Itamaraty e militares das Forças Armadas estão convencidos de que o Brasil pode tirar proveito de sua atual postura sobre a guerra na Ucrânia. A posição de equilíbrio, como define o chanceler brasileiro, ministro Carlos Alberto França, ou de neutralidade, como dizem alguns militares e o presidente Jair Bolsonaro (PL), pode render vantagens diplomáticas ao país, não apenas ao governo. Dentre os ganho que o país pode vir a ter, estariam a garantia da entrada na OCDE (o "clube" das nações desenvolvidas) e de uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Por esse motivo, a maior probabilidade é de que o Itamaraty mantenha seu atual ponto de vista, de pontualmente condenar a invasão russa em fóruns internacionais, mas sem exceder ao ponto de pedir sanções. Diplomatas e militares afirmaram à Gazeta do Povo que a posição atual segue a tradição histórica da diplomacia brasileira e pontuam que não é vantajoso para o Brasil tomar um lado neste momento.
Isso não significa, contudo, que o Brasil permanecerá inflexível em sua conduta. Em algum momento oportuno, diplomatas e militares admitem que é possível o país adotar um posicionamento mais alinhado ao Ocidente para condenar a Rússia de uma forma mais contundente. Para chegar a esse ponto, no entanto, o país vai manter sua estratégia momentânea e aguardar acenos de outros países para negociar um reposicionamento.
Integrantes do Itamaraty e das Forças Armadas admitem que uma "barganha diplomática" em meio à atual guerra não seria uma novidade na história da política externa brasileira e que pode vir a ser conduzida de uma forma estratégica a fim de assegurar apoios para pleitos internacionais antigos, a exemplo de assentos permanentes em importantes fóruns internacionais, como na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) – onde é um membro rotativo e, portanto, sem poder de veto.
Como a posição do Brasil sobre a guerra abre brecha para barganhar
O voto favorável do Brasil na Assembleia Geral da ONU desta quarta-feira (2) à resolução que condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia é visto nos bastidores como um sinal de que o país não fechou as portas para uma possível mudança de rumos de sua postura em relação a Moscou.
Militares e diplomatas afirmam que, ao adotar essa postura nos fóruns internacionais – de condenar a invasão sem defender sanções – o governo afirma seu equilíbrio em face ao confronto bélico e demonstra ao Ocidente que não tem uma postura pró-Rússia.
Os votos na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança da ONU – na semana passada o Brasil votou favorável a uma resolução que também condenava a agressão à Ucrânia, mas que acabou sendo vetada pela Rússia – agradaram, por exemplo, a própria Ucrânia.
O encarregado de negócios da Ucrânia no Brasil, Anatoliy Tkach, disse que os votos brasileiros pela condenação aos ataques russos sugerem apoio aos ucranianos. "Até o momento, o Brasil votou no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral a favor [da condenação russa]. Ou seja, ele está fazendo o que a comunidade internacional inteira espera do Brasil", disse. Para ele, as atitudes demonstraram que o país "já demonstra que o Brasil está apoiando a solução dessa guerra".
Já na quinta-feira (3), Bolsonaro e o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, conversaram por telefone. Os dois concordaram sobre a necessidade de um "cessar-fogo urgente" na Ucrânia, segundo informou o governo britânico. Ambos destacaram que "a paz deve prevalecer", conforme descreveu um porta-voz do escritório oficial de Johnson após a conversa.
O posicionamento da diplomacia brasileira sugere para as fontes ouvidas pela reportagem não apenas o posicionamento de equilíbrio do país, mas também a abertura para negociações com o Ocidente. "Desde a viagem do presidente [Bolsonaro] a Moscou, há sinalizações subliminares aos Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia de que o Brasil não apoia a Rússia de maneira irrestrita", diz uma fonte militar.
Da mesma forma que o governo faz acenos ao Ocidente, o Itamaraty também não abandona totalmente os gestos à Rússia. Tanto que diplomatas não descartam um posicionamento contrário ao pleito norte-americano de expulsar os russos do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Em uma reunião desse mesmo organismo internacional na terça-feira (1.º), o Brasil evitou um boicote generalizado contra o chanceler russo, Sergei Lavrov, e permaneceu na conferência.
Além de um importante parceiro comercial, sobretudo no agronegócio, a Rússia defendeu antes do início da guerra o ingresso do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, durante a visita da comitiva brasileira ao país.
