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Se desde 2019 vigorasse uma emenda constitucional para limitar as decisões individuais de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como a proposta que está sendo discutida no plenário do Senado nas últimas semanas, uma série de políticas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teria sobrevivido, ao menos por mais tempo.
A oposição a medidas de confinamento (lockdowns) durante a pandemia, a facilitação do acesso às armas, limites à censura nas redes sociais, maior rigor para demarcação de terras indígenas e a nomeação de um diretor da Polícia Federal foram exemplos marcantes de atos presidenciais suspensos de forma monocrática por integrantes da Corte.
Num cenário em que a proposta de emenda à Constituição (PEC) que limita as monocráticas valesse, haveria no mínimo mais dificuldade para a interrupção abrupta dessas políticas, que colocaram Bolsonaro e alguns de seus maiores desafetos no STF em rota de colisão. A suspensão de políticas públicas seria possível, mas num julgamento colegiado, marcado com antecedência no plenário da Corte, de forma presencial ou virtual.
A PEC que agora está em discussão entre senadores foi apresentada originalmente em 2019, mas foi rejeitada em setembro daquele ano. Em 2021, o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) a reapresentou, obtendo apoio de 31 colegas, de direita, esquerda e centro. No início de outubro, a proposta foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e agora está pronta para ser aprovada no plenário, como prioridade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O texto proíbe decisões monocráticas que suspendam “a eficácia de lei ou ato normativo com efeitos erga omnes”, ou seja, que atinjam todas as pessoas, assim como qualquer ato do presidente da República ou dos presidentes da Câmara e do Senado. Essa regra valeria para todos os tribunais do país, não apenas para o STF.
Em relação à Corte, decisões de caráter geral que afetem as políticas públicas só poderiam ser tomadas pelo plenário, formado por 11 ministros. Uma decisão cautelar (provisória) que suspendesse uma lei, medida provisória, decreto presidencial ou legislativo, e mesmo a tramitação de uma proposta no Congresso, teria de ser examinada no mérito, também de forma colegiada, em até seis meses. Atualmente, não há prazo fixo para esse julgamento mais aprofundado, e muitas decisões monocráticas acabam valendo por meses ou anos.
No último dia 24, Bolsonaro elogiou Pacheco pela promessa de votar a PEC em novembro. “A questão do desequilíbrio entre os Poderes. Tive a notícia, agora há pouco, de que uma certa proposta vai à frente no Senado. Parabéns ao presidente do Senado”, afirmou o ex-presidente durante encontro com parlamentares da bancada ruralista, em Brasília.
Relembre, abaixo, políticas marcantes de Bolsonaro que teriam sido mantidas, ao menos por mais tempo, se estivesse em vigor desde 2019 a emenda constitucional proposta.
Oposição a "lockdowns" na pandemia
Diversas decisões partiram não só do STF, mas também da Justiça Federal, para esvaziar medidas de Bolsonaro que tentavam impedir restrições adotadas por governadores e prefeitos na pandemia de Covid.
Em abril de 2020, por exemplo, o juiz substituto Manoel de Castro Filho, de Brasília, suspendeu parte de um decreto do ex-presidente que buscava manter a realização de cultos nas igrejas. A norma considerava essa uma “atividade essencial”, que não poderia ser limitada durante a calamidade pública. O magistrado, porém, considerou que os cultos poderiam colocar em risco a vida e a saúde, direitos fundamentais da Constituição. Decisão semelhante já havia sido tomada por um juiz federal de Duque de Caxias (RJ) suspendendo também a determinação federal de manter abertas as lotéricas.
Embora não fossem decisões do STF, essas liminares também não seriam possíveis se estivesse em vigor a PEC proposta no Senado. O texto veda decisões monocráticas de membros de “tribunais” que suspendam “a eficácia de lei ou ato normativo com efeitos erga omnes [para todos]” e de atos do presidente da República e dos presidentes do Senado e da Câmara.
Em abril de 2021, por 9 votos a 2, o STF confirmou a possibilidade de estados e municípios fecharem templos para evitar a disseminação da Covid em atividades religiosas. Um ano antes, em 2020, a Corte já havia decidido que governos estaduais e municipais poderiam adotar restrições de forma independente do governo federal.
Em março, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou, numa liminar, que os entes subnacionais tinham competência concorrente para fechar rodovias, portos e aeroportos. Em resposta a medidas de isolamento editadas por Rio de Janeiro e São Paulo, Bolsonaro havia assinado uma medida provisória segundo a qual restrições a serviços públicos e atividades essenciais, somente poderiam ser adotadas “em articulação prévia com o órgão regulador ou o poder concedente ou autorizador”, ou seja, com aval de órgãos federais, na maioria dos casos.
