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A revelação, nesta quinta-feira (2), de um suposto plano para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e prender o ministro Alexandre de Moraes, deve complicar ainda mais a situação de Jair Bolsonaro no campo criminal. Nos bastidores, colegas de Moraes no Supremo Tribunal Federal (STF) dão como certo que ele vai fechar o cerco sobre o ex-presidente na investigação sobre a possível participação de autoridades, na forma de conivência ou incentivo, nos ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro.
Alguns deles já cogitam a possibilidade de busca e apreensão em endereços de Bolsonaro, uma vez que ele já é investigado pela suspeita de ser autor intelectual da manifestação que resultou na invasão e depredação dos edifícios do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF. O objetivo seria verificar se de fato o ex-presidente deu aval e avançou com planos de anular a eleição. Numa hipótese mais extrema, também se cogita uma prisão preventiva, para que seja impedido de atrapalhar as investigações ou incitar novos atos de agressão às instituições.
Moraes tem dado repetidas declarações de que não irá adotar uma postura de “apaziguamento” em relação a todos os envolvidos em “atos antidemocráticos” que resultaram no vandalismo de 8 de janeiro. Nesta quarta, ao reabrir o ano judiciário como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro disse que “agentes públicos que se portaram dolosamente pactuando covardemente com a quebra da democracia, com a tentativa de golpe, com a depredação da sede dos três Poderes e a tentativa de instalação de estado de exceção, serão responsabilizados”.
O mesmo recado foi dado antes pela presidente do STF, Rosa Weber. “Uma vez erguida da justiça a clava forte sobre a violência cometida em oito de janeiro, os que a conceberam, os que a praticaram, os que a insuflaram e os que a financiaram serão responsabilizados com o rigor da lei nas diferentes esferas”, afirmou.
O plano para anular a eleição presidencial foi descrito pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES), em versões conflitantes. Inicialmente, em tom de desabafo para seus seguidores nas redes sociais, do Val falou, durante a madrugada numa transmissão ao vivo, de uma “tentativa do Bolsonaro de me coagir para que eu pudesse dar um golpe de Estado junto com ele. Só para você ter ideia. E é lógico que eu denunciei”, disse. Depois, anunciou que renunciaria ao mandato.
Em entrevista à revista Veja, o senador narrou com mais detalhes o suposto plano. Do Val disse que teria se reunido com Jair Bolsonaro no dia 9 de dezembro do ano passado, junto com o ex-deputado Daniel Silveira (PTB-RJ). Nesse encontro, teria sido apresentado ao senador a seguinte ideia: que ele marcasse uma conversa com Moraes, dada a proximidade que teriam; tentasse induzir o ministro a admitir uma atuação fora da Constituição para que Bolsonaro fosse derrotado nas eleições; e gravasse toda a conversa.
“Com essa gravação, o presidente iria derrubar a eleição, dizer que ela foi fraudada, prender o Alexandre de Moraes, impedir a posse do Lula e seguir presidente da República. Fiquei muito assustado com o que ouvi”, disse do Val na entrevista à Veja. “O Daniel disse que eu ia salvar o Brasil e o presidente repetiu. O Daniel estava lá instigando e o presidente comprou a ideia”, acrescentou o senador em seguida.
No fim da manhã, numa entrevista a jornalistas no Senado, ele mudou a versão: negou ter sido coagido por Bolsonaro, que apenas teria ouvido Silveira apresentar o plano, sem avalizá-lo explicitamente. “O presidente estava numa posição semelhante à minha, escutando uma ideia esdrúxula do Daniel Silveira. Não, ele [Bolsonaro] não falou: ‘Olha, pô, senador, pensa’. Não, não falou nada disso. Por isso quando saiu na imprensa que ele me coagiu, isso não confere. Não impediu o Daniel [de falar], mas estava claro que era o Daniel desesperado”, narrou.
Do Val disse que Silveira estava desesperado porque estaria tentando encontrar uma forma de não ser preso por Moraes, por descumprir suas ordens. “Ele estava num movimento de manipular e ter o presidente comprando a ideia dele [...] A proposta não partiu dele [Bolsonaro], partiu do Daniel, que estava conduzindo a reunião”, afirmou.
“O meu entendimento ficou claro do tipo: ‘presidente, se eu conseguir um senador para gravar, você topa?’ Como se fosse isso. Não foi dito isso, mas deu para entender que seria isso. Se eu falasse ‘eu topo’, possivelmente o presidente poderia dizer ‘ah então, vamos pensar nisso’. Mas ele estava tentando convencer eu e ele dessa possibilidade”, completou do Val.
