Um dos elementos principais da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 33 pessoas acusadas de tentativa de golpe é a suposta ligação de todos eles com a invasão e depredação dos edifícios do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso e do Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023.
A suposta vinculação do grupo com os manifestantes foi reforçada para sustentar a acusação, uma vez que a condenação pelos crimes de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito exige que a tentativa de deposição do governo e de impedir ou restringir a atuação dos poderes se dê com “violência ou grave ameaça”.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, escreveu que, apesar de não terem participado diretamente do ataque às sedes dos três Poderes, Bolsonaro e os outros denunciados prestaram “auxílio moral e material” para os atos do 8/1. Por essa razão, deveriam, para a PGR, também ser condenados por dano e deterioração do patrimônio público e tombado da União.
A tese é de que, desde 2021, Bolsonaro e seu entorno instigaram os manifestantes disseminando a desconfiança sobre as urnas eletrônicas, o que motivou os acampamentos em frente às instalações militares para reivindicar uma revisão da eleição presidencial de 2022. O 8/1 teria sido, na visão da PGR, a tentativa final de consumar o golpe, com o objetivo de pressionar as Forças Armadas a intervirem e tomarem o poder para recolocar Bolsonaro na Presidência.
“As ações progressivas e coordenadas da organização criminosa culminaram no dia 8 de janeiro de 2023, ato final voltado à deposição do governo eleito e à abolição das estruturas democráticas. Os denunciados programaram essa ação social violenta com o objetivo de forçar a intervenção das Forças Armadas e justificar um Estado de Exceção”, diz Gonet na denúncia.
“Todos os denunciados, em unidade de desígnios e divisão de tarefas, contribuíram de maneira significativa para o projeto violento de poder da organização criminosa, especialmente para a manutenção do cenário de instabilidade social que culminou nos eventos nocivos. A organização criminosa, por meio de seus integrantes, direcionou os movimentos populares e interferiu nos procedimentos de segurança necessários, razão pela qual responde pelos danos causados”, escreveu ainda o procurador-geral na acusação.
Nas respostas à denúncia apresentadas pelas defesas dos principais acusados, os advogados rechaçam qualquer vinculação deles com o protesto violento. Além disso, alguns argumentam que o ato nunca poderia resultar num golpe de Estado. Para Bolsonaro e outros denunciados, desfazer a ideia de golpe no 8 de janeiro é fundamental para esvaziar a denúncia.
Daí o interesse em aprovar, no Congresso, a anistia para os manifestantes condenados pelo STF, uma vez que essa tese foi construída nesses julgamentos, iniciados em 2023.
Veja abaixo o que disseram os principais denunciados sobre o episódio.
Bolsonaro reconheceu derrota em live e colaborou com transição, diz defesa
Na resposta à denúncia, os advogados de Bolsonaro dizem, em primeiro lugar, que não há nenhuma prova de que ele tenha ordenado qualquer ato violento no 8/1 ou mesmo orientado os manifestantes que estavam acampados no Quartel-General do Exército.
“Os eventos do dia 8 de janeiro são produto da vontade própria de pessoas que devem responder por seus atos, mas não são (jamais foram) atos direcionados, ordenados ou planejados pelo Peticionário [Bolsonaro]”, dizem os advogados no documento.
Argumentam ainda que seus discursos políticos não podem ser interpretados como motivadores para os manifestantes. “O vácuo probatório faz com que a denúncia busque criminalizar a atividade política do peticionário em geral, suas opiniões, e a forma como ele se relaciona com sua base eleitoral. Coisa bem diversa seria demonstrar que ele determinou a elaboração e a execução de crimes.”
A defesa também destaca fatos omitidos na denúncia que comprovariam que Bolsonaro não incentivou as manifestações. Um deles é a live que realizou em 30 de dezembro de 2022, pouco antes de deixar o Brasil rumo aos EUA, em que reconheceu a derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), conclamando seus aliados e apoiadores a fazer oposição ao novo governo sem recorrer a ações violentas ou medidas de ruptura.
“Sei que tem muita gente que me critica quando eu falo quatro linhas, mas eu não saí ao longo [do meu] mandato das quatro linhas porque ou vivemos a democracia ou não vivemos. Ninguém quer uma aventura. Agora muitas vezes dentro até das quatro linhas você tem que ter apoio. Alguns acham que é o pega BIC e assine, faça isso, faça aquilo, está tudo resolvido, e repito, em nenhum momento fui procurado para fazer nada de errado, violentando seja o que for”, disse Bolsonaro na transmissão ao vivo.