Em abril de 2020, uma liminar de Alexandre de Moraes, pedida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), proibiu Bolsonaro de interferir em medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos, incluindo ordens de distanciamento social, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e circulação de pessoas.
Em novembro daquele ano, por decisão liminar do ministro Ricardo Lewandowski, o STF ainda obrigaria o governo a montar um plano de vacinação contra a Covid. Nos meses seguintes, dentro da mesma ação, o ministro voltou a cobrar medidas de imunização do governo federal e ainda autorizou estados a adquirir vacinas de forma independente da Anvisa.
Ramagem no comando da PF
Em abril de 2020, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação do então chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, para a direção-geral da Polícia Federal. Nome de confiança de Bolsonaro, ele havia sido escolhido contra a vontade do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que deixou o governo acusando o ex-presidente de interferir na PF para obter informações privilegiadas em investigações contra familiares e aliados.
Moraes assinou a liminar no mesmo dia que Ramagem tomaria posse no cargo. Ele apontou desvio de finalidade, em razão das acusações feitas por Moro – na época, um inquérito foi aberto a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), mas posteriormente o órgão pediu o arquivamento do caso por não ver crime na conduta de Bolsonaro. Na decisão, o ministro escreveu que “a Polícia Federal não é órgão de inteligência da Presidência da República”.
“A finalidade da revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem constitucional, inclusive no tocante às nomeações para cargos públicos, que devem observância não somente ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”, dizia outro trecho da decisão liminar.
No mesmo dia, Bolsonaro revogou a nomeação de Ramagem e não recorreu. No lugar dele, nomeou Rolando Alexandre de Souza, que era braço-direito de Ramagem na Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Com isso, a ação do PDT no STF contra a nomeação de Ramagem perdeu objeto e foi arquivada e, por isso, nunca foi analisada pelos demais ministros do STF.
A PF ainda passaria por mais duas trocas de comando no governo Bolsonaro: em 2021, foi nomeado Paulo Maiurino, que havia sido chefe da segurança do STF na presidência do ministro Dias Toffoli e que na época da indicação assessorava a segurança do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Humberto Martins. Em 2022, assumiu a chefia da PF Márcio Nunes de Oliveira, próximo do então ministro da Justiça, Anderson Torres.
Acesso maior a armas de fogo
Em abril de 2021, a então presidente do STF, Rosa Weber, suspendeu diversas regras decretadas por Bolsonaro dois meses antes que facilitavam o acesso a armas de fogo no país. Um dos itens permitia porte simultâneo de até duas armas por pessoa, outro afastava o controle do Exército na aquisição de armas mais pesadas, como alguns tipos de fuzil e metralhadora, além de miras e máquinas para recarga de munições. Ela também suspendeu a dispensa de prévio registro de praticantes de tiro recreativo em clubes especializados.
Outros dispositivos suspensos aumentavam o limite de armas e munições por civis, agentes estatais e CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), que ainda ficariam dispensados de comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica para comprar e manusear as armas.
A ministra atendeu a um pedido de partidos que estavam na oposição ao governo, como PT, PSB, Rede, PSOL e PSDB, citando estudos de organizações não governamentais (ONGs) progressistas que defendem o desarmamento da população e que, segundo ela, revelariam correlação entre a facilitação do acesso a armas e desvios para organizações criminosas, milícias e bandidos, por furtos, roubos ou comércio clandestino, “aumentando ainda mais os índices gerais de delitos patrimoniais, de crimes violentos e de homicídios”.
A decisão monocrática perdurou até julho deste ano, quando os demais ministros terminaram de votar num julgamento, iniciado ainda em abril de 2021, realizado no plenário virtual. Dois pedidos de vista sucessivos, dos ministros Alexandre de Moraes e Kassio Nunes Marques, adiaram a decisão final, colegiada, em mais de dois anos. Pela PEC proposta no Senado, isso também não seria possível, pois apenas um pedido de vista coletivo poderia ser solicitado, com prazo de seis meses, prorrogáveis por mais três.
Quando o julgamento dos decretos de Bolsonaro terminou, em julho de 2023, o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), já havia derrubado as mesmas regras com um novo decreto, que passou a restringir de forma rigorosa a posse e o porte de armas.
Em fevereiro, ao analisar o decreto de Lula, o ministro Gilmar Mendes suspendeu, de forma monocrática, as ações judiciais que buscavam garantir o acesso às armas com base nas regras de Bolsonaro. Essa liminar foi referendada pelo plenário do STF em março, um mês depois.
