Militares brasileiros acreditam que o conflito armado na Ucrânia pode durar até 30 dias, mas os desdobramentos da guerra ainda são vistos como incertos. Nas Forças Armadas, existe a convicção de que o combate não vai tomar uma escala mundial; e de que o uso de bombas nucleares não vai acontecer. No cenário interno, oficiais nas três forças avaliam que o Brasil não vai mudar sua postura em relação ao cenário externo e que, apesar dos impactos econômicos e comerciais globais que sofrerá, o país não será atingido na relação militar com o mundo.
O cenário tido como "mais provável" nas Forças Armadas é de que a Rússia conquiste a capital ucraniana, Kiev, dentro de 5 a 10 dias. É o que prevê o Centro de Doutrina do Exército (CDoutEx), departamento organizado com mais de 50 especialistas que tem acompanhado o conflito na Ucrânia por meio do "Observatório de Doutrina". As análises são feitas por militares da ativa, veteranos e oficiais de ligação de doutrina no exterior.
Já militares ouvidos pela Gazeta do Povo esperam um cenário mais conservador e entendem que o conflito armado pode durar até 30 dias. "A parte de combate não vai ser longa. A Rússia deve levar no máximo 30 dias para atingir os objetivos que ela têm na Ucrânia. Pelo que eu vejo, o principal é derrubar o governo ucraniano e forçar uma rendição e mudança de governo", diz um oficial militar de forma reservada.
A grande indefinição vista nas Forças Armadas é sobre o quão longo os desdobramentos da guerra podem ser, como a retirada de tropas russas da Ucrânia e as negociações entre ambos os países. "A questão do leste ucraniano e das duas regiões separatistas [Donetsk e Luhansk] não sabemos como fica, se é irreversível ou não. Haverá muitas negociações para saber se elas terão autonomia ou não. Mas isso pode levar anos e não se resolver tão cedo", diz um militar.
Para militares brasileiros, o cessar-fogo entre ucranianos e russos e a incerteza sobre os rumos do conflito entre os dois países não eliminaria as dúvidas sobre os impactos no Brasil e no mundo, até pela indefinição sobre como pode se dar a deposição do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. De toda a forma, a avaliação feita nas Forças Armadas é de que a posição brasileira tende a se manter sem alterações.
Quais os próximos passos previstos por militares do Brasil sobre a guerra na Ucrânia
A Gazeta do Povo conversou com quatro militares – os quais incluem oficiais em funções no governo federal – para obter as avaliação da guerra na Ucrânia feitas nas Forças Armadas brasileiras. Todos rejeitam a hipótese de risco de uma guerra mundial, mas alertam para os desdobramentos que o fim do conflito armado previsto pode acarretar.
No boletim de quarta-feira (2) publicado pelo Observatório de Doutrina, o Exército analisa que, para as tropas russas conquistarem Kiev em até 10 dias no cenário previsto por seus especialistas, as forças de Moscou "terão que usar meios militares cada vez mais violentos". "Há sinais de que a artilharia russa já está empregando bombas de fragmentação", destaca o informativo. Bombas de fragmentação, como o nome diz, soltam fragmentos ao explodir, o que amplia o raio de destruição e causa mais mortes.
O Centro de Doutrina do Exército destaca ainda que o ponto mais crítico desse cenário será o destino de Zelensky, "uma vez que o objetivo final russo é ocupar a capital e depor o governo ucraniano". "A grande incerteza nesse caso é a reação que será tomada pelos países da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] na fase seguinte, principalmente, se o presidente não sobreviver", alerta.
Segundo os militares brasileiros, a reação da Otan à prevista deposição de Zelenski pelos russos vai dizer muito sobre os rumos da guerra. Mas oficiais insistem não crer na hipótese de uma escalada global do conflito armado. "A guerra poderia ganhar um contorno mundial se a Otan interferir diretamente no combate russo por um lado ou os russos avançarem sobre os países da Otan pelo outro lado, como a Letônia, Estônia e Lituânia. O risco sempre existe quando se começa uma guerra, mas é um cenário pouco provável", analisa um militar.
