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O atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), está afastado do cargo por corrupção. O ex-governador Sérgio Cabral (MDB) foi condenado a uma pena acumulada de 293 anos de prisão em 14 processos da Lava Jato. Outros ex-ocupantes do mais alto cargo do estado – Luiz Fernando Pezão, Moreira Franco, Rosinha Garotinho e Anthony Garotinho – também são citados em investigações de desvios de recursos públicos. Na prefeitura carioca, a situação não é muito diferente. Em menos de uma semana, o ex-prefeito Eduardo Paes e o atual, Marcelo Crivella (Republicanos), foram alvos de operações anticorrupção distintas. Além disso, a Assembleia Legislativa do Rio não sai dos noticiários por causa do esquema das "rachadinhas".
A sucessão de escândalos envolvendo autoridades do alto escalão carioca e fluminense inevitavelmente levanta a questão: por que afinal o Rio de Janeiro chegou a essa situação?
Não existe uma única explicação de como o Rio chegou ao fundo do poço. Há diferentes hipóteses que se complementam. A Gazeta do Povo conversou com diferentes especialistas e autoridades públicas para tentar traçar a origem do descaso dos governantes com o dinheiro público. E alguns dos entrevistados dizem que essa história é bem antiga.
Amaralismo, chaguismo, brizolismo e o papel do eleitor do Rio
O cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, coordenador do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia (Cebrad) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz que tudo começou em 1937 com a nomeação de Amaral Peixoto como interventor federal no estado do Rio de Janeiro. Isso ocorreu dias antes da implantação da Estado Novo, período ditatorial do governo do ex-presidente Getúlio Vargas.
O período como interventor – e depois governador, entre 1951 e 1955 – possibilitou a Amaral instaurar o chamado “amaralismo”, o primeiro grupo fisiológico do estado. “Amaral Peixoto criou aqui [no Rio] um sistema estritamente clientelista de troca de favores com lideranças rurais e conservadores”, afirma Monteiro.
Engana-se, contudo, quem acha que o “amaralismo” esteja desassociado da política fluminense atual, décadas depois. Amaral Peixoto se casou com Alzira Vargas – filha de Getúlio. E teve uma filha, Celina Vargas do Amaral Peixoto, que foi casada com o ex-governador Moreira Franco (MDB). A relação familiar aproximou Moreira Franco politicamente de Amaral, e o tornou um dos mais influentes políticos do Rio.
O “amaralismo” não é, contudo, a única corrente política do Rio a praticar o clientelismo. Essa prática também marcou a gestão de Chagas Freitas, ex-governador do extinto estado da Guanabara (território correspondente à atual capital) e posteriormente do estado do Rio. Chagas Freitas comandou a política fluminense entre 1971 e 1983.
A corrente do “chaguismo” teve como características o clientelismo e assistencialismo de uma administração que criou raízes fisiológicas vivas até hoje, pela cooptação de forças políticas por meio da máquina pública. Os políticos dessa corrente construíram uma relação pessoal direta com o eleitorado e com o empresariado.
O “chaguismo” também se perpetuou nas relações entre o Executivo estadual e a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Os “chaguistas” dominaram não apenas o MDB (posteriormente PMDB e hoje novamente MDB). Mas também a forma de se fazer política.
E isso fica demonstrado pelo amplo domínio do partido nas últimas décadas no estado. Só para lembrar de casos mais recentes: o ex-governador Sérgio Cabral e Jorge Picciani (condenado e em prisão domiciliar), ambos do MDB, foram presidentes da Alerj. Mas, na prática, o Legislativo fluminense acabou sendo estruturado por uma rede fisiológica que independe do partido de quem está no comando.
Corrente política que surgiu no Rio com o esgarçamento da ditadura militar (1964-1985), o "brizolismo" acabou cooptando e sendo cooptado pelo "chaguismo".
