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O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já liberou o pagamento de R$ 30 bilhões em emendas parlamentares neste ano. O total é 79% superior ao empenhado durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), conforme afirmou o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, durante reunião com líderes do governo e de partidos no Congresso Nacional na terça-feira (5). Ainda que a execução de algumas delas seja obrigatória, a administração petista tem divulgado os números como uma estratégia para melhorar sua relação com o Parlamento, a fim de aprovar pautas como a reforma tributária e os vetos à desoneração da folha de pagamento, por exemplo.
A propaganda que Padilha fez da liberações por parte do governo, algumas para pagamento de emendas impositivas, tem um alvo bem definido: nos bastidores, o Congresso está articulando a liberação de mais R$ 6 bilhões ainda neste ano. Desse valor, que é chamado pelo governo de "presente de Natal" para o Parlamento, R$ 2 bilhões seriam para o Senado e R$ 4 bilhões para a Câmara. Os montantes poderiam ser utilizados pelos parlamentares principalmente como "emendas pix", que são aquelas que eles podem encaminhar para seus municípios sem projeto obrigatório de gasto já previsto pelos prefeitos.
Esse pacote é visto como fundamental para a aprovação de medidas que são importantes para Lula e sua equipe. Ou seja, o governo tem utilizado a liberação das emendas para obter apoio em votações na Câmara e no Senado, já que é ele que controla quando esse empenho efetivamente irá ocorrer.
E, caso isso não ocorra, há reação no Congresso. Uma amostra disso foi que a indecisão do Planalto em acatar ou não a solicitação sobre a liberação das emendas levou votações à paralisia nesta semana, como a medida provisória que trata do ICMS e o projeto de lei das apostas esportivas. A apuração dessas negociações foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo na sexta-feira (8).
Para o analista político Lucas Batista Pinheiro, da consultoria Consillium Soluções Institucionais e Governamentais, as emendas parlamentares são uma forma que os congressistas têm de participar do orçamento da União. “A missão do governo Lula é difícil, pois tem que alcançar a governabilidade e fortalecer a base, agradando setores do Parlamento acostumados, desde 2015, a ter uma forte presença no orçamento. Neste sentido, o governo sempre tem que comunicar ao Parlamento que está atendendo seus pedidos para manter a base fiel em votações importantes”, afirma.
Atualmente, são impositivas as emendas individuais (RP-6) e de bancadas estaduais (RP-7). Isso significa que o governo é obrigado a empenhar e pagar esse tipo de emenda, exceto quando houver um impedimento de ordem técnica. As emendas individuais passaram a ser impositivas a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 86/2015. Já as emendas de bancada e se tornaram impositivas com promulgação da Emenda Constitucional nº 100/2019.
Pinheiro ressalta que o forte protagonismo do Parlamento frente a uma série de atribuições do presidente da República foi estabelecido pela Constituição de 1988. “Isso gerou o que o cientista político Sérgio Abranches chamou de "Presidencialismo de Coalizão", em que o presidente, para garantir a governabilidade, teria que buscar uma forma de compor com o Parlamento. Tanto em 2015 (governo da ex-presidente Dilma Rousseff) quanto em 2019 (governo do ex-presidente Jair Bolsonaro) o Parlamento avançou na participação orçamentária diante de uma fragilidade na base de sustentação no Congresso”, explica.
As emendas em números
Até o dia 5 de dezembro, do total empenhado, o governo federal já havia feito o pagamento de 96%, R$ 29 bilhões. Ao todo, há a previsão de R$ 35,8 bilhões em emendas para este ano, conforme dados do Senado Federal disponibilizados na plataforma Siga Brasil. Ao divulgar as ações do governo, Padilha ainda afirmou que "o ritmo de pagamento [no governo Lula] também é maior [que no governo Bolsonaro], ou seja, não só empenho [reserva], mas o desembolso financeiro também".