Pragmatismo x moralismo: posição sobre a guerra divide o governo
A ausência de uma posição mais contundente do Brasil após mais de uma semana da guerra na Ucrânia divide o governo e aliados da base ideológica do governo. Um dos expoentes dessa ala, o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, chegou a dizer que Bolsonaro reproduz desinformação e tem preferência pela Rússia.
Para o ex-chanceler do governo, a posição "correta" brasileira, "compatível com os nossos valores morais" e com os "interesses materiais", seria um apoio à Ucrânia, alinhado às "grandes democracias ocidentais". "Mas entendo que o presidente delibere por uma neutralidade. No entanto, os sinais que ele está passando, os atos que ele está tomando ou autorizando que sejam tomados, sinalizam uma preferência pela Rússia. Vários elementos nos levam a essa convicção", afirmou Araújo na segunda-feira (28).
Diplomatas do Itamaraty rechaçam que exista uma "preferência" pela Rússia e defendem o pragmatismo brasileiro. Militares também afirmaram à Gazeta do Povo apoiar a postura diplomática brasileira e disseram entender que ela é correta e coerente com a tradição da diplomacia brasileira. Alguns, naturalmente, pensam que uma posição pró-Ucrânia seja o adequado a essa altura, mas a maioria ainda defende o posicionamento atual.
O especialista em relações internacionais Ricardo Mendes, diretor da Prospectiva Consultoria, entende o dilema moral que cerca a diplomacia brasileira, reconhece a sensibilidade do tema e afirma que esse assunto é uma preocupação da diplomacia brasileira dentro do multilateralismo. Ele pondera, contudo, que, tradicionalmente, interesses do Estado brasileiro costumam se sobressair.
"O Brasil é mais inclinado para o Ocidente, os valores são mais parecidos. Mas é difícil sair de cara 'comprando' essa posição ocidental, por mais que a gente goste individualmente e moralmente, não dá para chancelar tudo. Há um 'xadrez' grande no qual os negociadores brasileiros sempre pensam muito com esse tipo de visão [pragmática] e, no âmbito diplomático e militar, a posição do Brasil reflete isso", avalia Mendes.
Antes da viagem de Bolsonaro à Rússia, ele havia feito uma análise à Gazeta do Povo de que o Itamaraty poderia tirar proveito e negociar tanto com Rússia e os EUA, por exemplo, o apoio por uma reforma do Conselho de Segurança da ONU. Agora, mesmo na guerra, Mendes mantém seu posicionamento. "Acho que eles tentam separar ou maximizar os ganhos dentro de um contexto assim. Em questão de interesses de Estado, o Brasil não ganha muito se aliando incondicionalmente a um lado", diz.
A postura brasileira nas Nações Unidas é, inclusive, vista por Mendes como um sinal das pretensões brasileiras de estar aberto a negociar. "Eu até acho que o Brasil me surpreendeu em seu voto na Assembleia Geral quando votou a favor da moção que colocaram contra a Rússia, porque o Brasil está no Brics [grupo de países que também inclui Rússia, Índia, China e África do Sul]. Existe um certo mecanismo de conversa entre eles [os países dos Brics], que conta até com um banco de desenvolvimento comum", afirma Mendes.
Dos países que integram o Brics, o Brasil foi o único país que votou a favor da resolução contra a Rússia. Os russos votaram contra. E Índia, África do Sul – que também defendem uma reforma do Conselho de Segurança da ONU – e a China se abstiveram na votação.
Brasil foi pragmático até na II Guerra Mundial
A postura pragmática da diplomacia brasileira é histórica. Mesmo em tempos de guerra, já foi usada para barganhar. O pragmatismo prevaleceu até em uma situação moralmente mais sensível e delicada, na II Guerra Mundial – que provocou a morte de cerca de 55 milhões de pessoas, segundo a maioria dos historiadores (alguns até falam em 80 milhões de mortes).
"Durante a II Guerra, o Brasil teve que se posicionar se ia ficar ao lado dos Aliados ou do Eixo [que incluía a Alemanha nazista, a Itália e o Japão]. E Brasil ficou, em um primeiro momento, em cima do muro. Esperou a guerra acontecer e, em determinado momento, foi pressionado e teve que se posicionar. O Brasil se posicionou em um momento que conseguiu apoio [dos EUA] para montar a CSN [Companhia Siderúrgica Nacional]", lembra um oficial militar.