O motivo usado por militares para justificar a análise de que o conflito entre russos e ucranianos não vai ganhar contornos de uma III Guerra Mundial é a ameaça nuclear feita pela Rússia. "Não acredito em uma guerra mundial porque não há margem suficiente para fazer isso e pagar para ver, ainda mais depois que o [Vladmir] Putin colocou todas as forças de dissuasão em prontidão. O que isso quer dizer? Que eles estão com o equipamento atômico em prontidão e o 'dedo no gatilho'", explica um outro militar.
A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, afirmou que o país não prevê o uso de armas nucleares sob nenhum pretexto, mas os militares brasileiros ressaltam que o emprego das forças de dissuasão representa uma clara ameaça. "O objetivo da Rússia não é usá-las, é fazer com que o outro [país] não a use contra você e não queira o confronto", diz um oficial.
Por esse motivo, por exemplo, a Otan resiste a criar uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, afirma o militar. "Significaria que caças russos não poderiam voar por ali e a Ucrânia não faz parte da Otan. Russos avançariam e aeronaves da Otan entrariam em combate direto com os russos e aí, sim, poderia desencadear uma guerra mais perigosa entre Otan e a Rússia", diz a fonte. "Não foi à toa que o Putin colocou a frota nuclear em alerta máximo, um recado claro para a Otan. Foi como se tivesse traçado uma linha vermelha e avisado: 'não avancem'. Mesmo em uma guerra de baixa intensidade, capitais europeias poderiam ser destruídas em segundos", complementa.
Além de descartar uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, reafirmou nesta semana que tropas não serão enviadas para lutar ao lado das forças ucranianas, apesar de condenar o ataque russo.
Um militar brasileiro diz que, além da intenção de evitar uma guerra, a inteligência militar dos 30 países que integram a aliança militar do Ocidente sabem das limitações geográficas do país. "O conflito é regional e em espaço limitado, e a Otan sabe que os russos não entrariam na guerra despreparados", avalia um militar. "Para mim, os russos não estão com pressa. Querem desgastar e sufocar os ucranianos até a negociação", acrescenta a fonte, que não previu um prazo para o fim do conflito armado.
O que pensam militares sobre a posição do Brasil na guerra
Os militares brasileiros analisam a guerra na Ucrânia com muita sobriedade. Para eles, é correta a postura brasileira de manter o que consideram ser "neutralidade", como diz o presidente Jair Bolsonaro (PL). Ou seja, condenar a guerra nas Nações Unidas, mas não interferir ou tomar partido de um lado ou outro. O chanceler brasileiro, ministro Carlos Alberto França, tem usado o termo "equilíbrio" à imprensa para defender a posição do Itamaraty.
Um dos militares, por exemplo, condena os ataques russos, mas também pondera sobre o que considera como "causas reais" do conflito, a exemplo dos conflitos internos da política ucraniana. Para a fonte, tanto a Rússia como a Ucrânia e a Otan não agiram pautadas pela reconciliação e concessão ao longo dos últimos anos. "A ação e iniciativa do uso da força pela Rússia sobre um país livre e soberano não deve ser nunca apoiada. Mas, também, não se pode deixar de avaliar mais profundamente a situação", diz o militar. "Quando tratamos de uma guerra ou conflito, temos que avaliar quais foram seus antecedentes e as causas reais. Essa situação não foi levada a sério pelos países da União Europeia e os dirigentes ucranianos se acomodaram com uma cisão étnica e cultural no seio da sociedade. A Rússia deu muitos avisos que poderia 'escalar essa crise'", acrescenta.
Outro militar que também condena os ataques russos pondera que o conflito entre os dois países é complexo demais para assumir um único lado. "A Ucrânia não entrou para a Otan, mas quem garante que não teve negociações de bastidores? O que temos de informações é pouco para bater o martelo e dizer que a Rússia é a única errada. Com certeza pode ter tido algum trabalho de inteligência que tenha chegado ao presidente Putin sobre isso – o que, claro, não justifica o uso da força contra a soberania de um país", pondera.
Outro militar também alerta para violações cometidas por ambos os países ao Direito Internacional Humanitário (DIH), que constitui as normas que gerem a condução das guerras. Ao passo em que a Rússia empregou o uso de bombas de fragmentação em áreas urbanas ucranianas, o que viola um princípio fundamental, o governo ucraniano é acusado de armar civis para o combate, o que também fere outro princípio. "São situações que afetam as leis da guerra. Cada país avalia e joga com seus interesses", diz a fonte.
