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Os primeiros depoimentos colhidos pela CPI da Covid deram o tom de como a maioria dos senadores pretende conduzir os trabalhos daqui para frente. Na primeira semana da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, a distribuição de medicamentos controversos, como a hidroxicloroquina, e a demora na compra de vacinas pelo governo federal foram os principais focos de questionamentos.
O primeiro a ser ouvido pela CPI da Covid foi o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que deixou o Ministério da Saúde em abril do ano passado depois de um processo de desgaste com o presidente Jair Bolsonaro. Na oitiva, Mandetta afirmou que Bolsonaro não seguia as orientações técnicas do ministério e tinha uma “assessoria paralela”, da qual participava seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Expôs ainda ter visto uma minuta para incluir a Covid-19 na bula da cloroquina via decreto presidencial, mas disse desconhecer de quem foi a autoria e que a proposta não prosperou.
Escolhido para ocupar o cargo de Mandetta, o médico Nelson Teich afirmou aos senadores que a pressão do governo para que o Ministério da Saúde adotasse um protocolo a favor do uso da cloroquina e a falta de autonomia dentro da pasta acabaram motivando seu pedido de demissão. Teich, que ficou menos de um mês no cargo, evitou, porém, atribuir responsabilidade a Bolsonaro pelo agravamento da pandemia no Brasil.
“Essa falta de autonomia ficou mais evidente em relação às divergências com o governo quanto à eficácia e extensão do uso do medicamento cloroquina”, admitiu o ex-ministro aos senadores. Teich pediu demissão no dia 15 de maio de 2020, um dia depois de o presidente Bolsonaro anunciar em suas redes sociais a publicação de um protocolo para uso da cloroquina.
“É um medicamento que tem efeitos colaterais de risco. O problema era a gente não ter ainda dados concretos do benefício, mas, essencialmente, era a preocupação do uso indevido mesmo. Isso é o que eu falei: ‘Não vale para a cloroquina, vale para qualquer medicamento’. Então, ali era muito mais uma discussão de condução do que do remédio especificamente”, disse o ex-ministro à CPI da Covid.
Foi sob a gestão do general Eduardo Pazuello, sucessor de Teich, que o Ministério da Saúde implementou a distribuição da cloroquina, comumente utilizado no tratamento de malária e de doenças reumatológicas, como lúpus e artrite reumatoide. Até janeiro de 2021, o governo já tinha gasto quase R$ 90 milhões com a compra de medicamentos do chamado tratamento precoce. Pazuello também será ouvido pela CPI, mas seu depoimento foi adiado por suspeita de Covid-19.
Outro que falou aos senadores nesta semana foi o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. No depoimento, a campanha de imunização e a defesa de medicamentos sem comprovação científica permearam o debate.
Queiroga disse que sua chegada ao ministério marcou uma mudança de postura do governo federal em relação à condução da pandemia. O ministro defendeu que a campanha de imunização e as medidas não farmacológicas como, uso de máscara, distanciamento social e uso de álcool em gel, são os melhores caminhos para combater o vírus antes de a vacina chegar para todos.
Perguntado se compartilhava ou não da posição do presidente Bolsonaro de receitar cloroquina como tratamento precoce, Queiroga desconversou. "Essa é uma questão técnica que tem que ser enfrentada pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS). O ministro é a última instância na Conitec, então eu vou precisar me manifestar tecnicamente", afirmou o ministro, que disse não ter recebido nenhuma orientação direta do presidente sobre o assunto.
O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), integrantes da oposição e até o presidente do colegiado, senador Omar Aziz (PSD-AM), reclamaram da falta de objetividade do ministro da Saúde. “Ministro, o senhor está aqui como testemunha. Essa é a instância. Não tem esse negocio de dizer e jogar para terceiros. O senador Renan fez perguntas simples: faltou o quê? Não faltou o dinheiro. Faltou lockdown, faltou o quê? Você está aqui como testemunha, estou aqui pra lhe preservar. Não é achismo. É sim ou não”, declarou Aziz.