Eleito governador fluminense em 1982, o gaúcho Leonel Brizola (PDT) montou seu governo com quadros vindos do exílio, como ele. Mas Brizola se aliou à base chaguista na Alerj para governar. Dessa aliança, surgiram nomes como os inicialmente “brizolistas” Marcello Alencar (ex-governador), Cesar Maia (ex-prefeito do Rio), e Anthony Gorotinho (ex-governador).
A política clientelista e assistencialista que se perpetuou no Rio nos anos 1980 e início dos 1990, com Brizola e Moreira Franco. O cientista político e sociólogo Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que essa política foi temporariamente desidratada nos quatro anos do mandato do tucano Marcello Alencar, entre 1994 e 1998.
O problema é que o “chaguismo” continuou a se renovar no Legislativo tendo Cabral como expoente, e voltou ao Executivo na gestão seguinte, com Garotinho.
Talvez para se eximir das escolhas políticas feitas ao longo dos anos, os cariocas carregam o mantra de que o Rio não tem “classe política” para ser votada nas eleições. A voz corrente, diz Baía, é de que os governadores eleitos de 1998 até o presente foram uma fatalidade, não uma escolha.
Mas ele discorda de quem pensa assim. “Em 1998, Luiz Paulo Corrêa da Rocha e Lúcia Souto apresentaram seus nomes para escrutínio da população, foram rejeitados. Garotinho venceu”, exemplifica. Para ele, não foi por ausência de nomes e alternativas – com exceção de 2014 – que poderiam ter aberto possibilidades políticas diferentes para o estado. “Foi por escolhas livres e conscientes da maioria da população que chegamos até o dia de hoje”, afirma Baía.
Tráfico e milícias: o outro lado da corrupção no Rio
A história do fisiologismo e como ele influencia decisivamente na política do Rio são parte da explicação. Mas o crime organizado, o tráfico e as milícias compõem outro lado da história da corrupção no estado.
“A teia do crime é muito maior do que se imagina e vai envolvendo pessoas da administração pública”, diz Miro Teixeira, ex-deputado federal (Rede-RJ) e ex-ministro das Comunicações.
Quando o estado apertou de vez o cerco contra o popular jogo do bicho e impediu os “bicheiros” de terem pontos de apostas nas ruas, alguns deles migraram para os esquadrões da morte – que também eram compostos por policiais e tinham o objetivo de "eliminar" criminosos.
Também não houve vácuo de ilicitude nos antigos pontos de venda do jogo do bicho: os traficantes de drogas começaram a ocupar esse espaço. Em 1980, quando a cocaína chegou ao Brasil, os traficantes tomaram o controle dos pontos.
Logo o dinheiro do tráfico começou a financiar setores estratégicos ligados à administração pública – como transporte e merenda escolar. E chegou às eleições municipais.
“Os empresários do tráfico começaram a dominar esses setores e, quando não elegeram ou ajudaram a eleger prefeitos, faziam indicação de prefeitos e procuradores. Com isso, ganhavam as concorrências com parecer favorável do procurador”, diz Miro Teixeira.
Pouco a pouco, o tráfico ampliou suas teias do crime e cresceu e dentro da máquina administrativa – “que é muito mais lucrativa e menos arriscada do que o roubo de carga”, diz Teixeira.
Uma "reação" ao tráfico também está na explicação para a corrupção no Rio. Setores da polícia fluminense, que já estavam ligados aos esquadrões da morte, "inventaram" outra novidade para combater os traficantes: as milícias. Constituídas por policiais e ex-policiais, elas surgiram com o discurso de que iam afastar os traficantes das comunidades que eles dominavam e que iriam protegê-las do crime.
Mas não tardou para um tipo de crime ser substituído por outro: os milicianos passaram a cobrar pela "proteção" e por serviços prestados e bens nessas comunidades – do fornecimento de gás, internet e TV a cabo à venda apartamentos de prédios construídos clandestinamente. “Os milicianos são o poder público [agentes do Estado] agindo em benefício próprio”, diz Paulo Baía, professor da UFRJ.
O negócio das milícias se tornou lucrativo. E, assim como ocorreu com o tráfico, os milicianos passaram a financiar candidatos e a se eleger. E também a influenciar licitações.
