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Se no âmbito clínico a pandemia do coronavírus é um desafio para médicos, infectologistas e demais profissionais da saúde, na esfera criminal a Covid-19 ressuscitou velhos esquemas de corrupção no Brasil, com modus operandi conhecidos há décadas. As contratações irregulares para combater o coronavírus, executadas por vários estados e municípios, chegam a pelo menos R$ 2,054 bilhões até o momento.
O montante usado de forma irregular foi calculado pela Gazeta do Povo a partir de dados das investigações da Polícia Federal (PF), da Controladoria Geral da União (CGU), e dos Ministérios Públicos Estadual e Federal.
Entre as principais ilegalidades, estão favorecimento ilícito de gestores, contratação de empresas sem capacidade técnica operacional para lidar com serviços de saúde, direcionamento de licitações, aplicação de dinheiro em empresas de fachada (ou sem sede). Também há a aquisição de equipamentos de proteção individual (EPI), respiradores e testes para a Covid-19 superfaturados ou com sobrepreço. Até uma loja de vinhos vendeu equipamentos para a pandemia.
Desde o dia 23 de abril, foram desencadeadas 56 operações em 190 dias – em média, uma a cada 3,4 dias – pela Polícia Federal ou pela CGU (ou pelos dois órgãos em conjunto) que miravam contratos irregulares.
Em seis meses de operações, a CGU aponta prejuízo aos cofres públicos que, neste momento, alcança R$ 101 milhões – o suficiente para bancar o Bolsa Família a aproximadamente 50 mil pessoas ou para construir 100 unidades básicas de saúde (UBS) pelo país.
O rombo, porém, é bem maior. O dispêndio parcial apontado pela CGU está relacionado a 19 das 38 operações deflagradas pelo órgão em parceria com a PF ou com outros órgãos.
Na lista das ações cujo prejuízo ainda está em fase de análise consta a Operação SOS, desencadeada em setembro e relacionada ao governador do Pará, Helder Barbalho (MDB). A operação investiga desvios no âmbito da contratação de organizações sociais de saúde (OSS) na gestão dos hospitais de campanha nos municípios de paraenses de Belém, Marabá, Santarém e Breves. Esse contrato das OSS no estado é da ordem de R$ 1,2 bilhão.
Até o momento, as operações feitas pela PF resultaram em 11 prisões preventivas, 120 prisões temporárias e na execução de 922 mandados de busca e apreensão. As operações desencadeadas para frear desvios de recursos destinados à pandemia já ocorreram no Distrito Federal e em 19 estados: Acre, Amazonas, Amapá, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Rio Grande do Sul, Sergipe, São Paulo, Tocantins e Santa Catarina.
Estado de calamidade despertou “sensação de liberdade”, diz CGU
O secretário adjunto de Combate à Corrupção da Controladoria Geral da União, Roberto Viégas, afirma que a decretação do estado de calamidade pública, em abril, pode ter despertado em alguns gestores “a sensação de liberdade e inexistência de fiscalização”. A partir do decreto, foi permitida a assinatura de contratos por meio de dispensa de licitação para compra de insumos médicos, independentemente do valor. Mas essa permissão é restrita a ações emergenciais para o combate à Covid-19.
“O modus operandi não difere daqueles que por vezes detectamos em nossos trabalhos corriqueiros de combate à corrupção”, diz Viégas. “Porém, nos casos específicos relacionados à Covid-19, percebe-se uma despreocupação de alguns gestores com a atuação dos órgãos de controle e fiscalização. Em vários casos analisados, sequer constam peças minimamente necessárias à instrução processual e, quando são apresentadas, verifica-se que se tratam de documentos elaborados apenas para dar aparência de legalidade às fraudes”, diz o secretário adjunto de Combate à Corrupção da CGU.
Em geral, as empresas investigadas têm alegado inexistência de superfaturamento ou sobrepreço. Elas declaram que, com a alta demanda pelos produtos, naturalmente os preços são maiores que os habituais praticados pelo mercado.
A CGU, porém, descarta essa tese. “A questão dos preços é abordada de forma subsidiária, quando fogem bastante da mediana. As investigações têm revelado prejuízos financeiros decorrentes de sobrepreços e superfaturamentos, que penalizam o atendimento de outras demandas, minando a possibilidade de aquisição de mais EPIs, testes, respiradores, etc.”, descreve Viégas.
O secretário adjunto ainda ressalta que “as fraudes apontadas nas investigações são extremamente prejudiciais à sociedade, já bastante afetada pelos efeitos da pandemia”. “O pagamento antecipado desprovido de garantias mínimas tem culminado na não entrega de materiais contratados bem como aquisições de baixa qualidade, que comprometem o serviço prestado”, pontua o secretário da CGU.
Governadores estão na mira das investigações da Covid-19
Até o momento, as investigações já atingiram quatro governadores e um senador, Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado com R$ 33,1 mil na cueca e com parte dos valores entre as nádegas. Estão na mira dos órgãos de controle os governadores afastados do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), e de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL). Além deles, também foram alvo da PF os governadores Wilson Lima (PSC), do Amazonas, e Helder Barbalho (MDB), do Pará. A Gazeta do Povo apurou que há pelo menos outros três governadores e outros dois parlamentares federais sob investigação.
As operações que miraram as autoridades mostram, na maior parte dos casos, uma suposta interferência política no processo de aquisição de bens e materiais de combate ao coronavírus. Isso quando o próprio político não atuaria diretamente para favorecer empresas envolvidas nos esquemas de corrupção. Chico Rodrigues, por exemplo, foi acusado pela PF de direcionar emendas parlamentares para favorecer empresas ligadas à ele.
Um caso exemplar envolve o governador do Amazonas. A gestão de Wilson Lima é acusada de ter utilizado uma loja de vinhos para burlar um processo licitatório na aquisição de respiradores para as unidades de saúde, em benefício de empresários ligados ao grupo político do atual governador.
“O que se denota na presente investigação policial é que o governo do Amazonas, na gestão de Wilson Miranda Lima, aproveitou-se da pandemia do Covid-19 e praticou subterfúgios para beneficiar empresários locais, os quais seriam responsáveis por financiar a compra de equipamentos hospitalares, recebendo, como retorno, lucros exorbitantes”, descreve a Polícia Federal no relatório técnico que pediu a prisão do governador. O pedido foi negado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Francisco Falcão. O governador do Amazonas nega envolvimento com irregularidades.
No Pará, Helder Barbalho, alvo de busca e apreensão, foi acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de “tratar diretamente” com empresários, sendo o suposto líder da organização criminosa, responsável por combinar preços e estipular lotes para cada uma das empresas beneficiadas no esquema. Barbalho também nega qualquer irregularidade na aquisição de itens para a Covid-19.