Do total já pago, 64,43% são referentes à emendas individuais (R$ 18,7 bilhões), 20,5% à emendas de bancadas estaduais (R$ 5,9 bilhões), 14,42% referem-se às de relator-geral (RP-9) e 0,66% foram destinados às de comissão (RP-8; R$ 190 milhões). A área da saúde é a que recebe mais recursos, já que pelo menos 50% das emendas individuais devem ser destinadas a esse setor. Neste ano, o valor já repassado para que o Ministério da Saúde faça o devido encaminhamento é de R$ 13,5 bilhões ou 46,59% do valor total das emendas pagas (incluindo individuais, de bancada, de comissão e de relator).
Em termos das bancadas estaduais, a do Pará lidera o ranking de pagamentos, com R$ 311 milhões; seguida por Minas Gerais, com R$ 298 milhões; Espírito Santo, R$ 283 milhões, Santa Catarina, R$ 279 milhões, e Maranhão, com R$ 277 milhões. A bancada de São Paulo, estado cujo PIB responde por 30,2% da economia nacional, segundo dados do IBGE para 2021, encaminhou R$ 252 milhões, ficando em 11º lugar no ranking.
Principais partidos e congressistas
Em relação aos partidos políticos, o PL teve o maior volume de pagamento de emendas, com R$ 2,41 bilhões – o que não é de se estranhar, já que possui o maior número de congressistas. Em seguida, vem o PSD, com R$ 2,19 bilhões; o PT, com R$ 1,96 bilhão; o PP em quarto lugar, com R$ 1,94 bilhão; e o União com R$, 1,77 bilhão. MDB e Republicanos também estão entre os sete partidos cujos parlamentares destinaram mais de R$1 bilhão em emendas, com R$ 1,76 e R$ 1,28 bilhão respectivamente. As emendas sem vinculação a partidos políticos ainda representam o maior valor pago até o momento, um total de R$ 10,3 bilhões.
Chama a atenção o volume de recursos direcionados por alguns congressistas. A senadora Eliziane Gama, pelo PSD do Maranhão, é a campeã na destinação de emendas neste ano, com R$ 66, 7 milhões. Além de ser aliada do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, ela presidiu a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro. A também senadora Daniella Ribeiro, do PSD da Paraíba, preside a Comissão Mista de Orçamento (CMO) e ocupa a segunda posição no ranking dos parlamentares que tiveram mais emendas pagas, com R$ 61,47 milhões destinados a seu estado.
Veja a tabela com os dez parlamentares que tiveram o maior volume de emendas pagas (os valores incluem emendas deste ano e restos a pagar de anos anteriores):
Impositivas ou nem tanto
A barganha não ocorre somente com as RP-9 e as RP-2, pois, mesmo com a obrigatoriedade para o pagamento de emendas individuais e de bancada, não há sanções caso o governo atrase o repasse dessas verbas. Além disso, se não forem liquidadas no ano em que foram destinadas, elas passam para o orçamento do ano seguinte como Restos a Pagar, o que pode adiar por tempo indeterminado a liberação dos recursos. Neste ano, há emendas de 2019 que estão sendo pagas.
E o governo não responde no âmbito judicial ou administrativo quando falha em fazer os repasses, a não ser na medida da conveniência política para manter e ganhar novos aliados ou não.
O doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Barreto explica que, ainda que a emenda seja obrigatória, o governo controla o tempo da liberação e que, por isso, acaba barganhando com o parlamentar o quão rápido ela será liberada.
Para limitar essa prática e garantir maior autonomia ao Congresso, parlamentares têm buscado mecanismos que obriguem o governo a fazer o repasse das emendas no ano de sua indicação, com imputação de crime de responsabilidade ou multas, por exemplo, caso haja atraso. Uma das propostas mais ventiladas é a da criação de um cronograma de pagamentos, defendida pelo relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias, o deputado Danilo Forte (União-CE), em novembro deste ano.
