No fim de abril, quando o Brasil registrava perto de 60 mil casos e pouco mais de 4 mil mortes por Covid-19, o deputado federal Osmar Terra (MDB) – médico, ex-ministro da Cidadania e conselheiro informal do presidente Jair Bolsonaro [sem partido] sobre o assunto – defendia a chamada imunidade de rebanho como estratégia contra a pandemia, em detrimento de medidas como o isolamento social. Dois meses depois, quando o país supera um milhão de infectados e perto de 60 mil mortos, a distância para uma possível imunidade coletiva ainda é longa, apontam pesquisas e análise de médicos. Nas avaliações mais otimistas, dificilmente se atingiria esse estado antes do fim do ano.
ESTATÍSTICA: veja os números da Covid-19 no Brasil
A imunidade coletiva ou de rebanho ocorre quando um determinado número de pessoas dentro de uma comunidade já foi infectado e desenvolveu anticorpos (proteínas de defesa) para determinada doença. Com isso, a taxa de transmissão cai acentuadamente, evitando que se tenha uma epidemia.
Essa porcentagem de infecções, no entanto, ainda é uma incógnita para a Covid-19, que é uma doença nova e da qual se conhece pouco. Um estudo publicado pela revista Science na última semana indica que talvez ela possa ser alcançada antes do que a maioria dos especialistas projetava no início da pandemia. Matemáticos de duas universidades europeias – Universidade de Nottingham, da Inglaterra, e de Estocolmo, na Suécia – sustentam que se terá a imunidade coletiva ao Sars-Cov-2, vírus causador da Covid, quando 43% da população apresentar anticorpos. Em pesquisas anteriores, cientistas indicavam que o número mágico estaria entre 60% e 65% da população imunizada.
No novo modelo matemático os pesquisadores consideram que a imunidade exige menos pessoas infectadas porque a infecção, no caso da Covid, é feita naturalmente – ao contrário de outras doenças, em que você imuniza uma população com as vacinas. Isso faz diferença no índice, indica o estudo.
90 milhões de infectados
Apesar dessa nova perspectiva, ter 43% da população com anticorpos significaria, no Brasil, mais de 90 milhões de doentes. Um número muito distante dos atuais 1,3 milhão de infectados. Ainda que se considere a grande subnotificação no país – estima-se que o número real de pessoas que tenham contraído a Covid-19 seja entre seis e dez vezes superior ao oficial –, o país teria chegado a um décimo dos contágios necessários para imunizar toda a comunidade.
A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) tem coordenado uma pesquisa nacional para identificar, com testes rápidos, justamente o contingente da população que já foi exposta ao vírus. De acordo com os resultados mais recentes da Epicovid, relativos ao período entre os dias 4 e 7 de junho, as cidades têm, na média, 2,6% da população com anticorpos. A UFPel e seu parceiros (IBGE e USP, por exemplo) realizaram duas etapas com mais de 30 mil testagens em 133 cidades do país. Uma terceira está em andamento.
Com os números estratificados, Boa Vista (capital de Roraima) seria a cidade em que a imunidade de rebanho está mais próxima: são 25,4% dos testados com anticorpos. Belém (Pará) tinha 16,9%; Fortaleza (Ceará), 15,6%; Rio de Janeiro, 7,5% e São Paulo, 3%. Esses foram alguns dos locais mais afetados pela pandemia até aqui.
Apesar da distância para a imunidade coletiva, o número de infecções no Brasil avança com rapidez. Da primeira fase para a segunda da Epicovid, o aumento foi de 53%. A Espanha fez um estudo similar e observou alta de 4% entre as fases da pesquisa.
“Os modelos mais recentes [de estudos e pesquisas], publicados nas últimas semanas, mostram que 50% das pessoas teriam que ter entrado em contato com o novo coronavírus [para se ter imunidade de rebanho]. Em alguns centros, você tem dados de 20% de infecções, na região Norte do país, por exemplo. Estamos um pouco longe disso”, avalia Raquel Stucchi, doutora em infectologia, professora da Unicamp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia
Imunidade de rebanho vai demorar e depende de vacina
Após uma aposta ousada, o governo da Suécia admitiu neste mês que a imunidade coletiva está demorando mais do que os gestores públicos esperavam. O país nórdico optou por não estabelecer medidas mais intensas de restrição de circulação e funcionamento do comércio, como fizeram seus vizinhos Dinamarca e Noruega. O resultado foi ter se tornado o país com maior número de mortos pela Covid-19 na região: são mais de 5 mil; enquanto os vizinhos têm menos de 700.
