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Se o presidente Jair Bolsonaro sancionar a nova lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, aprovada pelo Congresso na última terça-feira (10), serão automaticamente extintos todos os inquéritos, denúncias e processos baseados exclusivamente na Lei de Segurança Nacional (LSN), que será revogada. Com isso, deixam de existir, de forma definitiva, várias investigações abertas na Polícia Federal contra opositores de Bolsonaro.
No ano passado, o então ministro da Justiça André Mendonça requisitou a abertura de várias investigações, com base na Lei de Segurança Nacional, por causa de ofensas contra Bolsonaro. Alguns dos alvos foram os jornalistas Ricardo Noblat e Hélio Schwartsman, o cartunista Aroeira e o advogado Marcelo Feller.
Foi imputado a eles o crime previsto no artigo 26 da LSN: “caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, com pena de 1 a 4 anos de reclusão.
Noblat foi investigado por postar uma charge de Aroeira que associava Bolsonaro a uma suástica. Schwartsman foi alvo de investigação por causa de um artigo em que dizia torcer pela morte do presidente. E Feller foi enquadrado por falar ao vivo na TV que Bolsonaro seria um genocida. Todos protestaram contra as investigações, argumentando que ela violava o direito constitucional à liberdade de expressão.
A nova lei extingue o tipo penal do artigo 26, o que leva à ocorrência de um fenômeno chamado “abolitio criminis”. “Todo e qualquer inquérito aberto com base na lei revogada será imediatamente extinto. Isso porque a retroatividade da lei penal benéfica é princípio constitucional e também lei ordinária federal, no artigo 2.º do Código Penal”, diz o advogado criminalista Daniel Gerber.
O artigo 2.º do Código Penal diz que “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.
Segundo Gerber, isso significa que mesmo quem tenha sido punido com base na Lei de Segurança Nacional terá a pena extinta caso o processo não tenha transitado em julgado — ou seja, sem possibilidade de recursos judiciais.
Como ficam os inquéritos contra Bolsonaro e apoiadores
O próprio presidente Jair Bolsonaro e alguns de seus apoiadores também se beneficiarão com a extinção da Lei de Segurança Nacional. Mas isso não significa que vão se livrar dos inquéritos a que respondem. Isso porque alguns tipos penais nos quais estão enquadrados não deixarão de existir.
Bolsonaro, por exemplo, foi incluído neste mês no inquérito das fake news por supostamente cometer três crimes previstos na Lei de Segurança Nacional, em razão das críticas a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ao aceitar uma notícia-crime contra Bolsonaro, o ministro do STF Alexandre de Moraes disse que ele pode ser enquadrado por “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito” – cuja pena é de 3 a 15 anos de prisão. Também poderia responder por “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, com pena de 1 a 4 anos de detenção. E por fim, ser responsabilizado por, supostamente, “incitar à subversão da ordem política ou social”, que tem a mesma pena de reclusão de 1 a 4 anos.
Se a nova lei for sancionada, ela entra em vigor em 90 dias e, a partir desta data, caem todas essas imputações, previstas na LSN.
Isso não significa, porém, que o inquérito será extinto, porque Moraes ainda enquadrou o presidente em outros crimes comuns e também eleitorais. Ele entendeu que as ofensas podem caracterizar crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), associação criminosa e denunciação caluniosa, inclusive com finalidade eleitoral.
“Os inquéritos que contemplam a investigação de outros delitos continuam válidos. Efetivamente, a prática daquele que estava previsto na Lei de Segurança Nacional é que deixará de ser investigado”, afirma Gerber.
As suspeitas contra Bolsonaro previstas na LSN são idênticas às que pesam contra o ex-deputado e presidente do PTB, Roberto Jefferson, preso na última sexta-feira (13) por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Em entrevistas e postagens em redes sociais, Jefferson insultou os ministros e defendeu uma intervenção militar para expulsá-los do STF. No caso dele, há, segundo Moraes, ainda mais indícios de crimes comuns: além dos mesmos imputados a Bolsonaro, há também os de incitação ao crime, apologia ao crime ou ao criminoso, racismo e organização criminosa. Por causa de todos esses delitos, ele poderá continuar sendo alvo de investigação mesmo após o fim da LSN.
O mesmo poderá ocorrer com o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que virou réu no STF por causa do vídeo, divulgado em fevereiro, em que xingou os ministros do Supremo. Na gravação, Silveira disse que imaginou Edson Fachin “levando uma surra” e elogiou o AI-5 — o Ato Institucional n.º 5, que endureceu a ditadura militar no Brasil ao suspender direitos e garantias individuais.
Além dos crimes da LSN — incitar à animosidade entre as Forças Armadas e as instituições civis e tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes —, o deputado também responde pelo crime de coação no curso do processo, tipificado no Código Penal.
Trata-se do delito de “usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade”, com pena de 1 a 4 anos de prisão. Esse continua em vigor e dá sustentação à ação penal já aberta contra o parlamentar.
Outro alvo do inquérito das fake news, o apresentador e dono do canal Terça Livre, Allan dos Santos, é investigado por três tipos penais da Lei de Segurança Nacional — os mesmos de Daniel Silveira e também por supostamente "fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, com pena de 1 a 4 anos.
Mas além desses, que poderão ser extintos, ele também é investigado por organização criminosa, lavagem de dinheiro e crimes contra a ordem tributária e o sistema financeiro — tudo em razão de doações internacionais identificadas na investigação para manutenção de seu canal. Esses crimes permanecem válidos e dariam sobrevida ao inquérito.
Como é a legislação que substitui a Lei de Segurança Nacional
A lei que substituirá a LSN é mais enxuta — tem apenas 10 crimes, contra 22 da lei anterior — e acaba com uma série de delitos que, segundo críticos, inibe a liberdade de expressão ou são muito abertos, o que poderia levar a interpretações expansivas de sua aplicação.
Além de ofensas a chefes dos Poderes, a lei criminaliza, por exemplo, o ato de incitar “à subversão da ordem política ou social” ou “à luta com violência entre as classes sociais”, tipos que serão extintos, com a revogação integral da norma.
Alguns tipos criados são semelhantes: há, por exemplo, o crime de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena de 4 a 8 anos de prisão.
Trata-se de crime semelhante ao previsto na LSN de tentar “mudar a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, com pena de 3 a 15 anos.
O criminalista Daniel Bialski diz que quem respondia por esse crime não poderá ser reenquadrado na nova lei, com o tipo penal semelhante.
“Como advogado, sempre vou dizer que é inaplicável. Como promotor, poderia forçar uma interpretação de que a conduta se assemelha e que haveria uma discussão sobre amplitude da revogação. Como mestre do Direito, direi que a norma revogada deixa de existir. Se tiver alguém condenado, pode entrar com uma revisão criminal dizendo que o crime não existe mais no Brasil”, explica.
Bialski, no entanto, alerta para outra possibilidade. Se Bolsonaro vetar o artigo 4.º da nova lei, que revoga a LSN, as duas normas iriam conviver. Em tese, os tipos penais antigos continuariam em vigor e os inquéritos baseados neles permaneceriam válidos. Ainda nesse caso, a antiga lei poderia cair, pois que já tramitam no STF diversas ações para declarar sua inconstitucionalidade. Elas só não foram julgadas porque a nova lei prevê a revogação, o que levaria à perda de objeto do julgamento.