A descriminalização do porte de drogas pode agravar problemas de segurança e saúde públicas, segundo especialistas nas duas áreas ouvidos pela Gazeta do Povo. O tema voltou a ganhar relevância com a votação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal e o Congresso debate uma proposta que visa criminalizar o porte de qualquer quantidade de qualquer droga.
O analista em defesa e segurança Alessandro Visacro avalia que a descriminalização das drogas gera uma alta no consumo e como a comercialização da droga seguirá sendo crime, a consequência lógica é o fortalecimento das atividades do tráfico e, portanto, das facções criminosas.
Já na área da saúde pública, o médico psiquiatra e presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, Ronaldo Laranjeira, afirma que mesmo o uso recreativo de drogas pode causar dependência química, trazendo danos irreversíveis à saúde. Além disso, o consumo dessas substâncias pode afetar os relacionamentos interpessoais, o desempenho acadêmico e profissional.
O médico explica que um estudo nos Estados Unidos revelou que, pela primeira vez no país, após políticas de descriminalização do uso recreativo da maconha, o número de usuários diários dessa droga ultrapassou o número de pessoas que ingerem bebidas alcoólicas todos os dias.
Do ponto de vista de saúde pública, segundo Laranjeira, esse aumento pode ser trágico em razão dos danos causados pelo consumo da maconha, como esquizofrenia, depressão, propensão ao suicídio e ansiedade.
No julgamento do STF, até agora, cinco ministros votaram pela descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal, estipulando uma quantidade limite para diferenciar usuário de traficante. A tendência é que nesta terça-feira (25), quando o julgamento for retomado, o tribunal forme maioria em torno deste entendimento. Dois ministros ainda precisam registrar seus votos: Cármen Lúcia e Luiz Fux.
O principal argumento em comum dos ministros que votaram pela descriminalização é que a Lei de Drogas, apesar de não punir o porte para consumo pessoal com prisão, não define critérios para diferenciar consumo de tráfico, o que abre margem para " excesso de discricionariedade" dos agentes da polícia e do judiciário e "falta de isonomia" no tratamento dos flagrantes de drogas.
Este cenário, segundo escreveu o ministro Alexandre de Moraes, estaria gerando distorções, fazendo com que pessoas presas com a mesma quantidade de droga, mas com características socioeconômicas e raciais diversas, tenham punições diferentes.
Durante o julgamento, o ministro falou que “o STF tem o dever de exigir que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia, classe social, renda ou idade”.
Descriminalizar o porte prejudica combate ao tráfico, diz jurista
Um ponto comum defendido pelos especialistas contrários ao entendimento dos cinco ministros do STF é que a descriminalização leva ao aumento do consumo de drogas e, consequentemente, do tráfico.
Jurista e responsável pelo Centro de Pesquisa em Segurança (Cepedes), Fabrício Rebelo afirma que o crescimento se dá até mesmo entre outras substâncias que não tenham sido liberadas, o que, por sua vez, amplia a circulação criminosa de drogas e as atividades ilegais periféricas relacionadas ao tráfico.
Países como Holanda e Dinamarca, precursores nas políticas de uso recreativo dessas substâncias, começaram a rever essas medidas mais tolerantes. Outro exemplo citado é o Oregon, primeiro estado americano a liberar o uso recreativo de todas as drogas no país em novembro de 2020. Em fevereiro desse ano, o governo do estado resolveu reverter a decisão, justamente por conta do crescimento do consumo e da criminalidade.
Em 2001, Portugal foi um dos primeiros países a aprovar uma lei de descriminalização de drogas. Até 2009, os resultados pareciam favoráveis à medida, incluindo a redução de 16,5% na população carcerária. No entanto, nos últimos anos, a tendência parece ter se revertido. Uma pesquisa nacional de 2023 avaliou que, entre 2001 e 2022, a porcentagem de adultos que usa drogas ilícitas aumentou de 7,8% para 12,8%.
A pesquisa ainda traz pontos incomuns, como os altos índices de cocaína e cetamina detectados em amostras do esgoto de Lisboa, principalmente nos fins de semana, sugerindo alto uso em festas. Em Porto, a coleta de detritos gerados pelo uso de drogas nas ruas da cidade aumentou 24% no mesmo período. Também houve aumento nas taxas de crime: 14% entre 2021 e 2022. Em parte, a polícia atribui esse crescimento na criminalidade ao uso de drogas.
O Coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro Fábio Cajueiro ainda destaca que o Brasil tem os serviços públicos de educação, saúde, transporte e segurança “precários e incapazes de atender todas as demandas da população” e que, mesmo assim, uma possível descriminalização do porte de drogas voltou ao debate público, como se isso fosse somar algo de positivo para a vida das pessoas. Ele afirma que o "narconegócio" e seu braço armado, a "narcoguerrilha", “agradecem qualquer iniciativa que amplie seu mercado e facilite suas vendas e lucros”.
Definição de quantidades para diferenciar usuário "facilita a vida do traficante", dizem especialistas
Os analistas ouvidos pela Gazeta do Povo também questionam a definição de uma quantidade máxima da droga portada para diferenciar o uso pessoal do tráfico.
Atualmente, na ação em julgamento no STF, é de entendimento dos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber que o porte de até 60 gramas ou de seis pés de maconha, caracterizariam uso próprio e que, acima desta quantidade, configuraria tráfico.
O coronel Cajueiro afirma que um cigarro de maconha pesa, em média, de 0,3 g a 1,2 g, o que faz com que uma liberação para 60 g de maconha implique no porte não criminalizado de 50 a 200 cigarros da erva. Se essa quantidade for autorizada, ele avalia que a consequência será a multiplicação dos pontos de comercialização por todas as cidades, ampliando a venda. Tal aumento, segundo ele, levaria a disputas locais por esses pontos com uso de armas e possíveis mortes.
