Em 1562, dois vereadores de Salvador, Gaspar de Barros Magalhães e Sebastião Álvares, acusaram o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, de tomar para si os lucros da venda de produtos brasileiros. Em um período relativamente curto, como escreve Adriana Romeiro, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no livro Corrupção e poder no Brasil, Mem de Sá “conseguiu acumular um patrimônio considerável, do qual faziam parte engenhos — um dos quais, o engenho de Sergipe do Conde, era o maior e mais importante da época — e um rebanho de 500 cabeças de gado na Bahia”.
Em 1604, outro governador-geral, Diogo Botelho, se viu afastado para que os investigadores de Lisboa pudessem apurar, nas palavras de Romeiro, “denúncias de venda de cargos e ofícios; apropriação dos salários dos oficiais; confisco ilegal de vinho para vendê-lo a preços extorsivos; apropriação da renda dos defuntos para a compra de escravos; compra de escravos por preços irrisórios”.
Em 1702, o governador de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, Álvaro da Silveira, foi acusado de tomar para si embarcações de escravos. Comprava negros a preços baixos para depois revender, por preços extorsivos, aos moradores pelos quais ele deveria zelar.
Em Santos, em 1772, o governador João da Costa Ferreira de Brito, foi acusado de superfaturar a carne vendida na região e de tomar para si parte da mercadoria de um navio francês detido nos arredores. Distraiu o fiscal em sua casa enquanto guardas pilhavam a embarcação.
Esses são apenas alguns exemplos de casos de corrupção de colonizadores portugueses instalados em terras brasileiras. Eles são inúmeros, e bem documentados, dado que qualquer cidadão podia escrever à corte em Lisboa, apresentando denúncias e solicitando investigações.
Havia exceções, ainda que raras: o caso do governador do Rio de Janeiro, Pedro de Mello, que ocupou o cargo entre 1662 e 1666, chamou a atenção de João Falcão de Sousa, um dos mais experientes membros do Conselho Ultramarino, um órgão de gestão financeira e administrativa das colônias portuguesas.
“O conselheiro parecia surpreso com o fato de nada ter sido apurado contra o sindicado”, escreve Romeiro. “Porque, afinal, dizia ele, ‘quando de próximo não vem das partes ultramarinas mais que queixas dos povos contra os governadores, uns expulsados, e outros com devassas criminosas, é muito de louvar sair o dito Pedro de Mello’”.
Herança portuguesa?
Em geral, esses casos levam facilmente a uma conclusão: a corrupção brasileira seria resultado dos maus exemplos praticados pelos europeus na colônia. Mas, se o Brasil foi colonizado por portugueses entre os anos de 1500 e 1822, por que somos o 94º país na edição mais recente do ranking mundial de percepção da corrupção, enquanto Portugal está bem à frente, na 33ª colocação? O argumento de que a corrupção nacional é herança lusitana faz algum sentido? Ou teriam os portugueses aprendido a conter as práticas de má gestão, favorecimentos e desvios?
“Culpa-se, sobremaneira, nossa herança histórica deixada pelo mundo ibérico, que teria feito com que o Brasil não conhecesse o processo de racionalização típico do Ocidente e incorporasse, os valores e princípios do mundo protestante, ascético e voltado para uma ética dos deveres e do trabalho”, avalia o cientista político Fernando Filgueiras no artigo "A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social".
“Supõe-se que a tradição política brasileira não respeita a separação entre o público e o privado, não sendo, o caso brasileiro, um exemplo de Estado moderno legitimado por normas impessoais e racionais. O patrimonialismo é a mazela da construção da República, de maneira que ele não promoveria a separação entre os meios de administração e os funcionários e governantes, fazendo com que esses tenham acesso privilegiado para a exploração de suas posições e cargos”.
Vista grossa para corrupção
Em entrevista, a historiadora Adriana Romeiro avalia que, como país colonizador, Portugal não era mais adepto da corrupção do que outros. Mas havia, sim, uma diferença: “O que se pode afirmar, com certeza, é que, nos territórios portugueses, havia um menor número de mecanismos de controle. A tolerância da Coroa resultava não só da reduzida ineficiência das formas de controle, por causa da distância e da falta de pessoal, mas também da convicção de que era preciso permitir alguns desvios porque, do contrário, corria-se o risco de perder os domínios americanos”.
Em outras palavras, “ponderações de natureza política e estratégica tinham mais peso que as ponderações morais ou econômicas”. Ainda assim, “falar numa herança portuguesa me parece um equívoco”, diz ela, “porque não se trata de um conjunto de práticas e costumes que teria sido transplantado de Portugal para o Brasil”.
O mais correto, argumenta, “é refletir em que medida Portugal adotou uma postura mais tolerante em relação aos malfeitos praticados pelos governantes aqui no Brasil, e também como nós, brasileiros, forjamos uma moralidade duvidosa, ancorada na sobreposição do bem particular ao bem comum”.
Para a professora, a origem da corrupção está na maneira como os colonos enxergavam o território do Brasil, incluindo a máquina administrativa. “O Brasil era lugar de enriquecimento rápido, para onde iam os portugueses interessados em ganhar dinheiro; os cargos da administração eram disputados por homens que queriam extrair o máximo de ganho financeiro”.
Ou seja, práticas que não aconteciam em Portugal eram realizadas abertamente por portugueses no Brasil: é a famosa noção de que não existe pecado ao sul do Equador, ainda que, formalmente, a Coroa portuguesa previsse uma série de punições para os corruptos.
“Nossa sociedade é, sem dúvida, uma sociedade corrompida — pequenos episódios do nosso dia são bem reveladores a esse respeito, tanto quanto a nossa tolerância em relação a eles. A corrupção política é apenas um reflexo dessa corrupção mais profunda e que está entranhada entre nós há mais de 500 anos”.
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