Jogo Bicho está entre as modalidades de jogo de azar que podem ser legalizadas| Foto: TheAndrasBarta/Pixabay
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Previsto para ser votado no segundo semestre, o projeto de lei que libera os jogos de azar (PL 2.234/2022) não deve resolver os dilemas trazidos pelo Jogo do Bicho no âmbito da segurança pública brasileira. Para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, os bicheiros, donos de pontos do jogo, ainda disputarão territórios e manterão um mercado paralelo em contraposição à regulamentação do Estado.

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Caso a proposta seja aprovada pelos senadores, de acordo com o texto, caberá ao Poder Executivo regulamentar e normatizar as atividades permitidas. Nesse contexto, a lei prevê a criação de uma agência reguladora e que estabelecimentos interessados em explorar essa atividade deverão ter prévia permissão do poder público.

Mas qual é o real perigo do Jogo do Bicho? A modalidade é popularmente conhecida desde o século 19. O que iniciou como um simples jogo de apostas em animais aleatórios se transformou em uma das principais fontes de recursos do crime organizado. É considerado uma contravenção penal desde 1941, ainda no governo do ex-presidente Getúlio Vargas.

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De acordo com o Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL), o Jogo do Bicho é responsável por movimentar R$ 12 bilhões com apostas, sendo 350 mil pontos de apostas clandestinas contra 12.600 lotéricas da Caixa. A entidade é uma Organização Não Governamental (ONG) que tem por finalidade produzir estudos sobre jogos, loterias e sorteios.

O alto número de pontos onde é praticada a contravenção expõe os desafios para a segurança pública. Sendo um jogo culturalmente aceito pela população, os pontos de apostas são amplamente conhecidos e costumam ficar em locais de fácil acesso, como próximos de lotéricas ou estabelecimentos comerciais comuns.

O dinheiro obtido com as apostas é vinculado a algum negócio legal, como imóveis de aluguel ou comércios, e é misturado ao montante do negócio legítimo ao ser depositado no banco. Com isso, o dinheiro é “lavado” e se torna limpo perante o fisco. Também podem ser utilizados investimentos legítimos ou compras de alto valor.

Indagado sobre o assunto, o delegado da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) Márcio Dias avaliou que a regulamentação proposta pelo Legislativo pode não atingir o esquema que hoje circula pelo país. Para Dias, a tributação que o governo federal irá buscar nesses estabelecimentos pode estimular a continuidade do esquema paralelo.

“A regulamentação legal pode não cobrir todas as áreas ou satisfazer todos os interesses envolvidos, especialmente se houver altos impostos ou restrições que incentivem atividades ilícitas. Esses mercados paralelos muitas vezes surgem devido à busca por menores custos e à evasão de regulamentações mais rígidas”, disse o delegado.

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Além disso, existe uma disputa territorial entre os bicheiros acerca dos pontos de jogo. De forma similar às facções que controlam o tráfico de drogas, os bicheiros criam milícias de capangas e desavenças são resolvidas por meio da violência armada. É comum ainda, especialmente no Rio de Janeiro, que os mafiosos do Jogo do Bicho mantenham conexões estreitas com escolas de samba e até financiem desfiles milionários.

“A história e a natureza dessas disputas são complexas e muitas vezes profundamente enraizadas em lealdades locais, disputas de poder e redes de corrupção. Mesmo com a legalização, essas facções podem continuar a competir por territórios lucrativos e influências, especialmente se houver percepções de que a regulamentação não é aplicada de forma equitativa ou eficaz. Além disso, a existência de mercados paralelos pode perpetuar essas disputas”, disse Dias sobre a disputa entre os bicheiros.

Procurado para tratar do assunto, o antropólogo e ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) Paulo Storani, autor do livro "Vá e Vença" (Ed. Best Seller, 2018), afirmou que a legalização do Jogo do Bicho criará uma situação análoga ao que ocorre com o cigarro, que, apesar de ser legalizado, possui forte contrabando do Paraguai.

