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O sistema de seguridade social dos militares das Forças Armadas está frequentemente na mira de ações de cortes de gastos do governo por ser comparado à Previdência de servidores civis e da iniciativa privada. Em geral, a polêmica ocorre porque militares passam à inatividade ganhando seu último soldo integral, enquanto civis recebem uma média dos salários que tiveram durante a carreira. Além disso, há pensões para familiares que são um atrativo a mais para a carreira militar.
A diferença na aposentadoria entre militares e civis é baseada na premissa de que membros das Forças Armadas podem ser convocados para guerras ou treinamentos e operações militares dentro do país que podem acabar em morte ou ferimentos incapacitantes, além de gerarem alta quantidade de horas extras não pagas e frequentes mudanças de cidade.
Os cortes de benefícios militares começaram em 2019, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, quando o tempo de serviço mínimo para um militar passar para a inatividade aumentou de 30 para 35 anos. Nesta semana o Congresso analisa uma proposta do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para fazer um novo corte, baseado no estabelecimento de uma idade mínima de "aposentadoria" em 55 anos, que pode gerar economia de R$ 2 bilhões ao Tesouro.
Veja abaixo as principais perguntas e respostas sobre a "aposentadoria" militar e o que está em jogo:
Militares contribuem para a Previdência Social?
Não. Apesar da crença popular, os militares não se aposentam e têm um regime de seguridade social que se diferencia dos servidores civis e da iniciativa privada. Para eles, vale o Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas (SPSMFA).
Isso significa que o pagamento dos soldos dos militares durante sua inatividade não gera déficit para o sistema de Previdência Social. Os recursos saem do Tesouro Nacional e não têm ligação com a previdência da sociedade civil.
O sistema de proteção social militar é um conjunto de ações e deveres que incorporam remuneração, pensão, saúde e assistência, levando em conta as peculiaridades da carreira militar, como a obrigação de disponibilidade permanente, além da dedicação integral e exclusiva às forças.
Ou seja, o militar não se aposenta e o status adquirido após 35 anos de serviço é o de reserva e, posteriormente, o de reforma. Na reserva, o militar se afasta do trabalho, mas fica em disponibilidade para ser reintegrado em casos excepcionais, como guerras, por exemplo. No caso da reforma, o militar fica permanentemente fora do serviço militar pois não tem mais condições físicas de combater.
O que são as pensões paga a dependentes dos militares e como funcionam?
Outro benefício de direito dos militares das Forças Armadas são as pensões pagas aos herdeiros após a morte do militar. O pagamento das pensões faz parte de um fundo financiado pelos militares durante o serviço ativo, reserva e reforma, com contribuição do Tesouro Nacional.
Mensalmente desconta-se alíquotas dos pagamentos dos militares para as pensões. Desde a mudança realizada em 2019, a contribuição para a pensão é de 10,5% para o benefício pensionista, sobre o salário mensal bruto – ou seja, somando soldo e demais gratificações e bonificações salariais.
Os dependentes que podem ser beneficiados com a pensão são cônjuge, ex-cônjuge (desde que receba pensão alimentícia do militar), filhos ou enteados até 21 anos ou até 24 anos, se estudantes universitários ou filhos inválidos, enquanto durar a invalidez e menores sob guarda ou tutela até 21 anos ou até 24 anos, se estudantes universitários ou inválidos, enquanto durar a invalidez. Para cônjuges, o pagamento é vitalício, ainda que se case novamente. O valor da pensão é o mesmo do soldo do militar.
As pensões partem do princípio de que o militar pode morrer em uma operação e sua família não pode ficar desamparada financeiramente. Elas também levam em conta o fato de que cônjuges de militares têm que acompanhá-los em mudanças frequentes de cidades e por causa disso têm menos chances de evoluir em suas próprias carreiras. Em alguns casos, militares trocam de função a cada dois anos e isso pode levar a mudanças de cidades.
Para militares consultados pela reportagem, a pensão é vista como uma forma de "compensar" o tempo dedicado e as abdicações feitas por toda a família durante a dedicação ao serviço militar.
A pensão para as filhas de militares é vitalícia?
A pensão vitalícia concedida a filhas de militares é alvo frequente de críticas e interpretações equivocadas. Em 1991, o debate era se a mulher perderia o direito à pensão caso se casasse. O Supremo entendeu na época que o casamento não anulava o benefício.
