Em uma mesma semana, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão administrativo de cúpula do Poder Judiciário, colocou-se no centro de dois temas complexos, que reacendem velhas disputas de poder no seio do Poder Judiciário.
Na segunda-feira (24), veio a público uma recomendação do corregedor nacional de Justiça regulamentando um artigo do regimento interno do órgão que diz que as decisões do CNJ prevalecem sobre decisões judiciais. Na terça-feira (25), enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) discutia a prisão do ex-presidente Lula, o plenário do CNJ começou a discussão de uma regra para limitar a liberdade de expressão de juízes nas redes sociais.
Em um momento tenso em Brasília, com as incertezas em torno das conversas atribuídas ao ex-juiz Sergio Moro e a procuradores, os conselheiros revivem velhos questionamentos do Poder Judiciário ao CNJ, criado em 2004, por meio de Emenda Constitucional, para fazer o controle administrativo e financeiro da magistratura e cuidar de procedimentos ético-disciplinares contra juízes. Em 2005, o STF considerou que a palavra final nesses assuntos é mesmo do CNJ, só podendo ser revista pelo próprio Supremo.
A decisão foi tomada em uma ação patrocinada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que questionava a criação do CNJ e a usurpação de poderes do Judiciário. Nesta quarta-feira (26), a AMB e a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) voltaram à carga e ingressaram com dois mandados de segurança (MS) no STF para reverter a recomendação do corregedor nacional de Justiça, Humberto Marins, de que atos normativos e decisões da Corregedoria prevalecem sobre decisões judiciais, exceto as do Supremo.
Na esteira de inação do STF, juízes contestam CNJ
No seu pedido, a AMB argumenta que a norma do corregedor submete os magistrados que ocupam funções administrativas em tribunais a uma encruzilhada: ou cometem crime de desobediência, atendendo determinação do CNJ e descumprindo decisão judicial, ou cometem infração disciplinar, na hipótese inversa. “Sendo [o CNJ] órgão de natureza eminentemente administrativa, cumpre-lhe acionar a Advocacia Geral da União para recorrer da decisão do Juiz ou Tribunal, como faz qualquer outro órgão administrativo diante de ação proposta contra eles”, argumenta a AMB.
O corregedor nacional respondeu por meio de nota. “Ocorre que tem se verificado casos em que decisões do CNJ têm sido desconstituídas, até mesmo em liminar, por juízes de primeiro grau, gerando insegurança jurídica e fragilizando a possibilidade de controle efetivo do Judiciário”, afirma. “Não parece correto que, por exemplo, uma aposentadoria compulsória de magistrado, determinada pelo plenário do CNJ, seja desconstituída por decisão liminar ou sentença de um juiz de primeira instância em uma ação ordinária”, diz ainda.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) também se manifestou "frontalmente" contra a recomendação do CNJ, em razão de "flagrantes inconstitucionalidade e ilegalidade".
Nesta quinta-feira (27), o ministro Marco Aurélio, relator dos MS no STF, suspendeu a resolução por meio de decisão liminar (provisória).
"Enquanto não reformada ou invalidada, nada, absolutamente nada, justifica o descumprimento de determinação judicial. [...] Ante o potencial cumprimento do ato coator [resolução do corregedor], dotado de autoexecutoriedade [aplicação imediata], com grave risco para a autoridade de decisões judiciais, estão preenchidos os pressupostos autorizadores do acolhimento do pedido de liminar", escreveu na decisão.
Essa disputa, contudo, é resultado de uma omissão do próprio STF. Desde 2011, está parada no tribunal, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, uma ação, também da AMB, que questiona o artigo 106 do regimento interno do CNJ – justamente a norma em que Humberto Martins se baseou para editar a recomendação 39/2019 –, segundo o qual “o CNJ determinará à autoridade recalcitrante, [...] o imediato cumprimento de decisão ou ato seu, quando impugnado perante outro juízo que não o Supremo Tribunal Federal”.