E ainda pior: a pesquisa de uma empresa privada chamada Werlabs com 50 mil testes feitos na região de Estocolmo indicou que 14% das pessoas tinham anticorpos, indicando uma distância longa do país para a imunidade coletiva. Anders Tegnell, epidemiologista do governo sueco, disse a uma rádio do país há duas semanas que foi surpreendido com a lentidão das curvas de imunização.
Aqui no Brasil, médicos indicam que também haverá uma progressão lenta para que o contingente de imunizados possa garantir alguma segurança à comunidade. Para eles, só se alcançará a imunidade de rebanho com uma eventual vacina contra a Covid-19. O problema é que os estudos mais avançados – como o imunizante da Universidade de Oxford que vem sendo testado no Brasil – ainda não têm data oficial para sair do campo da pesquisa e chegar à população. Com sorte, a primeira vacina estará disponível no fim do ano.
“A imunidade coletiva parece ser importante, mas não se vislumbra que conseguiremos isso agora, nesse inverno. A vacina pode e deve ajudar bastante. O problema é que não sabemos nem da doença e nem da vacina, pois ela está em teste. Quanto tempo ela nos dará de proteção? Por quanto tempo poderemos ficar aliviados e relaxar as medidas de bloqueio de transmissão? Essas respostas a gente ainda não tem. Mas não me parece que será neste inverno que conseguiremos [tê-las]”, sustenta Stucchi, da Unicamp.
Outro profissional estima uma espera muito maior. “Não tem como atingir [a imunidade de rebanho] em pouco tempo, menos de dois ou três anos (...). A imunidade deve vir com o estudo da vacina. Quando ela estiver disponível para 7 bilhões de doses [população mundial], aí então estaríamos protegidos. Se deixar o vírus solto ele pode causar uma tragédia de proporções inimagináveis no Brasil”, defendeu o professor Unaí Tupinambás, do Departamento de Clínica Médica e integrante dos comitês de enfrentamento do coronavírus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em comunicado sobre o assunto.
Para a médica virologista e pesquisadora Adriana Cesáreo, é preciso, além disso, saber se, de fato, a imunização contra o Sars-Cov-2 funciona da mesma forma como com outros vírus. “Quando se trata de elementos novos, ainda não se tem um mapa completo de como ele ou o organismo agem. Estudos indicam que uma parte da população sequer produz anticorpos. Tem uma defesa inata, do próprio organismo. Da mesma forma, os estudos não concluíram quanto tempo dura essa resposta imune. Ou seja, ainda se sabe pouco sobre a possível imunidade coletiva”, indica.
Número de mortes pela Covid-19
Diante deste cenário, optar pela imunidade coletiva para combater a Covid-19 seria arriscado. Quanto mais pessoas infectadas, a tendência é de número mais elevado de mortos. A taxa mundial de letalidade da doença – considerada também no estudo da Universidade Federal de Pelotas – gira em torno de 1%. Significa dizer que 900 mil pessoas poderiam morrer em um universo de 90 milhões de infectados.
Mas não é uma conta simples. “Temos que considerar que 80% das pessoas vão muito bem [na recuperação ou condução da doença] . Esses inquéritos sorológicos [os testes rápidos] têm o poder de refletir quanto da população já se expôs ao vírus. Não significa necessariamente que o número de óbitos vai subir proporcionalmente. Para cada um diagnosticado, os dados mostram que a gente tem seis ou sete que não tiveram sintomas e que não foram diagnosticados. Podemos ter um número maior de casos sem significar aumento maior de óbitos. A preocupação [de medidas como a] do isolamento é que não se quer um número de pessoas infectadas no mesmo momento porque sabemos que 15 a 20% delas vão precisar de hospital. A transmissão vai ocorrer, mas queremos que ela seja diluída ao longo do tempo”, pondera Raquel Stucchi.
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