O papel dos grandes eventos esportivos
Uma terceira explicação para a corrupção desenfreada no Rio, especialmente a dos tempos mais recentes, tem a ver com os grandes investimentos feitos para a capital fluminense receber eventos esportivos internacionais: os Jogos Pan-Americanos de 2007, a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.
Muito dinheiro entrou no caixa do estado para construir praças esportivas. E, no Brasil, não é incomum que grandes obras tenham grandes desvios.
A atração de grandes eventos esportivos para o Rio foi uma obsessão do ex-governador Sérgio Cabral. Ele conseguiu colocar a cidade no centro da atenção mundial. “E institucionalizou a corrupção em todos os contratos da administração, desde a quentinha do sistema penitenciário até a reforma do Maracanã. E essa questão da violência do dia a dia tem a ver com essas questões”, diz uma procuradora do Ministério Público Federal (MPF) que pediu para não ter o nome revelado.
E, afinal, o Rio tem solução?
A política do Rio de Janeiro está no fundo do poço. Mas uma solução, embora difícil, não é impossível. O diretor-executivo da Transparência Internacional Brasil, Bruno Brandão, afirma que um quadro de corrupção sistêmica a exemplo do Rio demanda reformas legais, institucionais e a consolidação de um amplo consenso social sobre o valor da integridade pública. “Acabar com a impunidade é muito importante, mas não é suficiente. A solução precisa ir além do aspecto penal”, diz.
Brandão lembra que, nos anos 1990, o Espírito Santo sofria com a corrupção entranhada em todas as instituições e em associação com o crime organizado – situação muito similar à do Rio.
“O estado [Espírito Santo] chegou a sofrer intervenção federal após o assassinato de um juiz. Autoridades públicas decidiram, então, se unir a entidades da sociedade civil e do setor privado para promover mudanças. O progresso que alcançaram é impressionante. Não estão livres da corrupção sistêmica, mas aquela situação gravíssima foi superada”, diz o diretor da Transparência Internacional.
Procurador de Justiça em São Paulo, Roberto Livianu defende o fortalecimento de todo o sistema de controle e das instituições que atuam dentro desse universo para combater a corrupção sistêmica no Rio.
Presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), Livianu afirma que o caminho para reverter isso passa por Brasília, pela aprovação do pacote de 70 medidas de combate à corrupção, que se encontra parado na Câmara dos Deputados. “É óbvio que não podemos dizer que o Rio está condenado perpetuamente à corrupção, mas precisamos melhorar todo o conjunto de elementos para evitar situações e brechas existentes. Precisamos aprovar o pacote e todas suas medidas, como prisão após condenação em segunda instância e a punição ao caixa 2’ eleitoral.”
O professor Geraldo Tadeu, da UERJ, defende a criação de um conselho estadual de integridade, transparência e compliance para o Rio. “Esse conselho seria nomeado e escolhido, instituído por lei e composto pela sociedade civil organizada, pelo governo do estado e pelos poderes Judiciário e Legislativo”, diz.
Ele também diz que o estado precisa de decisões de Brasília. A reforma política é outra proposta levantada por Tadeu. “A Alerj tem 30 partidos representados. A grande fragmentação, associada à defesa dos interesses locais e corporativos, estimula o ‘toma-lá-dá-cá’. Hoje, para fazer uma maioria, é preciso prometer muitos cargos, muitas verbas e todo tipo de espaço aberto em um conjunto de interesses paroquiais, clientelistas e patrimonialistas”, diz.
Já o ex-deputado Miro Teixeira acredita que falta ao Rio uma palavra: confiança. “É o povo eleger um governador que faça por merecer a confiança do povo. Que a tenha e a mereça. Porque, consertando em cima, na cúpula, você vai consertando para baixo”, afirma o ex-parlamentar. Para ele, não é uma reformulação que demandaria muito tempo. “É coisa ligeira. Isso aí é um conceito de estrutura. Quando está dentro de uma estrutura montada, se não a desfizer rapidamente, ela acaba absorvendo você.”