Esse tipo de pensão foi suspensa para famílias de militares que entraram nas Forças Armadas a partir de 2001. Mas os custos ao Tesouro continuam altos porque militares que estavam no serviço ativo até 29/12/2000 tiveram a opção de continuar contribuindo com 1,5% sobre sua folha de pagamento para manter o benefício.
No casos de militares que ingressaram na carreira após essa data, a pensão por morte só é paga para filhas até que elas completem 21 anos ou 24 anos, se forem estudantes universitárias.
O sistema de "aposentadoria" dos militares é deficitário?
Segundo, o Tribunal de Contas da União (TCU), sem levar em conta de onde sai o dinheiro, todos os sistemas previdenciários, do INSS, dos servidores públicos e dos militares, são deficitários.
Em junho deste ano, o TCU publicou um relatório afirmando que o sistema de seguridade social dos militares teria gerado um déficit de quase R$ 50 bilhões ao Tesouro em 2023. Isso significa um déficit de R$ 158,8 mil por pessoa, de acordo com o órgão. Servidores públicos causaram déficit de R$ 69 mil por pessoa e no sistema do INSS o déficit per capita foi de R$ 9,4 mil por ano. O relatório do tribunal afirmou que o sistema dos militares é o menos sustentável.
Os militares dizem que o déficit está caindo ao longo dos anos e que o governo agora poderá abater dívidas do Tesouro usando o superávit dos fundos bilionários das Forças Armadas. Isso será possível pelo Projeto de Lei Complementar 210/2024 que passou na Câmara na terça-feira (17) e deve ser votado nesta quarta-feira (18) em sessão do Congresso.
O militar se aposenta com o último salário integral?
Após passar para a reserva e depois para a reforma, o que é pago aos servidores das Forças Armadas é o soldo. O soldo é a parte básica da remuneração militar e é pago de acordo com o posto e formação daquele militar.
Na carreira ativa, o soldo é acrescido de gratificações, mas elas deixam de ser pagas quando o militar passa para a inatividade.
Por exemplo, se um oficial general da Marinha chega à reserva como Almirante — o mais alto posto na Força — o soldo é de R$ 14 mil, quantia que ele recebe durante todo período que estiver na reserva e durante a reforma.
No caso de um servidor público ou trabalhador da iniciativa privada que se aposenta via INSS, a receita de aposentadoria é um cálculo da média entre seu primeiro e último salário, com limite ainda de um teto de R$7.786,02.
A "aposentadoria" dos militares tem privilégios?
O fato do militar passar para a inatividade com o valor integral do seu último pagamento gera uma sensação de injustiça em trabalhadores civis que não têm esse benefício. Isso costuma ser questionado especialmente pelo fato do Brasil não ter se envolvido em conflitos que gerem baixas massivas desde o fim da Segunda Guerra.
Países envolvidos mais frequentemente em conflitos armados costumam criar grandes atrativos para a carreira militar para conseguir atrair o contingente necessário da população. A premissa é a de que a pessoa que vai dar a vida pelo país tenha que ser bem remunerada e ter um sistema de seguridade social sólido.
O longo período pacífico desfrutado pelo Brasil trouxe outros argumentos para defender o atual formato da carreira militar.
Além da disponibilidade permanente, o militar não pode ter um outro vínculo empregatício para complementar renda e tem alguns direitos trabalhistas excluídos, como a remuneração por hora extra, adicional noturno e fundo de garantia, por exemplo. Em alguns casos onde tem que participar de operações ou fazer guarda, a carga horária semanal pode passar de 60 horas sem qualquer tipo de remuneração adicional.
Os militares afirmam também que a carreira militar é composta por anos de dedicação, estudos e profissionalização. Um general, por exemplo, leva cerca 30 anos para chegar a este patamar, já que não é possível “avançar” patentes na carreira para chegar a um cargo mais alto.
Outro ponto levado em consideração é o fato de o salário pago para as Três Forças ser menor do que o pago a outras carreiras, como na Polícia Federal, por exemplo. O de um delegado da Polícia Civil no Distrito Federal, por exemplo, o salário inicial é de R$ 21 mil. Um almirante recebe R$ 14 mil de salario base no fim da carreira.
