Ninguém sabe ao certo quantas facções criminosas existem no Brasil, mas o tamanho do problema gerado por esse tipo de crime organizado é praticamente um consenso quando se fala em segurança pública. Não há, por enquanto, nenhum levantamento oficial sobre facções, mas o Ministério da Segurança Pública estimou, no ano passado, que existam cerca de 70 organizações espalhadas pelo país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, por sua vez, sinalizou a ação de pelo menos 37 diferentes facções em todo o território nacional.
Não por acaso, o combate ao crime organizado foi definido como prioridade pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, para sua gestão à frente da pasta, ao lado do combate à corrupção - tema caro ao ministro, que é ex-juiz da Lava Jato. Já no início do ano, a pasta comandada por Moro coordenou uma operação que envolveu 17 órgãos diferentes para a transferência de 22 lideranças do PCC para presídios federais, de segurança máxima, dando a tônica de como o governo federal deve agir em relação a essas organizações.
Para tentar neutralizar as facções criminosas, porém, é preciso entender como elas surgiram, em primeiro lugar. O berço das principais facções criminosas do Brasil, principalmente o PCC, apontada como a maior do país, pode dar muitas pistas do que pode ser feito para combatê-las.
Condições desumanas dos presídios?
Um dos fatores amplamente difundidos para explicar o surgimento das facções criminosas como conhecemos atualmente é a condição desumana a qual os presos estavam submetidos nos presídios, principalmente em São Paulo.
O sociólogo Gabriel Feltran estudou in loco, na periferia de São Paulo, o modo de atuação do PCC e publicou um livro sobre o surgimento e funcionamento da facção, intitulado ‘Irmãos: uma história do PCC’.
“O PCC nasceu na cadeia, um ano depois do Massacre do Carandiru”, afirma o sociólogo na obra. “Reivindicava reação à opressão do sistema contra os presos, mas também do preso contra o preso. Legitimou sua autoridade no cárcere por aplicar medidas expressas de interdição do estupro, do homicídio considerado injusto e, posteriormente, do crack das prisões sob seu regime. Firmou-se como interlocutor entre os gestores e funcionários dos presídios porque a disciplina estrita que introduzia nas suas unidades prisionais lhes era funcional”, descreve Feltran.
Desigualdade social e estratégia de controle da população pobre
Além do tratamento degradante nos presídios, sociólogos e antropólogos que estudam violência arriscam outras explicações para o surgimento - e fortalecimento - de facções criminosas como o PCC.
Para o professor de antropologia do direito e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB), Welliton Caixeta Maciel, a desigualdade social é um dos fatores que ajuda a explicar o fortalecimento de facções.
“[O surgimento de facções] passa pela estrutura de Estado baseado na diferença de classes, de etnias, pela própria constituição do Estado em si. É essa ausência do Estado em prover trabalho, moradia, educação, saúde, habitação digna, saneamento básico, transporte”, explica.
Para a professora do departamento de sociologia da UnB e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (Nevis) da universidade, Analía Sória Batista, as facções também têm origem em uma tentativa de controle social do Estado.
“Se você observa, as gangues prisionais surgiram em São Paulo na década de 1970 e 1980 e muitos estudos frisam que essas gangues se formaram devido às condições desumanas dos presídios. Eu não vou negar essa realidade, mas ao mesmo tempo, quando você observa o fenômeno em perspectiva histórica até o momento atual, você vê que também houve uma espécie de estratégia do Estado no sentido de controlar determinada população, que são os jovens, negros, pobres”, explica a pesquisadora. “O Estado acaba exercendo uma espécie de reprodução desses jovens na criminalidade e depois, como todo mundo sabe, de extermínio”, diz.
Para Analía, as condições desumanas dos presídios são uma explicação incompleta para o surgimento dessas organizações. “Eu penso muito no problema do controle social que o Estado exerce para poder tentar responder a esta questão: por que essa população especificamente [jovens, negros, pobres] está nos presídios? É praticamente uma estratégia de eliminação dessa população”, afirma.
Maciel tem uma visão parecida sobre o surgimento das facções a partir de uma desigualdade produzida pelo Estado. “Basta olhar o perfil de quem está preso, é negro, pobre, jovem. Essa população marginalizada que se articulou”, ressalta.
