O primeiro mês de Cristiano Zanin como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) foi marcado pelo intenso bombardeio da esquerda sobre seus votos. Políticos, militantes e ativistas progressistas não esconderam, nas redes sociais e na imprensa, a insatisfação com as posições do ministro contra a descriminalização da maconha para consumo, contra o reconhecimento da homotransfobia como injúria racial, e contra o cabimento de uma ação que pede medidas de proteção às comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul, principalmente.
Enquanto na comunidade acadêmica as críticas são vistas como naturais, dentro do STF, no entanto, alguns ministros têm se incomodado com o patrulhamento em cima do novato. Nos bastidores, temem que isso alcance todos os integrantes do tribunal, especialmente caso a maioria não acolha teses caras à esquerda. Nesta quarta-feira (30), por exemplo, o plenário retomou o julgamento que pode manter ou acabar com o marco temporal, critério que exige das tribos a ocupação ou disputa por um território em 1988 para demarcação de terras indígenas. É mais um caso em que todos os olhos estarão voltados para Zanin, sobretudo por opor defensores do agronegócio, mais à direita, a ambientalistas e ONGs, à esquerda.
Por outro lado, a cobrança em cima do ministro – chamado de “conservador”, por não atender ao desejo da esquerda e não ter demonstrado compromisso com suas causas no processo de indicação – também faz parte de um movimento para convencer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a indicar, para a próxima vaga, que surgirá no final de setembro, uma pessoa da academia, da magistratura ou da advocacia comprometida com o ideário progressista.
Dentro do PT, do PSOL, PSB, PCdoB e outros partidos, há forte desejo por uma mulher negra para ocupar a cadeira da ministra e atual presidente do STF, Rosa Weber. Ela se aposenta no início de outubro, quando completará 75 anos, idade-limite para exercer o cargo.
Até o momento, Lula tem demonstrado aos interlocutores mais próximos que prefere alguém que seja fiel e próximo, como Zanin. Na prática, um indicado que possa blindá-lo caso surjam suspeitas contra ele e que vote favoravelmente ao governo em questões cruciais. O mais cotado hoje, que atende a esses critérios, é o advogado-geral da União, Jorge Messias, que tem a simpatia da ex-presidente Dilma Rousseff. Em segundo lugar no páreo está o presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, próximo do senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Os atuais ministros não expressam publicamente o incômodo com as críticas a Zanin. Alguns, no entanto, buscam sinalizar, de forma discreta, apoio ao novo colega, seja por apreço pessoal ou para reforçar a defesa de sua autonomia dentro do tribunal.
Nesta semana, por exemplo, a Primeira Turma da Corte aderiu à posição de Zanin que rejeitou a aplicação do princípio da insignificância – comumente usado para absolver autores de furto de pequeno valor – a dois homens condenados por saquear um macaco de carro, dois galões para combustível e uma garrafa contendo óleo diesel, avaliados em R$ 100.
Zanin votou pela manutenção da pena de prisão, apontando que o crime foi cometido por mais de uma pessoa, durante o repouso noturno e que um deles é reincidente. A maioria dos ministros da turma – Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux – acompanhou esse entendimento, seguindo a jurisprudência do STF. Houve só um reparo: em vez de prisão, consideraram que ele poderia prestar serviços à comunidade, pagar multa e sofrer limitações no fim de semana. Apenas Cármen Lúcia votou pela absolvição total.
“Patrulhamento” em cima de Zanin
Para o ministro aposentado Marco Aurélio Mello, notabilizado muitas vezes por votar contra a maioria dos ex-colegas, o “patrulhamento” em cima de Zanin é ruim para todo o STF. Para ele, o novo ministro não pode ceder à cobrança por posições progressistas.
“Ele tem tudo para ser grande juiz. É chefe de família, educado e com os pés no chão. É senhor de si, e atua conforme o seu convencimento, e não como uma ‘Maria vai com as outras’. A instituição está acima de cada integrante, e o integrante tem que perceber a envergadura da cadeira. Temos no STF as 11 cadeiras mais importantes do país. O presidente da República fica na cadeira 4 anos, o ministro do STF é vitalício, julga o presidente, julga os membros do Congresso Nacional, e tem a última palavra sobre os atos dos outros Poderes”, diz.
Na academia, estudiosos que observam de perto o STF consideram natural a crítica pública aos votos de Zanin e não entendem que isso ameace a autonomia dele para votar.
Janaína Penalva, doutora e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), sustenta que os votos dele foram “errados” em relação às minorias – no caso da descriminalização do porte de maconha, um dos argumentos é que a polícia enquadra usuários jovens, negros e pobres como pequenos traficantes, levando-os para a cadeia.
“Zanin é um jurista relevante para a história do Brasil, mas isso não muda posições contrárias aos direitos fundamentais que ele tomou. Isso era previsível, ele era um advogado penalista, sem incursões na seara da igualdade e da proteção dos direitos das populações vulneráveis e das minorias. Os votos nos casos citados estão errados e decepcionam todos que, alinhados à esquerda, esperavam que Zanin tivesse coragem de votar pelas causas da igualdade na mesma intensidade que advogou pela inocência do Presidente Lula. De toda forma, há ainda um longo caminho pela frente e não serão poucas as ações nas quais Zanin pode votar conforme os direitos fundamentais”, opina.
A expectativa, para ela, é que ele adotasse posições “corretas, constitucionalmente adequadas”. “Decisões capazes de, no mínimo, compreender como o Brasil se forma, quem foi morto, quem foi escravizado, quem perdeu seu território. Decisão judicial nenhuma pode se construir sem história e sem crítica. Não há relevância jurídica na restrição da liberdade em assuntos sem relevância penal, enquanto há muita relevância na responsabilização pela discriminação sexual. Zanin precisa de coragem para votar em favor das minorias”, diz a professora da UnB.