“Determinados benefícios dos militares são tratados hoje por alguns meios da sociedade como privilégios, mas na verdade, no contexto geral, a aposentadoria dos militares é especial porque a atividade é especial e tem determinadas particularidades e peculiaridades", pontua o advogado Berlinque Cantelmo, da Cantelmo Advogados Associados e especialista em direito militar.
O que muda com a nova proposta do governo em análise no Congresso?
O projeto do governo representa um novo avanço na contenção de recursos nas Forças Armadas, processo que já havia sido iniciado em 2019. À época, estabeleceu-se o tempo mínimo de 35 anos de serviço ativo para o militar entrar para a reserva, um aumento de cinco anos na regulamentação anterior.
Agora, em uma nova proposta negociada entre os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, além do tempo de serviço passa a valer uma idade mínima de 55 anos completos para o militar passar para a inatividade. A legislação atual não prevê idade mínima para o servidor das Forças Armadas solicitar sua reserva. Na prática, isso significa que os militares passarão mais tempo no serviço ativo.
Além da idade, foi negociada o fim da pensão por "morte ficta", benefício pago a familiares de militares afastados e expulsos das Forças Armadas. A "morte fictícia" do militar dá o direito aos seus dependentes previstos em lei de receber uma pensão que equivale ao seu salário enquanto ainda estava ativo. Ela foi criada para que, se um militar cometer uma falta grave ou um crime, sua família não seja penalizada. O caso extremo é de militares expulsos por serem condenados por violência doméstica. Com o fim da pensão, a companheira ou companheiro acabaria duplamente penalizado. De acordo com o TCU, o pagamento deste tipo de benefício pode custar cerca de R$ 43 milhões aos cofres públicos por ano.
A proposta também sugere o fim da transferência de pensão. Na prática, os valores do benefício podem ser ser transferidos entre os beneficiários legais do militar que têm direito ao pagamento. Essa transferência poderia acontecer em vida ou após a morte do dependente. Os críticos da medida justificam que a possibilidade de transferência prolongue por muitos anos o pagamento dessas pensões.
Também avalia-se a criação de uma alíquota fixa em 3,5% a ser descontado das três forças para ser destinado ao fundo de saúde dos militares. Atualmente, a porcentagem descontada varia de acordo com a força e carreira do militar, o que deixa a média da alíquota em 2%. Com a nova regra, o governo pretende fixar o valor de 3,5% para os servidores da Marinha, Exército e Aeronáutica até janeiro de 2026.
A perspectiva do Ministério da Fazenda é gerar uma economia de cerca de R$ 2 bilhões com as medidas.
O corte de gastos gerou tensão política com os militares?
Houve tensão, mas não uma crise. A reportagem apurou com membros da cúpula das Forças Armadas que já havia o entendimento de que Exército, Marinha e Aeronáutica precisam diminuir o número de militares de carreira e aumentar a quantidade de militares temporários (que geram custos menores com seguridade social) em seus quadros. Essa é uma tendência internacional.
O que preocupou os comandantes foi a necessidade de um tempo de adaptação às mudanças. Isso porque para aumentar para 55 anos a idade mínima para um militar passar à inatividade será preciso que cada um passe mais tempo em cada patente e função. Se ajustes não forem feitos há risco de no futuro haver um número desproporcional de oficiais em altas patentes.
O Ministro da Defesa José Múcio e os comandantes das Forças Armadas se reuníram com Lula no começo de dezembro e acertaram uma regra de transição até 2032, onde militares que já tenham 35 anos de serviço e mas não tenham completado 55 anos de idade pagarão um pedágio de 9% do tempo de participação no serviço ativo antes de passarem para a reserva.
Lula concordou, mas a Marinha divulgou nas redes sociais unilateralmente logo depois da reunião um vídeo afirmando que seus integrantes não têm privilégios. A peça de propaganda gerou descontentamento no governo e nas outras forças por comparar a vida de militares com a de civis dando ideia de que a dos militares é mais dura. O vídeo foi apagado nesta semana, no mesmo momento em que o governo enviou ao Congresso um projeto de lei formalizando a proposta de cortes.
A matéria deve ser discutida pelos parlamentares nesta semana dentro de um pacote mais amplo de redução de gastos do governo.