Diante da divergência de opiniões entre Câmara e Senado em torno da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 09/2023) que perdoa os partidos políticos por descumprirem a legislação eleitoral e regras de cotas para negros e mulheres na política, o texto foi ajustado nesta semana pelos paralamentares para não caracterizar uma espécie de auto-anistia. Mas na prática a proposta é que as multas resultantes do descumprimenro da legislação sejam pagas com um prazo a perder de vista.
O "ajuste" foi feito após o surgimento de críticas da opinião pública e como resultado da falta de consenso entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sobre o ritmo de tramitação da PEC. Ele foi solicitado pelos líderes dos partidos na Câmara e institui uma espécie de "Refis" )Programa de Recuperação Fiscal), que permite refinanciar dívidas com prazos longos.
Segundo o cientista político Adriano Cerqueira, professor do IBMEC de Belo Horizonte, o novo parecer do relator, deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP), foi ajustado para não "pegar tão mal", principalmente diante da opinião pública, considerando que o valor perdoado pode alcançar R$ 23 bilhões em gastos ainda não analisados pela justiça eleitoral, segundo estimativas da Transparência Brasil, entidade que monitora o poder público.
Na visão do especialista, ao modificar um texto polêmico para a sociedade em geral, mas com amplo apoio da classe política (parlamentares do PL ao PT defendem a proposta), o relator tenta suavizar a imagem de que os políticos estão tentando aliviar seus próprios ônus ao admitir o perdão de dívidas por flagrante desrespeito à lei, uma realidade bem diferente da enfrentada pelo cidadão comum, que, ao cometer erros, precisa arcar com as consequências.
"É claro que os partidos vão tentar tudo para não pagar ou minimizar ao máximo o impacto financeiro dessas multas, mas isso não é um tema muito popular, por isso houve esse recuo", analisa o professor do IBMEC.
A polêmica em torno da PEC da Anistia aos partidos políticos ganhou destaque em maio de 2023, quando o texto teve sua admissibilidade aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, com defensores do perdão das dívidas expressando apoio, incluindo a presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffman.
Na época, a deputada se mostrou favorável a uma maior representatividade de negros e mulheres nos partidos, mas sugeriu que isso fosse abordado em uma fase posterior da tramitação do texto, o que não ocorreu quando a PEC foi analisada por uma comissão especial.
As vozes discordantes do texto encontram eco apenas no Psol e no Novo, que criticam a anistia. No início da semana, o deputado Chico Alencar (Psol-RJ) manifestou preocupação com a possibilidade de votação da PEC pelo plenário da Câmara, quando o texto foi incluído na pauta na última terça-feira (18), sendo retirado no dia seguinte.
Lira queria votar texto antes da eleição e Pacheco desejava mais discussões
Na Câmara, o texto que perdoa as dívidas dos partidos políticos passou por uma comissão especial sem a votação do relatório final, o que permitiu a Arthur Lira manobrar para levá-lo diretamente ao plenário.
De acordo com o regimento interno da Câmara, comissões especiais destinadas a alterar a Constituição Federal têm até 40 sessões do plenário para aprovar um parecer. Se a análise não ocorrer nesse período, o presidente da Câmara pode submeter a proposta diretamente à votação no plenário.
Alguns deputados afirmaram, em caráter reservado, que Arthur Lira desejava discutir o texto antes das eleições municipais de outubro, enquanto Rodrigo Pacheco, numa postura semelhante a de sua recusa em analisar alterações na minirreforma eleitoral enviada pela Câmara ao Senado no ano passado, indicou que o Senado não apressaria a tramitação e seguiria os procedimentos normais se a PEC chegasse à Casa.
Assim como a minirreforma, o Senado também está considerando uma ampla reforma do Código Eleitoral, sem data definida para conclusão.
Novo parecer sobre anistia permite o parcelamento de multas por até 15 anos
O novo texto, elaborado às pressas pelo relator após críticas à anistia de multas para partidos que não cumpriram as cotas mínimas para recursos ou que não destinaram os valores mínimos por gênero e raça em eleições, bem como nas prestações de contas anuais e eleitorais, institui um Programa de Recuperação Fiscal (Refis) específico para partidos políticos, seus institutos ou fundações.
Segundo a justificativa do relator, o programa busca facilitar a regularização de débitos tributários e não tributários das legendas, excluindo juros e multas acumulados e permitindo o pagamento dos valores originários com correção monetária em até 180 meses, ou seja, 15 anos.
"Esta medida é essencial para garantir a continuidade das atividades dessas entidades, promovendo a justiça fiscal sem comprometer a viabilidade financeira dos partidos", assegura o deputado Antônio Carlos Rodrigues no texto do novo parecer.