Ele ainda disse que manifestações devem seguir a lei. “Nós não queremos o confronto, nem estimular ninguém a partir para o confronto. E a pior maneira é você tentar resolver o assunto, creio, é no tiro. Creio no patriotismo de vocês, na guarra, na inteligência de vocês. Sei o que vocês passaram ao longo desses dois meses de protestos, sol, chuva.”
Depois, Bolsonaro falou em fazer oposição ao novo governo, o que contraria a ideia de que buscava manter a mobilização popular para um golpe. Não vamos achar que o mundo vai acabar em 1º de janeiro. Vamos pro tudo ou nada? Não! Não tem tudo ou nada. Inteligência, mostrar que somos diferentes do outro lado, que nós respeitamos as normas, as leis, a Constituição [...] o Brasil não vai se acabar no dia 1º de janeiro.”
No final, em tom de despedida, Bolsonaro agradeceu pelo apoio durante seu mandato. “Muito obrigado a todos vocês. Um abraço a todos, com muita luta, mas um bom 2023 a todos. Deus abençoe o nosso Brasil. Vamos em frente.”
Outro indicativo, anterior, de que não preparava um golpe foi a transição militar para o novo governo. A defesa citou recente entrevista do atual ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, em que relatou ter procurado Bolsonaro em dezembro de 2022 para obter ajuda para se apresentar aos comandantes das Forças Armadas.
“Segundo o Ministro da Defesa, o peticionário imediatamente telefonou aos 3 comandantes das Forças Armadas, e contribuiu para uma transição tranquila. O Ministro registra que foi recebido pelos comandantes, e que inclusive abriu-se espaço para que o Comando do Exército, principal força militar brasileira, fosse transmitido antes da posse do Presidente Lula. Não é possível ignorar que a transmissão do poderio militar é ato drasticamente contrário a um golpe violento contra o Estado de Direito”, dizem os advogados.
É impossível que 8 de janeiro levasse a um golpe, diz defesa de Paulo Sérgio Nogueira
Além de mostrar que não há na denúncia qualquer prova de envolvimento do ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira no 8 de janeiro, os advogados dele também argumentam que o ato nunca poderia resultar num golpe de Estado. Isso porque não havia apoio das Forças Armadas.
A própria denúncia, dizem os representantes legais do ex-ministro da Defesa, afirma que o plano do golpe não avançou por falta de apoio do Exército e da Aeronáutica. “Sem o apoio das Forças Armadas, as manifestações do dia 8 de janeiro eram um meio absolutamente ineficaz para depor um governo constituído”, dizem os advogados na resposta à denúncia.
Eles também argumentam que, para o crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, é necessária uma ação que impeça ou restrinja o exercício dos poderes. O 8 de janeiro, concluem os advogados, não afetou em nada a atuação do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, e também por isso não está configurado o crime.
“Pelo contrário, atuaram ampla e firmemente na apuração dos fatos e a prisão de milhares de manifestantes. Reitere-se o exercício dos poderes constitucionais não foi impedido ou restringido.”
A defesa de Nogueira ainda cita trecho do depoimento de Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro cuja delação foi a base da investigação, segundo a qual o 8 de janeiro foi uma surpresa para os integrantes do governo Bolsonaro – essa parte foi omitida na denúncia. “O dia 8 foi uma surpresa para todo mundo”, disse Mauro Cid.
No final, a defesa citou uma mensagem enviada pelo ex-ministro da Defesa a Mauro Cid no dia seguinte ao ato, 9 de janeiro de 2023, com o seguinte teor: “Boa noite amigo! Sumiu, não deu mais notícias! Onde estás? Quais as novidades? Mando mensagem pro PR, mas ele não fala nada, apenas encaminha o de sempre. Chega a ser ingrato, mas tudo bem....”
“Constata-se que em janeiro de 2023 o General Paulo Sérgio estava distante dos demais denunciados e, inclusive, sentindo-se apartado”, diz a defesa.
Anderson Torres estava de férias, mas tentou proteger o STF no 8 de janeiro, diz defesa
A defesa de Anderson Torres, então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, rechaçou a acusação de que teria sido omisso em 8 de janeiro de 2023.
Delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, ele iniciou o período de descanso em 7 de janeiro. Os advogados apresentaram comprovantes de que as férias haviam sido marcadas em julho de 2022 e remarcadas em dezembro.
Os advogados também comprovaram que em novembro ele comprou passagens para os EUA, para onde viajou com a família para um passeio na Disney, um sonho das filhas.