Ele ainda relatou que, inicialmente, recusou a proposta por considerar que seria ilegal gravar uma conversa com Moraes. Silveira teria lhe dito que a gravação “iria ser legalizada”. O senador então teria dito a ele e ao presidente, na reunião, que iria pensar. Após a reunião, ele teria contado tudo a Moraes, que, segundo ele, teria ficado surpreso com o plano.
No fim da tarde desta quinta, por ordem de Moraes, Marcos do Val prestou depoimento à Polícia Federal por quatro horas para esclarecer o caso. À PF, ele voltou a se contradizer, isentando Bolsonaro de qualquer culpa pelo que foi falado na reunião. Antes do depoimento, disse que estava à disposição, inclusive para mostrar as mensagens de Silveira o questionando se aceitaria a “missão”, recusada na semana seguinte à reunião.
Na manhã desta quinta, Daniel Silveira foi preso por determinação de Moraes, justamente por descumprir ordens do ministro, por frustrar o monitoramento, com danos à tornozeleira eletrônica, e conceder entrevistas a veículos de comunicação, com críticas ao STF.
Questionado por qual motivo mudou sua versão sobre a reunião, Marcos do Val disse que, no vídeo para seguidores, estava com “raiva” por ter sido chamado de “traidor” por bolsonaristas nas redes sociais – ele estava sendo criticado por ter abraçado e cumprimentado o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) por sua reeleição para o cargo, sendo que havia declarado voto e feito campanha para o senador Rogério Marinho (PL-RN), aliado de Bolsonaro.
Do Val, que havia anunciado que renunciaria ao mandato de senador, depois voltou atrás e afirmou, na entrevista a jornalistas, que permaneceria no cargo. Disse que recebeu ligações de vários colegas – inclusive do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente – para que desistisse de ideia.
Por que a situação de Bolsonaro pode se complicar no STF
Apesar do recuo de Marcos do Val em comprometer Bolsonaro, a situação do ex-presidente pode se complicar porque Moraes decidiu incluir o caso no inquérito que apura a possível contribuição de autoridades para os atos de vandalismo contra as sedes dos Três Poderes, no dia 8. Ao autorizar a tomada de depoimento do senador, o ministro mencionou que ele teria recebido uma “proposta com objetivo de ruptura do Estado Democrático de Direito”.
Trata-se, segundo o ministro do STF, de “circunstância que deve ser esclarecida no contexto mais amplo desta investigação, notadamente no que diz respeito a eventual intenção golpista”.
Moraes considera que a invasão e a depredação do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF configuram os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, que consiste em “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”; e o de golpe de Estado, que é “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. A mera tentativa dos invasores, ainda que frustrada, de depor Lula, controlar o Parlamento e a Suprema Corte já caracterizam os crimes, cujas penas, somadas, chegam a 20 anos de prisão.
Bolsonaro já é alvo de Moraes no STF dentro da investigação sobre supostos autores intelectuais ou instigadores do ataque contra os poderes. A revelação de um suposto plano para anular a eleição de Lula, sob alegação de uma atuação parcial de Moraes na presidência do TSE, condiz com o objetivo declarado dos manifestantes do dia 8.
A isso se somam outros dois elementos que já fazem parte da investigação: a minuta de um decreto, apreendida na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, para que Bolsonaro decretasse estado de defesa no TSE, para questionar o resultado da eleição; bem como a declaração do presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, de que recebia várias propostas desse tipo, que segundo ele eram descartadas e sequer eram consideradas por Bolsonaro.
Esse conjunto pode revelar que efetivamente havia planos para um golpe de Estado no entorno do ex-presidente. Falta saber até que ponto ele teria contribuído ou mesmo avançado para a concretização de uma ruptura.
Para o advogado criminalista Davi Tangerino, doutor em Direito Penal pela USP e professor da UERJ, se a conversa efetivamente ocorreu, Bolsonaro já poderia ser acusado, no mínimo, de prevaricação, que é o crime de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, com pena de três meses a um ano de detenção – punição pequena, que não leva ao regime fechado.
“Ele não poderia ter participado de uma reunião dessa e não ter denunciado. Ainda que incautamente tenha participado dessa reunião, quando esse assunto começa a aparecer, ele tem que ir embora e acionar as autoridades”, diz o advogado.
Quanto aos crimes de abolição do Estado Democrático e golpe, Tangerino observa que esses tipos penais punem a mera tentativa de praticar tais atos, não necessariamente sua consumação. Assim, para acusar Bolsonaro, seria necessário provar que ele teria, de alguma maneira, iniciado e colaborado para execução do plano de impedir a posse de Lula, ainda que isso não se concretizasse.