Partidos poderão utilizar Fundo Partidário para pagar multas
O texto também permite que os partidos usem recursos do Fundo Partidário para parcelar as multas sofridas. O parecer defendido pelos parlamentares diz que isso é vital para a viabilidade financeira dos partidos, pois frequentemente os valores aplicados em penalidades impostas pela justiça eleitoral se tornam "impagáveis".
O parecer também menciona as dificuldades operacionais enfrentadas pelos diretórios políticos para se adaptarem e cumprirem a regra que determina a destinação de recursos para candidaturas femininas e de negros, destacando que decisões judiciais sobre esse tema elaboradas próximas aos pleitos têm causado severos prejuízos.
Além disso, o texto da PEC 09/2023 diz que ela visa garantir a inclusão e representatividade, "bem como estabelecer parâmetros claros e equitativos para a regularização de débitos partidários. As alterações propostas visam assegurar a obrigatoriedade de destinação de recursos financeiros a candidaturas de pessoas pretas e pardas, um passo fundamental para corrigir desigualdades históricas e promover uma democracia mais justa e representativa e, por fim, assegurar a sustentabilidade financeira e operacional dos partidos, fundamentais para o exercício da democracia".
Uma das 91 mulheres eleitas em 2022 para a Câmara Federal, a líder do Novo, Adriana Ventura, de São Paulo, não economiza críticas ao texto que pretende "perdoar" os partidos políticos.
"A PEC propõe uma ampla anistia aos partidos que descumpriram as cotas de gênero e raça (uma imposição do TSE para algo que não tinha previsão legal) nas últimas eleições. Os partidos não precisarão devolver recursos dos fundos eleitoral e partidário que deveriam ter sido aplicados em candidaturas cotistas", pontua.
A deputada também destaca a falta de punições pelo descumprimento da legislação, como aplicação de penas de perda de mandato ou inelegibilidade. Além disso, Adriana Ventura lembra que a PEC anistia dívidas previdenciárias e tributárias das legendas.
O parecer também estabelece parâmetros para a apuração dos percentuais de cotas a serem cumpridos, instâncias partidárias responsáveis pelo cumprimento e prazos para efetivação e quem deverá averiguar a regularidade. Também é sugerido o cancelamento de sanções aplicadas a processos em curso que não consideraram a imunidade tributária dos partidos, especialmente em casos em que a ação de execução ultrapassa o prazo de cinco anos.
PEC regula cotas de fundo partidário para mulheres e negros
Conforme prevê o parecer do deputado Antônio Carlos Rodrigues, a cota mínima de 20% dos fundos Partidário e Eleitoral deve ser aplicada segundo critérios específicos: 75% desse valor deve ser destinado a candidaturas de mulheres e de pessoas negras e pardas até 20 dias antes do primeiro turno, e 25% até cinco dias antes do segundo turno, quando aplicável.
Os percentuais e os valores correspondentes a serem obrigatoriamente destinados a cotas de gênero e raça devem ser definidos e divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral até cinco dias após o prazo final de entrega dos requerimentos de registro das candidaturas pelos partidos e federações, sendo publicados em sua página da internet, conforme estipula a PEC da Anistia.
O texto também especifica que alterações jurídicas que possam ocorrer durante as eleições não poderão alterar os percentuais mínimos de recursos aplicados em candidaturas de mulheres, pessoas negras ou pardas.
O parecer estipula ainda que os valores mínimos dos Fundos de Campanha e Fundo Partidário para garantir políticas afirmativas às minorias só terão obrigação de serem cumpridos se definidos por lei aprovada pelo Congresso Nacional.
Anistia "é vista com muita negatividade" pelo Congresso, afirmam especialistas
Apesar de a chamada anistia beneficiar todos os partidos, desde os maiores até os menores, esclarece o professor Waldir Pucci, da Universidade de Brasília, o momento para discutir um assunto que não é bem visto pela população em geral não foi adequado, o que tem causado um grande desgaste para a imagem do Congresso Nacional.
"O problema é como essa pauta é vista pelo eleitorado. Essa repercussão negativa é muito ruim". Mesmo com a resistência do presidente do Senado em tratar da anistia como deseja a Câmara, de maneira mais acelerada, o professor de ciências políticas acredita que será difícil para o presidente do Senado resistir às pressões dos partidos que apoiam a proposta.
Para a especialista em direito eleitoral Izabelle Paes Omena de Oliveira Lima, mais do que a questão financeira, que isenta os partidos de multas, o impacto significativo da anistia é enfraquecer as políticas afirmativas para promoção de candidaturas de grupos minoritários.
"Apesar da importante iniciativa legislativa de destinar uma parte dos recursos públicos para aumentar a participação desses grupos nas casas legislativas, os partidos políticos têm sistematicamente deixado de cumprir essa obrigação, adiando-a para exercícios futuros", diz a advogada.
Assim, destaca a advogada, as políticas afirmativas podem perder completamente seu efeito se a anistia aos partidos for aprovada pelo Congresso.
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