A condução do depoimento do ministro provocou reação inclusive de Bolsonaro, que logo após a oitiva criticou os integrantes da CPI. Segundo o presidente, o colegiado "bateu muito" no titular da pasta: "Cloroquina, cloroquina, cloroquina, o tempo todo cloroquina. 'Ah, o presidente falou'...", disse ele, que na sequência chamou a CPI de "xaropada".
Relator da CPI da Covid diz haver indícios de um "ministério paralelo da saúde" no governo
Na próxima semana a CPI pretende ouvir o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, representantes do laboratório da Pfizer e o ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten. Desta vez o foco dos investigadores será a possível omissão do governo em relação às ofertas de vacina para o Brasil.
Até o momento, integrantes da oposição afirmam que o governo Bolsonaro teria recusado 11 ofertas formais de fornecimento de vacinas contra a Covid-19. Do total, seis são referentes à Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, três ofertas formais feitas pelo laboratório Pfizer e outras duas vezes que o governo se recusou a participar do consórcio da Covax Facility. Neste último caso, o Brasil só aderiu ao consórcio no terceiro convite, segundo o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom.
Na avaliação de Renan Calheiros, os primeiros depoimentos serviram para mostrar que havia um “ministério paralelo da saúde” que não só aconselhava o presidente da República como definia medidas no enfrentamento do coronavírus numa linha contrária à de seus ministros da Saúde. O relator destacou que esse "gabinete das sombras" tomou decisões sem o conhecimento dos dois ex-ministros da Saúde, como a determinação para o laboratório do Exército produzir mais cloroquina.
"Nenhum dos dois ministros tomou conhecimento do aumento da produção de cloroquina, isso foi ao arrepio do Ministério da Saúde", afirmou Calheiros ao portal G1.
Na mesma linha, o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou que as investigações seguirão o caminho da cloroquina. “Os depoimentos do Mandetta e do Teich mostraram claramente que os ministros não tinham autonomia para fazer o seu trabalho, a linha de enfrentamento da pandemia era dada por Bolsonaro e quem não quis se submeter a isso teve que sair. Agora vamos buscar por que o governo comprou uma ideia de imunização de rebanho e por que bancou essa ideia de imunidade coletiva. Essa é a linha principal (de investigação)”, afirmou o petista.
CPI é "jogo de cartas marcadas", acusa senador governista
Já o senador Carlo Heinze (PP-RS), que integra a base governista, acusa Renan Calheiros e integrantes da oposição de fazerem um “jogo de cartas marcadas”. Ele também alega que governadores e prefeitos estão de fora das apurações feitas até o momento.
“O que eu vejo é um jogo de cartas marcadas e com objetivo para ferrar unicamente o presidente. O Renan já tem a posição dele e como será seu relatório. Eles resistem a levar a investigação para os governadores e prefeitos. Mas nós sabemos que eles não estão preocupados com isso, querem pegar apenas o Bolsonaro”, criticou Heinze.
O senador do Rio Grande do Sul foi o principal nome do governo a defender o uso da cloroquina dentro da CPI. Durante suas falas, Heinze questionou estudos científicos e defendeu médicos que receitam o medicamento. Segundo ele, há um esforço em "queimar esse produto", motivado pelo fato de o presidente Jair Bolsonaro ter defendido o seu uso.
O senador foi repreendido pelo presidente da comissão, Omar Aziz, que tem reiterado que, em relação à eficácia dos tratamentos contra Covid, é preciso ouvir os cientistas e especialistas no assunto. “Eu respeito a opinião de todos. Eu cursei Engenharia Civil por alguns anos e me formei em Engenharia Civil. Agora, o que não dá, senador Luis Carlos Heinze, é pessoas que nunca passaram na porta de uma faculdade de Medicina quererem saber mais do que um médico”, rebateu Aziz.