“Uma vez, um juiz julgou quem havia escrito a lei. Primeiro mudaram o juiz. Logo em seguida, a lei”. O verso, escrito em 1973 pelo popular cantor italiano Fabrizio De André, parece resumir o que aconteceu vinte anos depois, durante a fase final da Mãos Limpas (Mani Pulite), a operação contra a corrupção que abalou a Itália no começo da década de 90 e que no Brasil inspirou a Lava Jato.
Pressionada e acuada, a força-tarefa do Ministério Público de Milão, que ao longo de dois anos e dez meses - de fevereiro de 1992 a dezembro de 1994 – havia investigado e condenado o mais alto escalão da política e do empresariado, foi desmembrada. Nos meses e anos seguintes, governo e parlamento italiano promoveram um verdadeiro movimento de restauração, aprovando leis para proteger a classe política e tornando as investigações da magistratura mais difíceis.
A operação levou ao fim dos partidos tradicionais (o centrista Democracia Cristã e o Partido Socialista foram os mais atingidos), que haviam governado o país desde o pós-guerra e abriu o caminho para figuras externas à política. Silvio Berlusconi foi o que mais se beneficiou pelo vácuo político: em janeiro de 1994, o empresário e magnata das televisões cria um partido, em março ganha as eleições e se torna primeiro ministro.
Operação amordaçada: um paralelo com a Lava Jato
O paralelo com a Lava Jato é evidente. A operação, iniciada em 2014 pelo Ministério Público Federal do Paraná, revelou o conluio entre os políticos e as maiores empreiteiras do país, todos os ex-presidentes vivos foram presos ou investigados, e os partidos que dominaram a cena desde a redemocratização, como PSDB e PT, esfarelaram ou encolheram significativamente nas urnas. O vácuo foi preenchido por novos partidos, movimentos e candidatos que surfaram na onda da operação.
Até os dois homens símbolo das operações – Sergio Moro no Brasil e Antonio Di Pietro na Itália - tomaram caminhos parecidos: ambos trocaram a toga pela política, na palavra dos dois para prosseguir a luta contra a corrupção por outros meios. A renúncia de Di Pietro da força-tarefa de Milão, em dezembro de 1994, marcou o fim da operação. Após a saída de Moro da 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba, para assumir o ministério da Justiça e Segurança, a operação sofreu vários golpes.
Primeiro veio a decisão do Supremo Tribunal Federal de tirar as investigações sobre caixa dois da Justiça Federal e repassá-las à Justiça Eleitoral. Em junho, o site The Intercept Brasil começou a publicar supostas conversas entre membros da operação. Em sequência, o ministro do STF, Dias Toffoli, suspendeu todos os inquéritos em que houve compartilhamento de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o que levou o procurador Leonardo Cardoso de Freitas, da força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro, a afirmar que a operação passa pelo "seu momento mais grave". Os próprios procuradores do MPF de Curitiba já alertaram sobre o possível fim da Lava Jato.
Os ataques à força-tarefa e o fim da Mãos Limpas
Em 6 de dezembro de 1994, Antonio Di Pietro, o procurador que até então havia sido o símbolo da Mãos Limpas, ao término de uma audiência no Tribunal de Milão, tira a toga diante dos colegas e do público. O gesto inesperado, gravado pelas câmeras, declara, de fato, o fim da operação. “Saio de fininho e com a morte no coração”, disse o magistrado na época.
Antonio Di Pietro tira a toga no tribunal
O procurador se sentia acuado: nas semanas anteriores, enquanto Mãos Limpas investigava o primeiro ministro Silvio Berlusconi e suas empresas, o ministro da Justiça, Alfredo Biondi, enviou inspetores do ministério para apurar supostas irregularidades da força-tarefa. Não encontrariam nada.
Outro ministro do governo, Giuliano Ferrara, ameaçou denunciar a força-tarefa por atentado à Constituição. Mesmo improcedentes, as acusações contribuíram para o clima de deslegitimação da inteira operação. Ameaças mais graves ainda, de morte desta vez, foram enviadas a Di Pietro e seus familiares pelo grupo terrorista Falange Armata.
Acusações de corrupção passiva foram movidas contra o magistrado, mas acabaram em absolvições e arquivamentos. Ao mesmo tempo, dossiês anônimos e falsos, provavelmente fabricados por agentes do serviço secreto a mando de políticos de alto escalão, começaram a circular nos ambientes políticos e nas redações dos jornais: afirmavam que o procurador era, além de usuário de drogas, um agente secreto do FBI.
No verão de 1992, logo após os homicídios dos juízes anti-máfia Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, que haviam levado à condenação de centenas de membros de Cosa Nostra, Di Pietro também entrou na mira da máfia siciliana. Para escapar de um eventual atentado, o procurador e a esposa deixaram a Itália usando um nome falso e encontraram abrigo temporário na Costa Rica.
A restauração após a revolução
O clima que no início que havia sido amplamente favorável a Mãos Limpas entre a população, grande parte da mídia e os partidos da oposição, aos poucos foi arrefecendo. Tevês e jornais do grupo Berlusconi, que no começo apoiavam abertamente a operação, mudaram a postura quando empresas e pessoas ligadas ao magnata entraram na mira dos juízes.
Após o primeiro ano de investigação, embora enfraquecida, a política tentou se reorganizar promovendo leis para dificultar as investigações, tornar mais brandas as penas para os crimes dos colarinhos-brancos e evitar o fortalecimento do sistema judiciário.