No livro que escreveu sobre o PCC, Feltran chega a uma conclusão parecida depois de estudar o tema in loco. “Pesquisas recentes vêm corroborando o que as mães de jovens presos e mortos, policiais e ladrões já sabem: desigualdade brutal, mercados ilegais não regulados e repressão aos pequenos operadores formam uma combinação explosiva, que causa muito mais prejuízo do que ganho à ordem pública”, diz o autor. “A coletivização do crime, em toda a América Latina, nutre-se desse contexto. O PCC talvez seja o fruto mais evidente desses três elementos juntos, e sua expansão foi favorecida, ao contrário do que acontece com outras facções, pela estrutura extremamente engenhosa que elegeram para se organizar”, completa.
Facções são legitimadas onde o Estado não chega
Além de pensar no surgimento das facções, é preciso analisar como elas se fortaleceram a ponto de chegarem a se tornar um problema tão grave no Brasil. “O PCC, com suas regras, acaba sendo legitimado não apenas pelo crime, como pela comunidade onde ele atua”, explica Maciel.
Feltran traz um bom panorama de como o PCC é legitimado pela sociedade sob sua influência. Depois de ser legitimado dentro das cadeias pelos presos e funcionários do Estado, ao levar uma paz negociada às unidades prisionais, a oferta de justiça e segurança eficientes à comunidade é um dos fatores dessa legitimação fora do cárcere, diz o sociólogo. Enquanto a polícia e a justiça oficial levam anos para concluir um inquérito que investiga um assassinato, por exemplo, o PCC, depois de um debate ouvindo os envolvidos, decide o que é “justo” em algumas horas.
“É essa eficiência que convence uma parte da população, não por acaso a mais pobre dela, de que o PCC pode ser uma instância de recurso à justiça melhor do que a polícia, a justiça oficial, o Estado como um todo. Não estou advogando por uma justiça sumária nesses moldes criminais, evidentemente. O que ressalto é o mecanismo de produção de uma justiça que se apresenta como “eficiente”, de fato disponível aos moradores da cidade, coisa que as camadas mais pobres - e mais negras - das periferias do país nunca experimentaram”, ressalta o autor em seu livro.
O Estado perdeu o controle dos presídios ou esse controle nunca existiu?
Diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) - órgão subordinado ao Ministério da Justiça -, Fabiano Bordignon defende que, para enfrentar as facções criminosas, o mais urgente é recuperar o controle dos presídios e retirar os presos da influência de lideranças das facções.
“Nós precisamos trabalhar com a retomada de controle. Precisamos conhecer melhor quem são os presos do Brasil. A maioria dos presos do Brasil não são faccionados, mas estão sob influência de facções. Então, nós precisamos retirar essa influência e colocar a influência do Estado. O Estado tem que influenciar esses presos”, reconhece Bordignon.
Maciel e Analía, porém, discordam. Para eles, os governos não perderam o controle dos presídios. Na verdade, segundo os pesquisadores, esse controle nunca existiu. “[O fortalecimento das facções] não foi porque o Estado perdeu o controle das prisões, o Estado nunca teve [esse controle] porque ele sempre fechou os olhos para a prisão”, diz Maciel, reforçando o argumento de que a desigualdade social é um elemento propulsor do surgimento das facções.
“Eu não acho que o Estado tenha perdido o controle das prisões. Eu acho, primeiro, que alguns representantes do Estado negociam frequentemente com as lideranças das gangues nos presídios. Há uma permissão para que essas lideranças continuem, dentro dos presídios, com as mesmas atividades criminosas que as levaram à prisão. É uma contradição”, ressalta Analía.
Bordignon reconhece que há uma ausência histórica dos órgãos do Estado dentro dos presídios. “É uma ausência histórica do Brasil na questão prisional”, disse. “Em 1976 foi a primeira CPI do Congresso Nacional sobre o sistema carcerário. Se a gente for ler os resultados da CPI, já se falava em superlotação, já se falava em falta de trabalho, de uma especialização no sistema penitenciário, e é exatamente esse tipo de problema que foi se avolumando e chegou nesse momento em que as organizações criminosas que surgiram no cárcere extrapolaram as fronteiras e começam a cada vez mais repercutir em altos índices de criminalidade no Brasil”, completa o diretor do Depen.
Ao tentar sufocar facções, Estado deu mais força às organizações
No início deste ano, o Ministério da Justiça coordenou as operações Império I e Império II, nas quais 22 líderes do PCC foram transferidos de São Paulo para presídios federais. Entre os presos transferidos estava Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, apontado como líder máximo da facção. Marcola foi transferido para Rondônia na operação Império I, e posteriormente para Brasília, na operação Império II.