Fabrício Rebelo afirma ainda que, como os usuários de drogas não são punidos com prisão no Brasil – sendo submetido apenas a medidas pedagógicas –, os traficantes já andam com pequenas quantidades, deixando as maiores escondidas, justamente para que, em caso de abordagem, se façam passar por usuários.
“Isso é um desafio enorme para o combate ao tráfico, e a possível decisão do STF tende a dificultar ainda mais as coisas. Na prática, vão estabelecer que quantidade estará liberada para o traficante ter consigo”.
Especialistas apontam impactos para a saúde
Além das consequências no âmbito da segurança pública, a descriminalização das drogas também perpassa a saúde pública. Com experiências como Secretário de Saúde do Rio Grande do Sul e ministro da Cidadania, o médico e deputado Osmar Terra (MDB-RS) entende que a estrutura da saúde pública é afetada pelo aumento do uso de entorpecentes.
Além disso, ele defende que é preciso tratamento para a dependência química, com investimentos em casas terapêuticas, em vez de deixar o dependente desassistido para decidir se quer ou não se tratar e reincidir no vício. “Tem que convencer as pessoas (a se tratar). Acha que vai acontecer de alguém na Cracolândia parar de usar droga? A cabeça dele está intoxicada até o teto pela droga, ele nem pensa”, afirma.
Terra também adverte que não há droga que seja “leve”. Ele explica que a maconha, por exemplo, causa uma doença mental específica, a psicose induzida por cannabis, que tem levado jovens à interdição, ficando incapazes de realizar qualquer atividade, prejudicando sua escolaridade e produtividade futura.
Um artigo da plataforma Medscape, especializada em temas médicos, que trata sobre a psicose induzida pela cannabis, reproduz relatos de médicos afirmando sobre como a substância pode induzir surtos psicóticos e esquizofrenia. De acordo com o artigo, o Dr. Ken Finn, médico, presidente e fundador da clínica de reabilitação Springs, avalia que, mesmo após o teste toxicológico dar negativo, o surto pode persistir por semanas ou meses e, inclusive, nunca regredir.
A respeito do uso recreativo da maconha, o doutor Ronaldo Laranjeira faz um alerta, mencionando uma pesquisa da revista norte-americana Addiction, que demonstra que, entre 2009 e 2022, o consumo de maconha cresceu 269% nos Estados Unidos, diante de uma redução em 7% no consumo de álcool.
O uso recreativo da droga começou a ser liberado em estados americanos em 2012 e esse aumento exponencial fez com que, pela primeira vez no país, o número de pessoas que consomem maconha diariamente superasse o de usuários diários de álcool. Ao todo, 18 milhões de americanos já são usuários frequentes de maconha. Laranjeiras ainda destaca que o consumo de maconha tem frequência de 15 a 16 dias por mês, superando os 5 dias de média de consumo do álcool.
De acordo com o psiquiatra, somente substâncias que geram dependência acabam criando esse tipo de padrão de consumo. “Então além do álcool, que é a droga que produz maior custo social, juntamente com o cigarro, que fica em segundo lugar, agora temos nos EUA aquilo que já vínhamos falando há muitos anos, que é o risco da maconha se tornar a terceira droga legal que vai ter esse impacto”.
O psiquiatra avalia que esses dados são importantes do ponto de vista da saúde pública, para que a sociedade brasileira decida o que quer fazer, já que tendência de aumento no consumo se verificou em diversas nações que descriminalizaram o uso das drogas, como Uruguai e Portugal, entre outras já citadas.
Ação do STF pode descriminalizar porte de maconha
Atualmente o debate sobre a descriminalização e a criminalização das drogas se dá em duas frentes, no STF e no Congresso Nacional. No Supremo, tramita uma ação iniciada em 2015, que pode descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal. A ação questiona a constitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343/ 2006, a Lei das Drogas.
De acordo com o dispositivo, é crime adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Aos usuários cabem penas alternativas, que variam entre advertências sobre os efeitos do uso de entorpecentes, a prestação de serviços à comunidade ou a participação em programa educativo.
Até o momento, a Suprema Corte contabiliza cinco votos favoráveis à descriminalização, três contrários e um entendimento que desvia das duas teses. Votaram pela descriminalização os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Os ministros Cristiano Zanin, Nunes Marques e André Mendonça votaram contra.
Na última quinta-feira (20), o ministro Dias Toffoli defendeu que a lei em vigor é “plenamente constitucional” e já descriminalizou o porte de drogas para usuários, pois fixa penas de caráter socioeducativo. Ele sugeriu um prazo de 18 meses para que o Executivo e o Legislativo formulem uma política pública de drogas, estabelecendo a quantidade que deve diferenciar o porte para uso daquele para fins de tráfico.
PEC do Congresso quer que criminalização seja constitucional
No ano passado, em resposta a esse julgamento no STF, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), iniciou a tramitação da PEC 45/23 que integra à Constituição Federal a criminalização da posse ou o porte de entorpecentes e drogas ilícitas, independentemente da quantidade.
O relator da proposta, Efraim Filho (União - PB) acrescentou ao texto a necessidade de distinguir usuário de traficante e que o poder público deve respeitar essa distinção. Além disso, também prevê a aplicação de penas alternativas para os usuários, bem como a oferta de tratamento para os dependentes químicos.
Em relação à proposta, o relator afirmou que as drogas impactam a saúde pública, ao aumentarem o consumo e a dependência química, e a segurança pública, fortalecendo o tráfico e financiando o crime organizado.
Após ser aprovada no plenário do Senado, a PEC foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), já afirmou que sua tramitação ocorrerá no segundo semestre.
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