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Um mutirão organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) resultou na soltura de 21 mil presos entre julho e agosto deste ano. A iniciativa de revisão de processos foi retomada neste ano pelo órgão e deve se tornar mais frequente após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer, nesta terça-feira (3), que há um "estado de coisas inconstitucional" no sistema prisional brasileiro, diante da superlotação dos presídios.
O Mutirão Processual Penal é uma iniciativa promovida pelo CNJ que vigorou entre 2008 e 2014 e que foi retomada neste ano. Segundo o órgão foram revistos em 30 dias mais de cem mil processos de prisões preventivas com duração maior do que um ano, casos de gestantes e lactantes, de réus primários que não integram organizações criminosas, entre outros (veja mais abaixo).
A tendência é que agora esses mutirões ganhem nova tração, após considerações feitas pelos ministros do STF no decorrer de uma ação, proposta pelo Psol, que pede que a justiça reconheça a existência de violação sistemática e massiva de direitos dos presos, além de omissão estatal, falhas estruturais e deficiência nas políticas públicas e excesso de demandas do Poder Judiciário. O julgamento da Ação Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 estava paralisado desde 2021 e foi retomado nesta terça-feira (3), na primeira sessão conduzida pelo ministro Luís Roberto Barroso como presidente do STF.
O jurista Fabrício Rebelo, responsável pelo Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), explica que o Psol, autor da ação, "alega que o sistema prisional brasileiro é incompatível com a garantia fundamental de dignidade da pessoa humana, pois há nos presídios uma situação degradante para os presos”.
No julgamento da ADPF, os ministros entenderam que além dos mutirões praticados recentemente sob o comando do CNJ como medida de controle da superlotação dos presídios, outros pontos deverão ser operacionalizados por meio de planos nacionais e estaduais, como melhoria de infraestrutura dos presídios e programas de ensino à distância para os detentos.
De acordo com a jurista Vera Chemim, por se dar no âmbito de uma ADPF, “o julgamento terá validade para todos – efeito erga omnes – para o Poder Judiciário e a Administração Pública direta e indireta”.
Mutirões de desencarceramento serão utilizados para controlar superlotação nos presídios
A ação do Psol visa, dentre outros pontos, controlar a superlotação dos presídios brasileiros por meio da soltura de presos “de forma irregular”.
“O Estado seria obrigado a, via Poder Judiciário, só decretar prisões quando justificadamente não houvesse outro jeito e, via Executivo, resolver o problema da alegada superlotação dos presídios”, avalia o jurista Fabrício Rebelo sobre a ADPF 347.
Sendo assim, de acordo com o julgamento em tramitação no STF, devem ser priorizadas medidas alternativas às prisões em caso de “pequenos crimes”. “Tais prisões deveriam ser substituídas por medidas cautelares alternativas, inclusive para evitar o contato com presos perigosos e o agravamento da criminalidade”, explica a jurista Vera Chemim.
Algumas das medidas apresentadas no julgamento da ADPF são os juízes não aplicarem medidas cautelares em substituição à pena privativa de liberdade; a decretação de penas alternativas e a obrigatoriedade de audiências de custódia presenciais em 24 horas a partir da prisão.
Medida pode colocar mais criminosos nas ruas, avalia jurista
Para o jurista Fabrício Rebelo, a ADPF pode liberar ainda mais criminosos que hoje estão nos presídios brasileiros. “Essa é não só uma possibilidade, mas o efeito mais provável do julgamento. Aliás, não é outro o objetivo da ação, pois se sabe perfeitamente que a solução para as deficitárias instalações carcerárias é complexa e demanda tempo. Além disso, num governo de esquerda, basta que não se priorize esse setor para a soltura dos presos se tornar inevitável, diante do julgamento dessa ação”, avalia Rebelo.
Por outro lado, o advogado criminalista Berlinque Cantelmo avalia que “a garantia de que os mutirões não sirvam de soltura deliberada de presos é a análise pormenorizada de cada caso”.
“O problema sobre prisões no Brasil é a sensação que a sociedade tem de que qualquer conduta merece ser punida com cadeia e não é bem assim. Existem diversas pessoas presas provisoriamente por fatos ou circunstâncias que sequer vão ter um desfecho de condenação e, se condenados fossem, as penas não importariam em detenção ou reclusão”, pontuou Cantelmo.
Por outro lado, o cientista político José Maria Nóbrega, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência, da Criminalidade e da Qualidade Democrática da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), afirma que o “STF age emotivamente” ao julgar a ADPF do Psol.