Segundo a AMB, na ação protocolada em 2010, o CNJ, ao se atribuir uma competência que a Constituição não lhe deu, violou o devido processo legal “ao determinar a prevalência das decisões administrativas do CNJ em detrimento de decisões judiciais, sem que haja recurso próprio” e usurpou competências do STF, já que caberia somente ao próprio tribunal, de acordo com a Constituição, julgar as ações contra o CNJ.
Em 2011, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Advocacia-Geral da União (AGU) deram razão ao CNJ, mas a ação está na mesa de Gilmar Mendes desde então.
CNJ começa a votar resolução para disciplinar o uso de redes sociais por juízes
Na terça-feira (25), o conselheiro Aloysio Corrêa da Veiga, ministro do TSE, apresentou um projeto de resolução para disciplinar o uso de redes sociais por juízes que é fruto de um grupo de trabalho instalado pelo ministro Dias Toffoli, em maio deste ano. A proposta já conta com o voto favorável do conselheiro Valdetário Monteiro, advogado indicado pela OAB.
O CNJ continuará discutindo o tema em agosto. A AMB já oficiou o ministro Dias Toffoli, que preside o STF e o CNJ, para que sejam realizadas audiências públicas sobre o projeto.
Pela atual redação da proposta, a norma abrange todas as redes sociais e até mesmo grupos em aplicativos de mensagens. Entre outras disposições, que repetem previsões que já constam da Lei Orgânica da Magistratura, a resolução proíbe os juízes de:
- Manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais;
- Emitir opinião que demonstre engajamento em atividade político-partidária ou manifestar-se em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos;
- Emitir ou compartilhar opinião que caracterize discurso discriminatório ou de ódio, especialmente os que revelem racismo, LGBT-fobia, misoginia, antissemitismo, intolerância religiosa ou ideológica [...].
A resolução ainda recomenda, entre outras hipóteses:
- Evitar embates ou discussões, inclusive com a imprensa, não devendo responder pessoalmente a eventuais ataques recebidos;
- Procurar apoio institucional caso seja vítima de ofensas ou abusos (cyberbullying, trolls e haters), em razão do exercício do cargo;
- Evitar expressar opiniões ou aconselhamento em temas jurídicos concretos ou abstratos que, mesmo eventualmente, possam ser de sua atribuição ou competência jurisdicional;
- Evitar interações pessoais que possam suscitar dúvidas em relação a sua integridade, idoneidade ou imparcialidade de julgamento, especialmente com outros profissionais da justiça;
- Avaliar, antes de compartilhar conteúdo ou a ele manifestar apoio, se não há, ainda que de forma subliminar ou implícita, discurso discriminatório, de ódio, ofensivo, difamatório, obsceno, imoral, ilegal ou que viole direitos humanos ou direitos de terceiros.
As entidades da magistratura ainda não se pronunciaram, mas o MP Pró-Sociedade, associação que reúne procuradores conservadores, divulgou nota contra a proposta:
“[As duas primeiras recomendações da lista acima] negam o direito à legítima defesa consagrado na lei e permitido na Constituição Federal e excluem a possibilidade da retorsão imediata, consagrada pela doutrina e jurisprudência dos Tribunais brasileiros, até porque caracterizam também legítima defesa. E pior: além de tornarem o Juiz um cidadão menor, e, injustificadamente, estimula[rem] a covardia e omissão (perfil não adequado de um magistrado). Inclusive, a legítima defesa e retorsão imediata sequer são negados aos militares apesar das restrições existentes”, escrevem.
Para os procuradores, combinada com o projeto de lei que o Senado aprovou nesta quarta-feira (25), que inclui dispositivos contra o abuso de autoridade, a resolução do CNJ transforma-se em uma mordaça.
“Se realmente for aprovada a famigerada LEI ANTI-LAVAJATO, com a aprovação dessa resolução, a liberdade de expressão ou será crime ou será punível administrativamente (100% de MORDAÇA) calando e intimidando quem quiser ser transparente com a Sociedade” [destaques no original], diz a nota.
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