“A regulamentação só vai servir para arrecadar imposto sobre isso, pode ter certeza disso. Vamos pegar aí [o caso de] um produto legal, que tem imposto, é regularizado e tem controle da Anvisa: o cigarro", disse Storani. Ele salientou que grande parte do cigarro vendido no país é de procedência ilegal. "Isso mostra que existe uma cultura em que, mesmo uma coisa regularizada, o brasileiro aposta em buscar alternativas”, acrescentou o ex-capitão.

Relator defende legalização do Jogo do Bicho

A reportagem procurou o relator da proposta no Senado, Irajá Silvestre Filho (PSD-TO), para abordar a questão dos efeitos da legalização do Jogo do Bicho. Em resposta, o congressista argumentou que a modalidade está ligada à cultura brasileira e que a regulamentação trará pessoas sérias para atuar nesse tipo de mercado.

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“Todos os países que fizeram a legalização (dos jogos) - como Dinamarca, Noruega e Nova Zelândia - não se arrependeram da decisão. Muitos deles viram o número de turistas dobrar em 5 anos e, atualmente, o Brasil está fora desses destinos”, disse o senador.

Ele também argumentou que a previsão de faturamento com a legalização dos jogos, como um todo, será de R$ 100 bilhões em cinco anos, sendo criados aproximadamente um milhão de empregos diretos e indiretos. Além disso, 16% desse montante irá para os estados, por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE); e outros 16%, para os Municípios, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

“Nós temos aqui uma indústria adormecida, que é o turismo. Os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), todos, regulamentaram os jogos. Não pode o mundo todo estar errado e o Brasil estar certo”, opinou Irajá.

Questionado sobre a tramitação, o senador afirmou estar conversando com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para votar a matéria. No entanto, Pacheco sinalizou que existem “outras matérias a serem analisadas” pela Casa Alta do Legislativo.

Jogo do Bicho tem íntima ligação com a história do Rio de Janeiro

Criado em 1892 por João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, o Jogo do Bicho se mistura com o desenvolvimento do Rio de Janeiro no início do período republicano. Na época, o jogo buscava aumentar o número de visitantes no recém-criado jardim zoológico de Vila Isabel, na cidade do Rio de Janeiro. Ao comprar o ingresso, a pessoa recebia um bilhete com a estampa de um animal e concorria a um prêmio.

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O incentivo à emissão de moedas adotado pelo então ministro da Fazenda Rui Barbosa também é visto como um dos fatores que contribuíram para a disseminação do jogo.

Com o tempo, as apostas caíram no gosto da população e os bicheiros passaram a ocupar lugar de destaque dentro da sociedade carioca, sendo importantes patrocinadores do carnaval e de escolas de samba.

A historiadora Luciene Carris, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que o trabalho social feito por esses indivíduos em comunidades influenciou a forma como a população os enxerga.

“A figura do "bicheiro" é curiosa, pois está relacionada à ideia de um sistema paralelo de poder. Esses indivíduos ganharam um papel importante nas comunidades, oferecendo serviços sociais e patrocinando eventos como o futebol e o carnaval. O "bicheiro" ocupa uma posição ambígua na sociedade carioca, sendo respeitado e admirado por muitos. O Jogo do Bicho foi oficialmente proibido em 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, com a instituição da Lei das Contravenções Penais. No entanto, as pessoas nunca deixaram de jogar”, explicou a historiadora.

Como funciona o Jogo do Bicho

O Jogo do Bicho é baseado na ideia de sorteios de números associados a animais. Cada um dos 25 grupos do jogo é representado por um animal e composto por quatro números sequenciais. Além dos sorteios locais, realizados em cada estado por casas clandestinas, o Jogo do Bicho também se aproveita dos cinco sorteios diários da Loteria Federal, promovido pela Caixa Econômica Federal, para definir os ganhadores.

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Os bicheiros se utilizam dos quatro últimos números para compor a premiação. Cada aposta é registrada em um bilhete com o grupo e o número escolhido pelo apostador. O valor da premiação varia, podendo chegar a quatro mil vezes o valor apostado dependendo da modalidade do jogo.

Os resultados são divulgados de várias maneiras, dependendo da localidade. Tradicionalmente, os resultados são publicados em pontos de venda, informados por telefone, transmitidos por meios de comunicação locais e mais recentemente são publicados em sites especializados e redes sociais.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]