“O partido tem razão em dizer que o sistema é desumano, mas abolir pena não é a saída. É necessária uma profunda reforma de todo o sistema de justiça criminal. Temos um dos piores do mundo e por isso a nossa semidemocracia não avança. O sistema carcerário é apenas uma das engrenagens podres desse sistema”, explicou Nóbrega.
Apesar do mutirão de desencarceramento, maioria dos casos de prisões preventivas foram mantidas
O Mutirão Processual Penal do CNJ foi instituído por meio da Portaria da Presidência CNJ 170/2023 e estabeleceu quatro hipóteses para a reavaliação das prisões:
- prisões preventivas com duração maior do que 1 (um) ano;
- gestantes, mães e mulheres responsáveis por crianças e pessoas com deficiência presas cautelarmente;
- pessoas em cumprimento de pena em regime prisional mais gravoso do que o fixado na decisão condenatória;
- pessoas cumprindo pena em regime diverso do aberto, condenadas pela prática de tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006).
Durante o mutirão de desencarceramento, realizado entre 24 de julho e 25 de agosto, foram movimentados 100.396 processos e revisados 70.452 casos. Do total de casos reavaliados pelo Mutirão do CNJ, 75% tiveram a prisão cautelar mantida. Esta foi a hipótese elencada pelo CNJ com o maior número de situações analisadas pelos juízes e juízas, mas com o menor número de alterações processuais no que concerne à liberdade das pessoas.
Conforme o Relatório de Informações Penais (Relipen), relativo ao primeiro semestre de 2023, em 30 de junho, havia 180.205 pessoas presas provisoriamente em celas físicas no Brasil, o que corresponde a cerca de 28% da população prisional.
Para o professor da graduação em Direito da UnB, Welliton Caixeta Maciel, o Mutirão do CNJ está alinhado com o direcionamento em âmbito federal das políticas judiciárias, das políticas penais e das políticas de segurança pública, ainda que a realidade, na ponta, acabe "retroalimentando o sistema de justiça criminal e os estabelecimentos penitenciários, em ciclos de reincidência e reiteração criminais".
População carcerária se mantém estável no governo Lula
O Levantamento de Informações Penitenciárias referentes ao primeiro semestre de 2023, lançado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) no dia 14 de setembro, apontou que, até junho de 2023, havia 649.592 presidiários em celas físicas ou em carceragens das Polícias Civil, Militar ou Federal, ou dos Bombeiros Militares, no Brasil. Em 2022 eram 648.692 presidiários. O aumento de 0,14% da população carcerária brasileira aponta para um cenário de estabilidade no primeiro semestre.
No entanto, a soltura em massa dos presos realizada pelo CNJ deve se refletir no próximo levantamento, que levará em conta a população carcerária de julho a dezembro de 2023.
Os Relatórios de Informações Penais são elaborados semestralmente por meio de informações geradas a partir de dados lançados por servidores indicados pelas administrações prisionais dos Estados, Distrito Federal e do Sistema Penitenciário Federal no Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen).
Sistema de justiça criminal brasileiro é um dos piores da América Latina
No ranking do "World Justice Project: Rule of Law Index 2022", o Brasil ocupa a 112ª posição mundial, entre 139 países avaliados, quando é avaliada a justiça criminal. Dentro da América Latina, o Brasil ficou abaixo da média, ocupando a 20ª posição entre 32 países.
O cientista político José Maria Nóbrega destacou a posição do país no ranking ao afirmar que o país tem um dos piores sistemas de justiça criminal.
“Nosso índice de investigação criminal é um dos piores da região. A nossa nota no Rule of Law Index no índice de investigação criminal, de zero a dez, é 2.8. Ou seja, sequer se investiga os crimes”, pontuou o cientista político.
Entre os medidores usados na pesquisa estão a efetividade das investigações, a duração razoável do processo, a capacidade de prevenção criminal, a imparcialidade do sistema de justiça, a ausência de corrupção e o respeito ao devido processo legal.
Nóbrega afirma ainda que o sistema brasileiro não funciona a contento, tendo em vista os dados da população carcerária e a liberação promovida pelo CNJ.
“Prisões importam. Impunidade, também. Se a polícia prende e o judiciário solta por não ter competência para julgar e punir, fica muito difícil controlar o crime violento. Temos que inserir aí a benevolência de nossa legislação penal. A segurança pública é um sistema. Passa por todo sistema de justiça criminal. Polícias, promotoria, judiciário e sistema carcerário. É um fator importante de estado de direito. No Brasil, esse sistema não funciona a contento”, avalia.