Em seu primeiro mandato, a deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) apoia a iniciativa, para que haja uma previsibilidade no repasse dos recursos. “Atualmente, os deputados não sabem quando as emendas e, portanto, as verbas que destinam para os municípios de seus estados serão liberadas. A proposta do Danilo é muito inteligente porque é ruim não ter uma previsibilidade. É um direito do parlamentar, porém você tem que ficar implorando para o governo liberar algo que é nosso direito?”.
Mesmo como deputada de oposição, a parlamentar catarinense conta com a impositividade das emendas individuais e de bancada para que os recursos que designar cheguem até o seu destino. “Eu espero, no meu momento, receber as emendas empenhadas - e isso independe do meu apoio ao governo, tanto é que eu votei 100% com a oposição”, afirma.
Luiz Felipe Freitas, cientista político e assessor legislativo da Malta Advogados, não avalia que a medida seja necessariamente ruim para o governo, mas que evitará que haja uma liberação massiva de emendas antes de votações de matérias delicadas ou importantes para o Executivo.
"Vai mudar um pouco essa logística e caberá ao governo criar um novo método, mudar o diálogo. O que se vê é que na votação da reforma tributária houve liberação de um certo número de emendas, outras tantas para o arcabouço fiscal, creio que haverá mais emendas agora para o orçamento. Com esse calendário a lógica fica diferente", afirma,
Críticas às emendas individuais
Segundo Barreto, diante de uma associação crescente entre o Executivo e o Judiciário, as emendas são um importante instrumento que o Parlamento possui para o equilíbrio entre os Poderes. “Com o Lira [presidente da Câmara, Arthur Lira, PP-AL], o volume cresceu e, hoje o Legislativo tem um orçamento para distribuir bem significativo. Para se ter ideia, um único deputado tem mais recursos para alocar do que alguns ministérios", afirma.
Além disso, Lucas Pinheiro ainda explica que a ideia da emenda orçamentária para o parlamentar é a de que ele conhece de perto a realidade do seu estado ou município. “Esse conhecimento deve ser aliado ao planejamento, para que haja uma distribuição efetiva do recurso público”.
O analista ainda destaca que uma das bases da administração pública é a impessoalidade, ou seja, “o uso do recurso público deve ser para a finalidade do bem da coletividade e não para atender interesse privado”.
No entanto, nem sempre é isso que acontece, o que faz com que haja críticas às emendas. Um caso emblemático é o do ministro das Comunicações de Lula, Juscelino Filho. Enquanto era deputado federal do partido União pelo estado do Maranhão, ele teria encaminhado R$ 5 milhões de emendas de relator para pavimentar uma estrada que passa em frente a uma de suas fazendas no Maranhão, além de beneficiar outras oito propriedades de sua família.
A denúncia foi feita pelo jornal O Estado de S. Paulo, que afirma que os recursos foram transferidos para o município de Vitorino Freire (MA), que é governado por Luanna Resende, irmã de Juscelino. A prefeitura contratou a empresa Construservice, que concorreu sozinha em uma licitação para realizar a obra. Cinco meses após a assinatura do contrato, em julho de 2022, um empresário foi preso pela Polícia Federal, acusado de pagar propina a servidores federais para obter obras na cidade. Além disso, o engenheiro da Codevasf responsável pela estrada foi afastado sob suspeita de receber R$ 250 mil em propina. O empresário e o ministro do governo Lula seguem sob investigação da PF.
Ano eleitoral
Além do uso de recursos para favorecimento pessoal, a proximidade do ano eleitoral, em 2024, também traz o receio de que emendas possam ser utilizadas para impulsionar campanhas de correligionários dos deputados e senadores em suas regiões.
“É natural do agente político que evidencie as suas ações, pois, ao mesmo tempo, é uma prestação de contas do seu mandato aos eleitores. É um paradoxo, já que o agente político deve ser impessoal e transparente. Por isso, se faz necessário um equilíbrio para que a máquina pública não seja utilizada para autopromoção, mas para o bem da coletividade, dos contribuintes”, afirma Pinheiro.