A defesa ainda destacou que, como secretário de Segurança Pública do DF, Torres assinou um Plano de Ações Integradas (PAI) que obrigava a polícia a impedir a presença de manifestantes na praça dos Três Poderes, o que acabou sendo descumprido pela PM de Brasília.
Outra prova de que ele não se omitiu foram trocas de mensagens com o secretário-executivo da pasta, Fernando de Souza Oliveira, pouco após a invasão do Congresso e do Palácio do Planalto. “Não deixe chegar no Supremo”, escreveu Torres ao substituto.
“Não faria sentido que Anderson Torres, por omissão dolosa, tenha incentivado a abolição violenta do Estado Democrático de Direito ou mesmo a propagação de um golpe de estado, mas, a contrario sensu, tenha buscado preservar a integridade do STF”, dizem os advogados.
Na noite de 7 de janeiro, em mensagem enviada a Anderson Torres, Fernando Oliveira relatou a ele que estava em contato com o governador, Ibaneis Rocha, e que estava “tudo controlado”. “Embora Anderson Torres não estivesse presencialmente em Brasília, ele se preocupou em manter o chefe do Executivo Distrital atualizado, de maneira que pudessem ser adotadas todas as medidas adequadas para a manutenção da segurança pública”, dizem os advogados.
Mauro Cid avisou a militar que não iria "rolar nada"
A defesa de Mauro Cid afirmou que ele “não tinha a menor consciência” do 8 de janeiro, “e muito menos dele participou”. Ressaltou que, assim como Bolsonaro, ele também já estava no exterior com a família. Para comprovar, anexou mensagens com outro militar, Sérgio Cavaliere, que questionava o ex-ajudante sobre alguma medida por parte do ex-presidente.
“Não vai rolar nada”, respondeu Cid numa das mensagens, acrescentando em outra que Bolsonaro não assinaria decreto para intervir no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e revisar o resultado das eleições.
A defesa ainda argumentou que, após a posse de Lula, qualquer suposta tentativa de golpe tinha ainda menos chance de prosperar. “Se um pretenso golpe não funcionou quando o Presidente da República Jair Bolsonaro ainda era o comandante maior do Exército, com muito menos razão, evidente, daria certo após a posse do Presidente da República eleito, Luis Inácio Lula da Silva, que ocorreu no dia 1º de janeiro de 2023.”
Defesa nega contato de Braga Netto com acampados no QG do Exército
A defesa do ex-ministro da Casa Civil Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro, disse ser “absolutamente insuficiente e frágil” a afirmação de Mauro Cid de que ele mantinha contato com os manifestantes acampados em frente ao QG do Exército.
“A denúncia não apresenta qualquer outra prova concreta que ligue o Requerente aos líderes do movimento. Não há conversas de WhatsApp, fotos, vídeos, nada que relacione o Gen. Braga Netto aos manifestantes e seus atos antidemocráticos de 08.01.2023”, dizem os advogados.
Na resposta, a defesa ainda diz que “a imputação desses crimes ao requerente evidencia mais um elemento ficcional na narrativa da PGR, na tentativa de vinculá-lo a esse lamentável episódio da história do Brasil, o que não corresponde à realidade.”
Augusto Heleno se preocupava com a saúde mental de Bolsonaro, diz defesa
A defesa do general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, citou declaração de Mauro Cid de que nunca havia visto “ação operacional ou de planejamento” dele em relação a um golpe. Na delação, o ex-ajudante de ordens disse que o general se preocupava com a saúde mental de Bolsonaro.
“A mesma coisa do general Heleno, né? O general Heleno passou a ir esporadicamente no Alvorada. A maior preocupação do General Heleno era com a saúde mental do presidente, né, tanto que várias vezes ele pediu pra eu dormir no Alvorada quando ele via que o presidente tava mal. Mas... E o general Heleno, ele tinha aquele jeito dele, mas acho que, até pela idade, ele falava um monte de coisa, como tem nos vídeos aí das coisas - argh, argh, argh! - e ia embora. Então, eu nunca vi uma ação operacional ou de planejamento do general Heleno.”
“Há completa falta de elementos mínimos a apontar qualquer tipo de envolvimento direto ou indireto do denunciado. Não há uma testemunha que aponte seu envolvimento, não há uma conversa de whatsapp sua para qualquer pessoa que o seja tratando da empreitada criminosa aqui denunciada, não há acervo probatório mínimo a sustentar as acusações”, disse a defesa do general.
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