“Se era apenas uma ideia golpista, que foi abortada na própria reunião, então acho que não temos esses crimes. Agora, se a reunião termina e se decide colocar isso em prática, e isso não acontece por uma circunstância fora da vontade deles – ainda precisamos saber –, aí começa a ter a possibilidade de aplicar os artigos 359-M ou 359-L”, explica o professor e advogado, em referência aos tipos penais do golpe de Estado e da abolição do Estado Democrático de Direito.
“O crime só é punível quando o bem jurídico tutelado foi pelo menos exposto a perigo. Quer dizer: o Estado Democrático de Direito passaria a estar em perigo se o Marcos do Val topasse e colocasse em curso este plano. Como já é um crime de tentativa, então é punir como se consumado fosse o crime tentado. Já estaria caracterizado o crime. Mas só uma ideia, e ela nunca vira uma decisão e uma execução – o Marcos do Val enrola, enrola, enrola e não leva adiante –, eu entendo que é só um ato preparatório, uma cogitação, não tem crime”, diz ele.
Pelo lado de Bolsonaro, já se ensaia a linha de defesa de que ele nunca contribuiu para a formulação e execução desses planos. Foi o que disse, nesta quinta o senador Flávio Bolsonaro. “Ele [Marcos do Val] já havia me relatado o que tinha acontecido, que seria trazido a público, contudo numa linha de que essa reunião, que aconteceu, seria uma tentativa de um parlamentar de demover as pessoas que estavam nessa reunião de fazer algo absolutamente inaceitável, absurdo e ilegal”, disse, no plenário do Senado, pela manhã.
“Nunca houve qualquer tentativa de golpe. O presidente Jair Bolsonaro é um defensor da lei e da ordem e sempre jogou dentro das quatro linhas da Constituição. Seu mandato presidencial se pautou pelo estrito respeito à legislação e às instituições, mesmo quando setores da mídia tentaram induzir o público a uma imagem diferente. Tanto não houve qualquer tentativa de golpe ou crime, que o presidente Bolsonaro deixou a presidência em 31 de dezembro”, afirmou o filho do presidente, em nota divulgada à tarde.
Efeitos políticos do caso
No campo político, as revelações de Marcos do Val reforçaram ainda mais a pecha de golpista colocada sobre Bolsonaro pelo governo e pela esquerda em geral. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder do governo no Congresso, disse que o relato de Marcos do Val é “muito grave” e “traz os elementos que faltam para pedir o indiciamento do ex-presidente da República por atentar contra o Estado”. “Tudo precisa ser esclarecido! E os autores dessa conspiração criminosa devem ser responsabilizados”, postou nas redes sociais.
No plenário do Senado, em meio à forte repercussão do caso, o senador Humberto Costa (PT-PE), fez coro à pressão para investigar o relato a fundo. “Há indícios extremamente fortes de que a tentativa de golpe, que se compunha de uma série de ações, sem dúvida, entre elas, a invasão das sedes dos três Poderes que aconteceu aqui, no dia 8 de janeiro. Nós temos aí indícios muito fortes da participação direta do Presidente da República”, disse.
A mudança de versão de Marcos do Val, no fim da manhã, isentando Bolsonaro, trouxe desconfiança no meio político sobre suas intenções. As novas declarações ocorreram depois que ele recebeu ligações de Flávio Bolsonaro pedindo que não renunciasse ao mandato. Na véspera, o senador cogitava migrar para o PL, partido de Bolsonaro.
Nesta quinta, ao ser questionado sobre o motivo pelo qual quis revelar o caso só agora, afirmou que a reunião de sua conversa com Bolsonaro e Silveira seria revelada nesta sexta (3), pela revista Veja. Disse que resolveu se adiantar e contar o caso para não perder sua credibilidade e sua honra, insinuando que a reportagem poderia o envolver na trama golpista.
O senador ainda disse que vem tentando convencer o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a abrir a CPI dos Atos Antidemocráticos. Desde o dia 8, ele afirma ter documentos que apontariam para uma conivência do ministro da Justiça, Flávio Dino, com as invasões aos edifícios-sede dos Três Poderes. Nesta quinta, questionado durante uma entrevista à GloboNews sobre o motivo de revelar o caso de Silveira e Bolsonaro só agora, respondeu: “Daqui a pouco eu vou fazer um movimento que eu vou chegar no Lula, e as pessoas não vão entender. 'Pô, semana passada ele estava chegando no Bolsonaro, agora tá falando do Lula?' Porque eu vou chegar nele.”