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O alinhamento ideológico dos governos de Brasil e Estados Unidos ajudou a fortalecer os laços comerciais e políticos entre os países nos últimos dois anos. A parceria foi articulada pelo trabalho do Ministério das Relações Exteriores e de membros do governo que têm afinidade com diplomatas e políticos conservadores dos EUA. Se Donald Trump não for reeleito e essa afinidade diminuir, o Itamaraty corre o risco de sofrer uma reformulação?
Na opinião de Márcio Coimbra – coordenador de pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais do Mackenzie e um dos responsáveis diretos pela articulação entre os governos Bolsonaro e Trump no início de 2019 –, a eleição de Joe Biden, candidato dos democratas, iria impor menos desafios para o Itamaraty do que pode parecer à primeira vista.
Coimbra foi diretor da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) nos primeiros meses do governo Bolsonaro. Nesse tempo, trabalhou pela aproximação entre autoridades brasileiras e americanas. Segundo ele, Biden deverá “aproveitar as portas abertas pela presidência do Trump de forma estratégica” caso vença as eleições.
“Para eles, não é inteligente queimar os canais que já foram abertos”, afirma. "Não é só porque houve uma troca de comando dentro da Casa Branca que eles vão abrir mão do apoio do Brasil. Os democratas vão aproveitar essa ponte que foi construída no Brasil”, garante.
Itamaraty ser pró-EUA é visto com bons olhos por democratas
Durante anos, Coimbra trabalhou no centro de operações do partido republicano em Washington. Ele diz que, “internamente, os partidos conversam muito”, e que a existência de um chanceler pró-EUA como Ernesto Araújo é vista como positiva não só entre os republicanos, mas também entre os democratas.
“Quem é que você vai colocar como chanceler que seja mais alinhado com os Estados Unidos? Dificilmente você vai encontrar um chanceler que tenha essa mesma posição. A chance de troca do ministro por causa de uma eventual vitória do Biden não faz o menor sentido. Os democratas querem aproveitar o fato de que existe um chanceler aqui que tem um diálogo profícuo com Washington”, afirma Coimbra.
Segundo ele, embora os democratas tenham outro tipo de agenda ideológica, o pragmatismo americano tende a favorecer a composição atual do Itamaraty – inclusive em temas mais polêmicos, como a questão ambiental.
“A gente precisa lembrar que a agenda ambiental precisa estar submetida à lógica econômica dos Estados Unidos”, diz Coimbra. “Se essas restrições ambientais não encontrarem eco, por exemplo, na sustentação da economia americana, eles não vão forçar essa agenda ambiental para cima do Brasil. Especialmente sabendo que, numa reação do governo brasileiro a esse tema, eles podem perder, inclusive, a situação de diálogo privilegiado que têm com o Brasil.”
China, Rússia e esquerda latino-americana podem ser cruciais
Embora não sejam tão avessos à atuação internacional da China como o presidente Donald Trump, os democratas não são necessariamente simpáticos aos chineses. Segundo Coimbra, em relação ao 5G chinês, por exemplo, os democratas não têm uma postura tão diferente da dos republicanos. E o Brasil continuará sendo pressionado a não adotar o padrão chinês para essa tecnologia.
“Eles vão continuar fazendo a mesma política em relação ao 5G. Eles não querem que a China entre com o 5G aqui no Brasil. Defendem inclusive o modelo híbrido, desenvolvido pelos japoneses”, explica.
A Rússia é outro país do Brics que pode acabar sendo determinante, em caso de vitória de Joe Biden, na relação entre Brasil e EUA. Para os democratas, a aliança com o Brasil poderá servir para pressionar indiretamente os russos. “O Brasil é estratégico para os democratas por conta do relacionamento que tem com a Rússia dentro do Brics. Os democratas têm dois pés atrás com a Rússia, e gostariam muito que o Brasil, usando os foros do Brics, conseguisse fazer pressão contra a Rússia”, diz o especialista.
Outro motivo para os americanos manterem uma boa relação com o Brasil, mesmo em caso de divergências ideológicas, é a presença de governos antiamericanos na América Latina, como Venezuela, Bolívia e Argentina. A grande influência que um Itamaraty pró-EUA pode exercer sobre esses países é importante para os democratas, independente do grau de alinhamento ideológico com o governo Bolsonaro. “Não é inteligente, e eles sabem disso, abrirem mão da relação estratégica que eles têm com o Brasil”, afirma Coimbra.