“Centro-direita e centro-esquerda sempre se esforçaram não para combater a corrupção, mas para combater as investigações sobre a corrupção. Com uma diferença fundamental: a centro-direita o fez de maneira grosseira e mal que geralmente não funcionou. Pelo contrário, o centro-esquerda deu tiros certeiros. Não digo que estamos ajoelhados [como magistrados], mas um pouco genuflexos sim”, avalia o ex-procurador da Mãos Limpas, Piercamillo Davigo.
A onda de suicídios entre presos e investigados – 31 pessoas se mataram entre 1992 e 1994 – chocou a opinião pública e também contribuiu para levantar críticas à atuação dos procuradores, sobretudo em relação ao emprego maciço de prisões cautelares.
Segundo Francesco Saverio Borrelli, um dos procuradores da operação, falecido no dia 20 de julho aos 89 anos, os magistrados tiveram apoio quando atingiram grandes nomes da política, “mas quando fomos além, ficou claro que a corrupção não envolvia só a política, mas amplas faixas da população”. Na opinião do juiz, chegou uma hora em que o cidadão médio, que vive de expedientes, amizades, indicações e pequenos subornos no dia a dia, começou a ter a sensação que “os moralistas” da Mãos Limpas queriam atingir a inteira sociedade. “As pessoas começaram a dizer: ‘agora chega, fizeram o trabalho de vocês, nos libertaram da velha classe política que sugava nosso sangue, mas agora nos deixem viver em paz...’”.
A corrupção após Mãos Limpas
Quase 30 anos após o fim da Mãos Limpas, a pergunta continua atual: a política italiana é hoje mais ou menos corrupta? Difícil, quase impossível, ter dados confiáveis sobre o fenômeno. A organização Transparência Internacional coloca a Itália em 53º lugar no ranking mundial em 2019; em 2014 estava na 70ª posição – quanto mais perto da primeira posição, menos corrupto é considerado o país.
“Depois de Mãos Limpas os corruptos venceram. Melhoramos a espécie predada: prendemos as zebras lentas, enquanto as outras se tornaram mais rápidas”, avalia Davigo. Segundo o magistrado, “os políticos não pararam de roubar, só pararam de ter vergonha [de roubar]”.
Di Pietro concorda com a análise e em entrevista à Gazeta do Povo disse que "a corrupção continua porque o sistema dos colarinhos brancos se “engenheirizou” e os delitos são cometidos com maior inteligência criminal". Seu colega na força-tarefa, Gherardo Colombo, observou uma transformação no fenômeno: “Na época a corrupção era muito ligada ao caixa dois dos partidos. Ora, parece que não, parece um fenômeno mais anárquico” com “uma ligação maior com interesses pessoais e não dos partidos”.
Segundo o magistrado Raffaele Cantone, presidente da Autoridade Anti-corrupção da Itália, a repressão piorou depois Mãos Limpas e hoje a corrupção virou um instrumento muito usado pelo crime organizado, que antigamente preferia a intimidação: “Se você ameaça um servidor público, ele de alguma forma vira seu inimigo; vice-versa, se você compra ele, se você traz ele para o seu lado, será muito mais simples ativar um percurso corruptivo”.
Que fim levaram os procuradores da Mãos Limpas?
Apesar de vários procuradores de Milão terem integrado à força-tarefa da Mãos Limpas, três foram os juízes que atuaram com maior intensidade e viraram o símbolo da operação.
Antonio Di Pietro
Foi o único procurador a ingressar na política. Após deixar a toga no final de 1994, Di Pietro respondeu a processos de corrupção passiva, que terminaram em absolvições. Em 1996, foi nomeado ministro das Obras Públicas do governo de centro-esquerda de Romano Prodi, mas após seis meses teve que deixar o cargo por novas acusações de corrupção, que novamente não deram em nada.
Em 1997 foi eleito senador na coalizão de centro-esquerda e em 1998 fundou seu próprio partido, a Itália dos Valores. A legenda, com uma agenda focada fortemente na legalidade, se tornaria uma das formações políticas de maior oposição aos governos de Silvio Berlusconi. Liderou o partido até outubro de 2014. Hoje é advogado.
Piercamillo Davigo
Após Mãos Limpas continuou a carreira de magistrado em várias cortes de Apelação. Em 2016 é eleito presidente da Associação Nacional Magistrados por um ano e se torna presidente da 2ª Vara penal da Corte Suprema de Cassazione, órgão parecido com o STF. Em 2018, é eleito membro do Conselho Superior da Magistratura, o órgão de auto-controle da magistratura.
Gherardo Colombo
Investigado por sua atuação como procurador da Mãos Limpas, foi absolvido em todos os processos. Em 2007 abandonou a magistratura e cria a associação “Sobre as regras” para educar à legalidade as novas gerações. Hoje roda a Itália para realizar encontros que somados reúnem 250 mil estudantes anualmente. Por essa iniciativa recebeu o prêmio “Cultura da Paz” em 2018.
Raio-X da Operação Mãos Limpas
- 25.400 citações
- 4.525 prisões
- 1.069 políticos investigados
- 1.300 entre condenações e acordos judiciais
- 430 absolvições
- 31 suicídios
- 5 bilhões de euros: custo anual da corrupção na época