícios de manipulação e a violação do Acordo de Barbados. Isso mostra que a nossa tradição diplomática de blindar a política externa da contaminação partidária e ideológica não resistiu ao governo do PT”, comentou o cientista político Luiz Felipe D’Ávila.
Para complicar a situação, Amorim, enviado de Lula a Caracas nesta segunda-feira (29), foi chamado de "amigo" por Maduro, após uma reunião entre os dois – o assessor especial de Lula também se encontrou com o candidato da oposição no mesmo dia. Após a reunião, o ditador aproveitou para reiterar a sua condenação a uma suposta aliança de forças de extrema-direita no mundo que estariam tentando derrubá-lo, um discurso que ressoa com setores da esquerda brasileira. Recentemente, ele intensificou críticas ao presidente argentino, Javier Milei, e ao ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), comparando-os a “seguidores de Hitler”.
Lula busca ganhar tempo, adotando uma postura de apelo "à total transparência", enquanto espera "a publicação oportuna dos resultados eleitorais e a distribuição por assembleias de voto".
Contudo, ele pode enfrentar dificuldades para se destacar nos próximos dias devido à pressão de setores à esquerda de seu governo, que desejam o reconhecimento imediato da vitória de Maduro. A postura de mediador, que Lula adotou em fases anteriores, está agora prejudicada pela falta de independência.
Depois do silêncio, Lula deve ajustar discurso sobre Maduro aos novos contextos
O professor de Ciências Políticas Antônio Flávio Testa afirma que a crise política na Venezuela representa um sério constrangimento para Lula. Apesar disso, ele acredita que o petista não terá dificuldades para ajustar seu discurso conforme as necessidades do momento. Uma mudança significativa pode ocorrer após a definição das eleições americanas.
"Não me surpreenderia se Lula dissesse que nunca ouviu falar de Maduro. Acho que ele vai se manter em silêncio até que a crise diminua, se isso for possível, ganhando tempo com o pedido de Amorim pela publicação das atas eleitorais", disse.
Quanto ao PT, Testa lembra que o partido já tem uma lista de apoios controversos, incluindo invasores de propriedades privadas e grupos terroristas. Portanto, do ponto de vista estratégico, a posição do partido não deve interferir significativamente.
Ao longo de mais de 20 anos, Lula preferiu apoiar os governos de Hugo Chávez e Maduro, inclusive com empréstimos não pagos, em vez de influenciar mudanças que evitassem a escalada do autoritarismo no país vizinho.
No início de seu atual mandato, em maio de 2023, Lula gerou controvérsia ao receber Maduro com honras de chefe de Estado e apresentá-lo como alguém melhor do que analistas e a imprensa retratavam. Na ocasião, Lula ofereceu ajuda ao líder venezuelano para criar narrativas positivas sobre seu regime.
Quase um ano depois, o Itamaraty admitiu que a Venezuela não estava seguindo o roteiro do Acordo de Barbados para garantir um processo eleitoral pacífico e justo.
"O Brasil está pronto para, em conjunto com outros membros da comunidade internacional, cooperar para que o pleito anunciado para 28 de julho seja um passo firme para normalizar a vida política e fortalecer a democracia na Venezuela, país vizinho e amigo do Brasil", disse uma nota do Itamaraty.
O governo brasileiro concluiu a manifestação reiterando "repúdio a quaisquer tipos de sanção que, além de ilegais, apenas contribuem para isolar a Venezuela e aumentar o sofrimento do seu povo".
O Acordo de Barbados foi assinado no fim do ano passado, após negociação entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição venezuelana, mediada pela Noruega, para garantir um processo eleitoral transparente nas eleições presidenciais deste ano na Venezuela.
Piora do colapso econômico e do fluxo migratório preocupa o governo brasileiro
Natalia Fingermann, professora de relações internacionais da ESPM, observa que o esforço de Lula e da diplomacia brasileira até agora foi buscar a estabilidade política e econômica da Venezuela para proteger os interesses do Brasil e da região, inclusive para conter o fluxo migratório.
“Qualquer instabilidade maior poderia resultar em mais fuga e instabilidade regional”, disse. Os EUA, por sua vez, consideraram aliviar sanções devido à necessidade de fornecimento de petróleo após os conflitos na Ucrânia e Oriente Médio.
Ela entende que o Brasil não buscou ser avalista das iniciativas de Maduro, mas sim garantir a estabilidade política na Venezuela e na região, assegurando que o pleito fosse “pacífico, crível e democrático”. “A proposta era que observadores verificassem o processo para dar respaldo. O Brasil depende desse aval”, finalizou.
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