Para Maciel, a transferência de presos faccionados para outros estados, uma tentativa de sufocar as facções, acabou dando mais força às organizações. “As facções nascem a partir de São Paulo, dentro das condições carcerárias, dentro dos presídios paulistanos e depois esse crime cresce e vai se alastrando, e o Estado, em uma tentativa de desarticular, acaba contribuindo para a propagação e fortalecimento”, explica o pesquisador.
“Exemplo disso é o RDD [Regime Disciplinar Diferenciado], que o Estado criou na tentativa de desarticular [as facções], tirando as principais lideranças desses presídios e mandando para outros estados. Isso fez com que as facções ganhassem ainda mais poder e mais força e conseguissem alastrar seus tentáculos”, resume Maciel.
A estratégia adotada pelo atual governo federal, porém, é diferente, garante o coordenador-geral de Combate ao Crime Organizado da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça, Wagner Mesquita. “Deslocar componentes de organização criminosa para presídios federais, onde há um controle maior de comunicação, isso já era praxe. O grande diferencial é que isso foi feito com uma liderança máxima, que durante muito tempo se acreditou que era melhor estar por perto e tendo uma vigilância mais de perto. E houve um rompimento total”, disse Mesquita. “O Marcola está até agora no RDD. Ele está sem banho de sol e sem visita até hoje. Desde aquele dia, ele não falou com mais ninguém. Agora o controle em cima dele é muito maior”, completa.
Medidas para combater as facções
Para Bordignon, o enfrentamento às facções passa por mais investimentos no sistema carcerário, na construção de novas unidades e na abertura de novas vagas, entre outras medidas. “A gente tem que trabalhar com a retomada de controle e maximização, abertura de novas vagas para melhorar a questão da gerência das vagas, dos presos, evitar o retorno do preso ao sistema prisional quando sai. São várias medidas que precisam ser tomadas. Medidas executivas, que podem ser feitas pelo próprio ministério, pelo Departamento Penitenciário, e legislativas, com o pacote anticrime”, avalia o diretor do Depen.
Para Analía, porém, o pacote anticrime proposto por Moro ao Congresso Nacional agrava o problema, ao invés de resolvê-lo. A pesquisadora critica, principalmente, o trecho do projeto que trata da legítima defesa e do excludente de ilicitude para policiais que matam em serviço.
“A polícia mata muito, e também está morrendo muito, é uma tragédia. Morre a polícia, morre os integrantes de facções. Vai se criando uma questão da vingança. Mata-se um policial e vem a vingança da polícia. E vice-versa. O mesmo acontece no sistema penitenciário”, explica Analía. “O pacote anticrime, a minha maior preocupação é que se os jovens, negros e pobres já vem sendo eliminados, o que vai acontecer com praticamente uma promoção desse exercício? Eu acho bastante trágico”, completa.
Para Maciel, há duas estratégias que devem ser adotadas para combater a influência das facções criminosas no Brasil. A primeira é o abandono da política de guerra às drogas. “A guerra às drogas é o pano de fundo que o Estado usa para eliminar esse estrato da população [negro, pobre]. Esse é o discurso do Estado hoje”, explica.
“A outra forma seria reestruturando o sistema penitenciário, pensando em meios de cumprimento de pena menos desumanos e formas alternativas, com tornozeleira eletrônica e outros meios de cumprimento de pena em meio aberto. Seria uma forma de desarticular o crime, diminuir essa população carcerária, que hoje é um verdadeiro exército para o crime”, defende o pesquisador.
A conclusão de Irmãos: Uma história do PCC traz uma reflexão parecida. “Mesmo que não todas, a grande maioria das pessoas só escolhe vender drogas na esquina se não puder ter outra ocupação. Quando o rapaz que as vende por ali é preso, surge no dia seguinte um novo traficante trabalhando em seu lugar, além de um presidiário onerando os cofres públicos enquanto se profissionaliza no crime. Tem-se mais do que isso. Duas semanas depois, um terceiro rapaz está trabalhando naquela esquina, e dois meninos estarão sob a mira dos “responsas” pelo recrutamento das facções, dentro da cadeia”, explica Feltran.
“Mais investimento nessa repressão, mais Justiça Criminal funcionando, mais prisões efetuadas, e a máquina crime-segurança gira mais depressa. Seu mecanismo é composto justamente por essas engrenagens”, argumenta o sociólogo.