A II Guerra Mundial transcorreu de 1939 a 1945. À época, sob a ditadura de Getúlio Vargas. Algumas alas do governo brasileiro tinham simpatia pela aliança nazifascista do Eixo. "O Brasil quase se alinhou à Alemanha, mas os Estados Unidos entraram mais 'pesado' e ofereceram apoio à CSN em contrapartida; e isso viabilizou toda a indústria automotiva brasileira por muitas décadas", diz o analista político Ricardo Mendes, da Prospectiva.
O Brasil declarou guerra à Alemanha em 1942, após ter seus navios mercantes torpedeados por frotas alemãs. Contudo, historiadores apontam que o flerte entre o governo Vargas e o então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, já transcorria à época. Os EUA acenaram com maior colaboração econômica e acenaram com o apoio para reequipar as Forças Armadas e recursos para a construção da CSN, em Volta Redonda (RJ).
Os termos da aliança entre Brasil e EUA foram firmados na Conferência de Natal (RN), realizada em 1943, que deu origem à Força Expedicionária Brasileira (FEB) e assegurou os recursos para a construção da CSN, destaca o especialista em relações internacionais Thales Castro, coordenador do curso de ciência política da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). "E, em 1944, liderados por Mascarenhas de Morais, os pracinhas foram combater no teatro de operações da Itália de maneira brilhante e vitoriosa", destaca.
Um ano depois, em 1945, o Brasil foi um dos membros fundadores da ONU e um dos primeiros a aderir à organização. Dois anos depois, Oswaldo Aranha, ex-ministro da Justiça, da Fazenda e das Relações Exteriores nas gestões Vargas, presidiu a primeira e a segunda sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Desde então, o chefe de Estado brasileiro sempre inaugura as assembleias gerais, em reconhecimento à diplomacia conduzida por Aranha, que foi o chanceler brasileiro durante a II Guerra Mundial.
Ao longo dos anos e décadas seguintes, o pragmatismo brasileiro também foi posto à prova e rendeu outras oportunidades ao Brasil, destaca Castro. "Em 1956, na Crise de Suez [conflito em que Israel declarou guerra ao Egito com o apoio de França e Reino Unido], o Brasil enviou um pelotão para fazer parte da primeira operação de paz. Naquele momento, o Brasil nem ficou tão neutro, mas se capitalizou muito em termos de postura estratégico-militar e favorecimento do sistema da ONU. Ali, o que o Brasil recebeu em troca não foi uma siderúrgica, mas conseguiu visibilidade para que pudesse participar de uma série de vezes como membro [rotativo] do Conselho de Segurança", diz.
Outro exemplo destacado por Castro foi a posição brasileira ao final da guerra entre Irã e Iraque, que durou entre 1980 e 1988. "Naquele momento final, o presidente do Conselho de Segurança da ONU era o embaixador Paulo Nogueira Batista, que conduziu uma das mais importantes sessões, que foi o processo de apaziguamento [da guerra Irã-Iraque]. Ali, mais uma vez, o Brasil foi colocado em patamar de grande relevo e segurança no campo da defesa dos interesses coletivos", destaca.
Em 2014, sob a negociação do apoio russo à entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil absteve-se na votação da Assembleia Geral das Nações Unidas que declarou ilegal o referendo sobre a anexação da Crimeia à Rússia. Mais recentemente, em 2019, sob críticas inclusive de ex-embaixadores brasileiros, Bolsonaro negociou a entrada do Brasil como aliado extra-Otan junto ao ex-presidente norte-americano Donald Trump. No mesmo ano, viajou à China onde firmou acordos com o presidente chinês, Xi Jinping.
Quais as chances de o pragmatismo assegurar os pleitos do Brasil
No curto prazo, é improvável que quaisquer negociações que o Brasil conduza nos bastidores da política externa tenham efeitos práticos em face do atual momento de guerra na Ucrânia. Mas no médio e longo prazo, o cientista político acredita que o Brasil possa tirar proveito de seu atual posicionamento em relação à Rússia.
"A postura do Brasil é correta. O que acontece é que há muito envenenamento e pirotecnia midiática sobre os aspectos mais amplos acerca dos votos e do posicionamento do Brasil, que não está endossando a posição russa. Porém, qualquer efeito prático do que for negociado agora fica para o médio e o longo prazo", diz ele. "O Brasil tem muito o que barganhar e como otimizar os 'payouts', que, às vezes, não é nada material e concreto no curto prazo, mas ganhamos novas oportunidades, alianças e prestígio", complementa.