Luiz Freitas estima que o volume e o valor de emendas liberadas até as eleições do próximo ano irão aumentar. "A ideia do governo é tentar descentralizar as barganhas em torno do [Arthur] Lira, que as centraliza em torno de si. Então, o governo quer tirar um pouco do seu poder para tentar negociar diretamente com os parlamentares". Ele afirma que o governo vê a necessidade de ganhar prefeituras em mais municípios para, desta forma, alavancar o desempenho do PT e de seus aliados em 2026.
Barganha política com as RP-9 e RP-2
Em 19 de dezembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu as Emendas de Relator (RP-9) que ficaram conhecidas como orçamento secreto, pois não havia a necessidade de indentificar o parlamentar responsável pela indicação dos recursos, ferindo preceitos orçamentários de transparência. Como consequência, R$ 10,6 bilhões que estavam empenhados em 2022 sob essa rubrica ficaram como Restos a Pagar no orçamento deste ano.
Em sua decisão, o Supremo ainda determinou que caberia às pastas avaliarem, de acordo com programas e projetos existentes nas respectivas áreas, a propriedade da aplicação desses recursos. Ou seja, por meio de critérios técnicos, os ministérios passariam a analisar os repasses e iriam decidir se seguiriam adiante com o pagamento ou se cancelaria – o que abre uma margem para barganhas políticas do governo com parlamentares que queiram garantir a destinação dos recursos indicados por meio dessas emendas.
Em 29 de agosto deste ano, o governo entregou a parlamentares um documento com detalhamento sobre a liberação de recursos de emendas, incluindo as RP-9 elencadas nos restos a pagar. Segundo o Metrópoles, que primeiramente reportou o caso, foi uma “prestação de contas sobre o uso de verba federal para atender aliados, detalhando como o Executivo tem usado o Orçamento público para conseguir apoio no Congresso Nacional”.
O relatório teria sido usado junto à base aliada para diminuir a pressão sobre o governo, acusado de lentidão nos repasses das emendas. Conforme reportado, os pagamentos das antigas RP-9 até o fim de agosto remontavam a R$ 2,8 bilhões. À época, houve divergência de informações entre a Secretaria de Relações Institucionais (SRI) e os ministérios. Segundo a SRI, os demandantes do repasse de recursos das RP-9 estavam sendo identificados pelo governo para serem notificados da destinação das verbas. Em contrapartida, alguns ministérios disseram que seguiam sem identificar a origem das emendas, mas que as estavam analisando sob critérios técnicos.
Impedido de utilizar as RP-9, o governo Lula se valeu das RP-2, usadas na destinação de verbas para ministérios e que incorrem na mesma falta de transparência das RP-9. Segundo o Metrópoles, foram reservados R$ 9,6 bilhões para esse tipo de repasse. O valor seria destinados às RP-9 em 2023, mas foi transformado em RP-2 – ou seja, o orçamento secreto apenas mudou de rubrica, dando seguimento às práticas de barganha política sem transparência com os recursos públicos.
O deputado Alberto Fraga (PL-DF) afirma que o funcionamento do sistema é conhecido por todos. “Quando o governo quer consolidar a sua base em uma votação importante, ele abre o cofre e as emendas funcionam como o pagamento daquele voto que o governo vai ter em uma votação de seu interesse.” Ele ainda diz que é “lamentável” que a gestão petista adote práticas de barganha como essas. “Vários parlamentares acabam se deixando seduzir pelas emendas. É lamentável”, critica.
O senador Oriovisto Guimarães (Podemos - PR) afirma que as emendas individuais e de bancadas estaduais são mais do que suficientes para que o parlamentar destine recursos para seus estados. “Nunca obtive e tão pouco procurei obter emendas RP9 ou RP2. Acho tudo isto uma tristeza, um empobrecimento da política. Seja do governo anterior ou deste governo, trocar votos em assuntos que envolvem o interesse de toda população brasileira por emendas é algo inadmissível do ponto de vista ético”, salienta.