Limites à censura nas redes sociais
Em setembro de 2021, a ministra Rosa Weber, hoje aposentada, suspendeu uma medida provisória de Bolsonaro que limitava o poder das redes sociais para remover conteúdo e bloquear perfis em suas plataformas. Ela atendeu a pedidos de oito partidos – PT, PSB, PSDB, Novo, PDT e Solidariedade, do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e da OAB. No mesmo dia, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolveu a MP à Presidência da República.
O texto da MP estabelecia direitos e garantias dos usuários, exigindo “justa causa” e “motivação” das plataformas para suspender postagens e contas. Isso só poderia ocorrer em situações específicas, como na divulgação de nudez e atos sexuais; incitação de crimes contra a vida, pedofilia e terrorismo; apoio a organizações criminosas; incentivo à fabricação e consumo de drogas; promoção de violência contra animais; além de crimes cibernéticos contra particulares, poder público ou de violação a direitos autorais e comerciais.
Seria mantida a possibilidade de suspensão de qualquer outro conteúdo por determinação judicial. A MP, no entanto, dava aos usuários o direito de recorrer junto às próprias plataformas em caso de remoção definida por decisão das próprias redes.
Rosa Weber considerou que a norma restringia direitos fundamentais, o que não poderia ser feito pelo presidente da República por medida provisória. Também argumentou que ela tratava de direito processual, por dispor de meios para recorrer, o que também seria vedado. E ainda considerou que não havia urgência para sua edição, e que “representantes do povo e da sociedade civil” não foram previamente consultados para elaboração do texto.
A ministra pediu ao então presidente do STF, Luiz Fux, que marcasse uma data para o julgamento de sua decisão, para que fosse referendada ou rejeitada pelos demais ministros. Como Rodrigo Pacheco devolveu a MP à Presidência, Rosa Weber declarou a perda de objeto das ações e sua liminar deixou de ser examinada pelos pares.
Neste ano, sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os ministros do STF têm defendido a aprovação de um projeto de lei que obriga as plataformas a vigiarem de forma mais rigorosa o que trafega online. O objetivo é que, por conta própria, elas passem a remover conteúdos considerados ilícitos, sob pena de sanções estatais. O risco alegado pelas empresas é de remoção em massa de conteúdos e contas, para mitigar a chance de punições.
Ministério da Agricultura na demarcação de terras indígenas
Em junho de 2019, numa liminar, o ministro Luís Roberto Barroso suspendeu uma medida provisória editada por Bolsonaro que transferia a demarcação de terras indígenas da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura.
A decisão monocrática foi assinada numa segunda-feira, menos de uma semana após a publicação da MP, e antes de sua análise pelo Congresso – para continuar valendo, medidas provisórias têm de ser aprovadas no Legislativo em até 120 dias; nesse período, podem ser alteradas pelos parlamentares.
Barroso atendeu a um pedido do PT, Rede e PDT, partidos que eram minoritários na Câmara e no Senado. Eles argumentavam que, em outra medida provisória, os deputados e senadores já haviam vetado a transferência, para manter a competência com a Funai.
Barroso se valeu de uma regra constitucional que proíbe expressamente a reedição, no mesmo ano, de MP que tenha sido rejeitada ou perdido sua eficácia por vencimento do prazo. Como a primeira tentativa de transferência já havia sido barrada pelo Congresso, Bolsonaro não poderia insistir.
Em abril de 2019, Barroso havia negado um pedido de liminar do PSB para suspender, de forma monocrática, dispositivo da primeira medida provisória, editada por Bolsonaro no primeiro dia de seu governo, que transferia a demarcação da Funai para o Ministério da Agricultura. Nessa primeira decisão, ele considerou que a mudança, por si só, não implicaria perda do direito de indígenas reivindicarem terras que tradicionalmente tivessem ocupado no passado.
Para o ministro, não se deveria presumir que o governo falharia nesse dever e que, afinal, o Congresso poderia alterar a transferência na deliberação sobre a MP, o que de fato ocorreu. “Se no mundo real se vier a constatar violação à Constituição – por exemplo, pela omissão na demarcação de terras indígenas, em contraste com a série histórica sob o regime constitucional de 1988 –, aí estará justificada a intervenção deste Tribunal”, escreveu na primeira decisão.
A segunda decisão monocrática de Barroso, de junho, suspendendo a segunda MP de Bolsonaro, foi referendada mais de um mês depois. Barroso pediu urgência na pauta para o julgamento colegiado de sua liminar no plenário, mas ela só foi analisada no início de agosto, após o recesso de julho, e foi referendada por unanimidade pelos demais ministros. A MP foi aprovada pelo Congresso, sem a parte da demarcação, em outubro de 2019.