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A minirreforma ministerial anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro, que reduz o poder da ala militar e reforça a influência do Centrão, consolida um processo de transformação política do governo que já vinha ocorrendo há alguns meses. Muito pouco restou da estratégia adotada no início do mandato, quando o plano era acabar com o "toma-lá-da-cá" com os partidos e privilegiar o diálogo com frentes parlamentares. Havia ainda a preferência por "superministros" (Sergio Moro, da Justiça, e Paulo Guedes, da Economia) e técnicos no comando das pastas, com exceção de algumas "ilhas" de poder entregues a militares e à ala ideológica.
Agora, Bolsonaro replica o modelo de gestões anteriores que prometeu combater: a da troca de cargos do primeiro escalão por apoio político. O senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, deve assumir a Casa Civil, um dos ministérios mais estratégicos do governo. Eles se juntará a outros parlamentares que já são ministros, como Fábio Faria (PSD), das Comunicações; João Roma (Republicanos), da Cidadania; e Flávia Arruda (PL), da Secretaria de Governo. Todos estes partidos integram o chamado Centrão do Congresso Nacional.
O primeiro escalão conta ainda com os ministros-deputados Tereza Cristina, da Agricultura, e Onyx Lorenzoni, a ser deslocado para um recriado Ministério do Trabalho. Ambos são filiados ao DEM e ocupam posto de ministro desde o primeiro dia da gestão Bolsonaro.
A mudança de perfil do governo é explicada por fatores distintos, como ameaças de impeachment, dificuldades na recuperação da economia e equívocos no combate à pandemia de Covid-19. Mas, principalmente, se conecta com arranjos políticos para as eleições de 2022. As declarações recentes de Bolsonaro de que pode se filiar ao PP para concorrer à reeleição e de que faz parte do Centrão são exemplos disso.
As mudanças, porém, ocorrem de uma forma que não aplacam integralmente os interesses dos núcleos originais do governo, transformando a gestão atual de Bolsonaro numa mistura de perfis distintos.
O que a saída de Moro e a bênção a Arthur Lira têm em comum
Em 24 de abril de 2020, o ex-juiz Sergio Moro pedia demissão do governo Bolsonaro. Alegando que o presidente tentou interferir politicamente na Polícia Federal, Moro acabou por criar uma das mais duras crises vividas pelo presidente, que estava em seu terceiro semestre de mandato e começando a lidar com a massificação do coronavírus pelo país.
Dias antes daquilo, Bolsonaro recebeu no Palácio do Planalto o deputado Arthur Lira (PP-AL). Ambos gravaram um vídeo com elogios mútuos. O presidente dizia que o parlamentar era um “pai e maridão” e Lira alegava que seus familiares eram fãs do chefe do Executivo.
Os dois fatos, embora aparentemnte desconectados entre si, simbolizam um quadro que se consolidou naquele momento e não deixou de ganhar força desde então. Bolsonaro e Lira foram se aproximando e o presidente apoiou o alagoano na sua vitoriosa tentativa de se eleger presidente da Câmara, no início de 2021.
Já Moro passava de “superministro” ou herói do bolsonarismo a persona non grata nas esferas do governo, e hoje é visto como um possível adversário de Bolsonaro nas urnas em 2022. O Ministério da Justiça foi ocupado posteriormente por André Mendonça, que acabaria contemplado por Bolsonaro com a indicação ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Meses depois daquele atibulado abril, Bolsonaro destituiria o deputado Vitor Hugo (PSL-GO) do cargo de líder do seu governo na Câmara para colocar na função Ricardo Barros (PP-PR). Com a troca, removia um novato vinculado às correntes ideológicas para inserir no posto um dos políticos mais experientes do Congresso, que já havia ocupado cargos de destaque em gestões anteriores — e adversárias — de Bolsonaro.
A aproximação com o Centrão deu a Bolsonaro força para aprovar alguns projetos dentro do Legislativo — entre eles, o auxílio emergencial, que foi decisivo para que o governo desfrutasse momentos positivos de popularidade no segundo semestre do ano passado.
Foi também o enterro de uma ideia que o presidente havia lançado no começo de sua gestão: a de fazer com que o relacionamento entre ele e o Congresso se desse não por meio de partidos e líderes, mas sim por “grupos temáticos". A rota foi se mostrando improdutiva e a substituição pelo modelo clássico acabou prevalecendo de forma natural.
Hoje, ainda há representantes da chamada “ala ideológica” no governo, como a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e o titular da Educação, Milton Ribeiro. Mas sua presença numérica e sua influência não se assemelham ao que se via no início da gestão.
Militares perdem influência no governo Bolsonaro
No início da gestão Bolsonaro, os “núcleos” ou “alas” do governo não eram tão claros. Por serem subgrupos informais — e também pelo fato de a divisão ser contestada pelo próprio presidente — não se podia cravar com certeza a faixa de cada um dos integrantes do primeiro escalão. Por exemplo, o primeiro titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ora era qualificado como do núcleo “técnico”, por ter formação médica, ora era do núcleo “político", por ter filiação partidária e ter exercido mandato de deputado.
Mas um segmento tinha seus integrantes de forma muito clara: o militar. Bolsonaro, militar de origem, se posicionou como o presidente a mais inserir, desde a redemocratização do país, membros das Forças Armadas em seu primeiro escalão. Do vice Hamilton Mourão ao titular de Minas e Energia, Bento Albuquerque, os militares formaram um expressivo núcleo que era visto em muitas ocasiões como responsável por “moderar” o presidente e ser um contraponto aos arroubos ideológicos da outra subdivisão.
Atualmente, os militares ainda permanecem na elite do governo Bolsonaro. Alguns deles, na mesma função desde 1º de janeiro de 2019. Outros, porém, mudaram não apenas de cargo, mas levaram a condição dos militares no governo a outro patamar.
A Casa Civil, antes da chegada de Ciro Nogueira, foi comandada por fardados — primeiro por Braga Netto de fevereiro de 2020 a março de 2021, e depois por Luiz Eduardo Ramos de março de 2021 até a ascensão do senador do PP. O próprio Braga Netto transitou de funções: deixou a Casa Civil para ocupar a pasta da Defesa, em um dos episódios mais ruidosos do governo. Sua escolha para o cargo seria uma resposta ao anterior, Fernando Azevedo e Silva, que teria se recusado a embarcar em ações de Bolsonaro contra governadores de estado.