Além do conflito armado, o combate entre ucranianos e russos também gera uma "guerra de narrativas" que, segundo militares, é praxe em um confronto bélico.
Por todos esses e outros entendimentos que militares defendem o posicionamento do Brasil nos fóruns internacionais. "Os representantes brasileiros estão buscando a imparcialidade pelo equilíbrio e a liberdade de podermos criticar ambos os lados. A Rússia pela ação militar e os países ocidentais pelas sanções unilaterais e limitadas aos seus interesses", justifica um oficial. "Veja como a União Europeia deixou de lado a área energética nas sanções. Por quê? Interesse próprio", complementa.
Outro militar defende, inclusive, a postura do Brasil de não ter participado do boicote contra o chanceler russo, Sergei Lavrov. Na terça-feira (1.º), mais de 100 diplomatas deixaram a sala onde estava sendo realizada a Conferência sobre o Desarmamento da ONU, mas o representante do Brasil permaneceu.
"O certo é nos manter distantes até para poder aconselhar de uma forma mais isenta a resolução do problema nas Nações Unidas. Não temos que acompanhar levantando bandeira e saindo de auditório para não ouvir o chanceler russo falando. Isso aí é tomar partido de um lado e o Brasil não tem que fazer isso por ninguém. Somos um país soberano e não temos que atrelar a política externa à vontade de um dos lados", sustenta um oficial.
Outro militar pondera que o Brasil tem pouca ingerência na solução dessa crise, embora reconheça que o país pode ser muito impactado internamente. "Todos ficam preocupados com os danos colaterais de qualquer conflito militar. Mas o que se vê no Brasil é mais uma vez a oportunidade de apontar erros do presidente [Bolsonaro] na tentativa de enfraquecê-lo para as eleições", destaca.
Como a guerra impacta o Brasil e as Forças Armadas, na visão de oficiais
Os militares do Brasil preveem impactos econômicos e comerciais como principais efeitos colaterais da guerra para o país. Para eles, o Brasil pode lidar com escassez de alimentos (que pode ocorrer com sanções à Rússia). Mas isso, somado ao aumento do preço do barril de petróleo no exterior, pode puxar a alta da inflação este ano e retardar o crescimento econômico em 2022.
Mas os militares brasileiros não acreditam que a relação das Forças Armadas com outros países pode ser impactada em decorrência de pressões externas sobre o posicionamento de importantes aliados do Ocidente, a exemplo dos Estados Unidos e da União Europeia – com quem o Brasil tem boa relação comercial e militar.
"Não prejudica as relações militares. O Brasil tem relação bem consolidada com membros ocidentais, que são do Conselho de Segurança da ONU, a exemplo dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra. Isso não acaba de uma hora para a outra. E Rússia e China também não podem ser deixadas de lado pelo Brasil. Fazem parte dos Brics e isso nos afeta diretamente", diz uma fonte, citando o grupo de países que inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Já outro militar vislumbra uma janela de oportunidade que a guerra cria para as Forças Armadas. Embora o Brasil não seja um país com tradição de conflito armado, integrantes das Forças Armadas vislumbram no combate entre Rússia e Ucrânia uma oportunidade para investimentos e o reaparelhamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
"[A guerra] serve de lição. As Forças Armadas sempre deixaram clara a necessidade de reaparelhamento. O Brasil não pode cair nessa falácia de que guerra não existe e é do século passado. Está sendo provado que não pela situação russa. Óbvio que vivemos em uma região muito tranquila e menos sensível do que o leste europeu, mas isso não quer dizer que a gente pode afastar completamente toda e qualquer possibilidade de um conflito", pondera um militar.
"A hora que o bicho pega, muitas vezes ninguém vai lhe defender. Um país só conta com suas próprias forças. E só tem apoio retórico de outros países. Mas ninguém coloca tropas para apoiar, seja por qual motivo for, e um país fica refém de seu povo e suas próprias forças. O Brasil trabalha para que isso [a guerra] não aconteça. Mas o Brasil tem que abrir o olho, não pode ficar achando que não pode acontecer", complementa a fonte.
Os planos de mais investimentos das Forças Armadas existem, destaca o militar. Ele afirma, porém, que Exército, Marinha e Aeronáutica ficam reféns da vontade política para autorizar a destinação orçamentária para o reaparelhamento. "Cabe ao estamento político entender que as necessidades são reais e importantes para o país", conclui o oficial.
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