No curto prazo, o que o Brasil pode barganhar é uma "passagem" para que possa fazer um processo mais fluido de ingresso na OCDE, principalmente após ter recebido o convite para ingressar ao "clube dos países ricos", analisa Castro. Além disso, ele também acredita que o país possa pavimentar um caminho de retorno a uma melhora das relações bilaterais com os Estados Unidos e o presidente Joe Biden.
"Os Estados Unidos observaram com muito interesse a visita do Bolsonaro à Rússia e até criticaram. Mas, quando vemos o posicionamento do embaixador Ronaldo Costa Filho e o voto brasileiro na ONU, notamos que o Brasil é mais compromissado com o longo prazo; é um país de confiança. A melhora do relacionamento com os EUA é uma vertente que deve acontecer mais à frente", diz.
Mas só no médio e longo prazo, reforça Castro, que o Brasil pode vir a conquistar um assento na OCDE e no Conselho de Segurança da ONU. "É preciso entrar na agenda a reforma do conselho. Como não está, o tema não vincula. Mas eu acho que o Brasil pode capitanear isso através de nomeações de brasileiros que possam compor os quadros multilaterais. São jogadas que a gente ainda não está sabendo porque ocorrem muito nos bastidores, mas a diplomacia brasileira é hábil neste jogo multinível. São múltiplos tabuleiros de xadrez sendo jogados na política externa ao mesmo tempo", afirma.
O professor da Unicap, que é autor de um livro sobre o Conselho de Segurança da ONU, entende que o Itamaraty vai tentar barganhar em algum momento com o Ocidente um apoio mais firme sobre a reforma do organismo internacional, bem como a entrada do Brasil na OCDE. Ele entende que a própria Rússia já deu motivos para o país estrategicamente se reposicionar quando entender ser mais oportuno.
"O Brasil já tem uma tradição pró-Ocidente. Não seria difícil, surrealista e eticamente injustificável seguir esse caminho, sobretudo após o Putin colocar os arsenais nucleares em alerta. Ali, ele extrapolou uma medida do razoável. Claro que a intervenção militar na Ucrânia já seria por si só contrária aos ideiais brasileiros. Mas o Brasil vai, agora, ver as opções, qual é o quadro normativo. Mostrou ao Ocidente que tem altivez e autonomia e, naturalmente, é uma 'noiva' cortejada no cenário internacional", diz Castro.
Já o analista político Alexis Risden, especialista em segurança e defesa nacional da BMJ Consultores Associados, entende que a viabilidade prática de o Brasil assegurar os pleitos defendidos é "quase nula", principalmente em relação ao Conselho de Segurança da ONU. Para ele, o sucateamento e o pouco investimento aplicado nas Forças Armadas é um cenário que compromete a negociação.
"Nós não temos poderio militar que nos leve a conquistar um assento permanente. Somos o maior poder bélico na América do Sul e temos o maior número de militares das Forças Armadas no continente. Mas tem certos equipamentos nossos que perdem para a Venezuela e o Chile, por exemplo. Temos alguns investimentos, mas ainda não temos um poderio forte", justifica.
O analista político da BMJ Consultores avalia que somente com mais investimentos em poderio militar que o Brasil poderia pleitear, de fato, um assento fixo no Conselho de Segurança das Nações Unidas. "Vimos a Alemanha mudando completamente a postura dela e passando a investir 2% do PIB em Forças Armadas, que é o que a Otan pede. O Brasil pode e deve se posicionar, mas a gente não tem uma influência militar forte na região", ressalta.
O especialista em segurança e defesa nacional entende que a diplomacia brasileira manterá a posição de equilíbrio, mas ele alerta para os riscos de um reposicionamento tardio. "A Rússia está ficando cada vez mais isolada e não vai sair melhor do que está agora na guerra. Estão sendo enxotados tanto para o lado social, econômico e diplomático", alerta Risden.
A análise do consultor da BMJ também se estende sobre o pleito brasileiro de ingresso à OCDE. Para ele, o Brasil também enfrentará dificuldades para ascender ao "grupo dos ricos" e qualquer efeito prático para o ingresso pode levar tempo. "Há uma série de demandas que precisam ser alinhadas, tanto mudanças de leis para apoiar empresas locais e pela diminuição da burocracia, taxas de exportação, importação. É muito coisa; vai demorar muito", afirma.
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