Para a professora e doutora Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques, da Universidade Nove de Julho, a cobrança do PT é nociva para Zanin. “Parte do pressuposto que ele foi indicado para votar conforme o interesse do partido, e o ministro tem que votar conforme a Constituição. As pessoas contavam como uma indicação para politizar mais o Supremo. Talvez ele vote assim para demonstrar independência em relação a quem o indicou. Na sabatina, ele frisou mais de uma vez que votaria conforme a Constituição e não por pressão política. A esquerda criticou tanto o Bolsonaro por indicar um evangélico, mas agora faz o mesmo, cobrando que ele vote conforme uma agenda política”.
O advogado Felipe Fonte, professor de Direito Constitucional da FGV Direito Rio, também entende que, “no ambiente democrático, é absolutamente normal” a cobrança em cima de Zanin. “É natural que ministros do STF, que ocupam posição relevante no espaço público, que têm um poder decisório relevante, e que tratam de temas socialmente controvertidos – e a Corte não tem como escapar, seja porque a Constituição é abrangente e não pode recusar demandas – vá apreciar esses temas e a sociedade reaja de formas diversas”, diz.
A independência de Zanin, acrescenta Fonte, é assegurada pela Constituição: o mandato vitalício e a irredutibilidade de seu salário, entre outras garantias, servem para isso. “Se não há ameaça de um impeachment indevido, acho mais que natural que indicado por um presidente apoiado por um partido e uma militância de esquerda, as pessoas tendam a cobrar dele um certo viés, especialmente em questões difíceis, mais subjetivas”, afirma.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Thomas Bustamante vai além: considera que a crítica a posições de ministros faz parte do processo democrático. “Do ponto de vista da teoria política e da filosofia política, a justificação que pode haver para que uma corte constitucional exista, com controle de constitucionalidade das leis e poder de anular decisões de outros poderes, é justamente a capacidade que ela tem de provocar maior clarificação na sociedade em relação a direitos que dividem a todos nós”.
Para ele, é “evidente” que uma indicação por parte de Lula gerasse nas pessoas cobrança por sensibilidade em relação a pautas progressistas. “E incide não apenas sobre o Zanin, mas talvez principalmente sobre o Lula, pelas escolhas que está fazendo”, diz ele. Dentro da comunidade acadêmica, no entanto, não haveria surpresa em relação a Zanin, que, lembra o professor, nunca assumiu compromissos com minorias. “Na verdade, o erro não é do Zanin, mas do Lula, provavelmente, de tê-lo indicado esperando que viesse algo diferente”, complementa.
Assim como colegas da academia, Bustamante diz que o ministro tem prerrogativas que lhe garantem independência para votar. “O juiz tem que ser independente inclusive em relação à opinião pública. Mas isso não impede que setores da sociedade cobrem posições, principalmente coerência em relação a princípios que juízes afirmam professar. O juiz tem que saber lidar com isso. Se ele não tiver capacidade de resistir a essa pressão da opinião pública, ele não tem condição de ser juiz. E se não tiver também capacidade de reexaminar as suas convicções quando elas sejam incoerentes, ele também não vai ser um bom juiz”.
Doutor e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, o advogado e professor Horacio Neiva considera “não só é bem-vinda, como necessária” a crítica a votos de ministros. “Seja a crítica por votos que não são progressistas, ou conservadores, por não serem de acordo com o direito, ou contra o direito. Acho que faz parte da reação da esfera pública a crítica às decisões do STF. E vejo com maus olhos essa ideia de que a independência dos ministros ou a autonomia para que possam decidir equivale a imunidade à crítica pública”, diz ele.
“Não só o ministro Cristiano Zanin, mas todos os ministros proferem votos que são públicos, que envolvem questões sensíveis para a população, como direitos fundamentais. Eles têm o poder de decidir por último, mas não têm uma imunidade de serem criticados pelos votos que tomam. Então, eu não acho que só o Zanin, mas todo e qualquer ministro, não só está sujeito, mas como deve estar sujeito a essa crítica pública”, afirma.
Ele considera que, no caso de Zanin, o que houve foi uma quebra de expectativa por parte da esquerda que o apoiou sem questionar antes, no processo de indicações, que posições ele tinha para causas caras ao campo progressista.
“As pessoas criaram uma expectativa de que, por ser a primeira indicação do presidente Lula, ele teria certas posições consideradas progressistas, compatíveis com aquilo que o eleitorado mais progressista do presidente Lula teria. Essa expectativa foi criada pelas próprias pessoas, porque em todo o processo de indicação do Zanin, durante a sabatina, grande parte das pessoas fechou os olhos justamente para isso: ninguém sabia quais eram as posições do Cristiano Zanin sobre questões como legalização das drogas, aborto, a pauta LGBTQIA+. As pessoas criaram expectativa com base em pouca informação. Não se exigiu durante essa caminhada do Cristiano Zanin ao STF, por exemplo, nas sabatinas no Senado e mesmo nas críticas públicas, as posições que ele tinha, não perguntaram. Muito pelo contrário: muitas delas defendiam que ele tinha um notável saber jurídico, em razão da atuação que teve na defesa do presidente Lula nas ações penais e a partir daí deduziram, com base em pouquíssima ou nenhuma informação, que ele teria posições políticas similares à do presidente Lula. Preferiram fechar os olhos. Você não pode se frustrar com uma pessoa que tomou posições que você não perguntou para ela antes quais eram. O erro foi na criação dessa expectativa”.
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