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Blindagem

CPI do Abuso de Autoridade enfrentará obstáculos criados pelo próprio STF para investigar ministros

Gilmar Mendes, entre Dias Toffoli, que abriu o inquérito das fake news, e Alexandre de Moraes, que conduz a investigação.; em 2019, decano rejeitou pedido para instalação da CPI da Lava Toga no Senado (Foto: STF/Nelson Jr)

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Caso venha a ser instalada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a CPI do Abuso de Autoridade, que já conquistou o apoio de 1/3 dos deputados, terá de contornar obstáculos jurídicos criados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar supostos crimes cometidos por alguns de seus ministros.

Caberia à própria Corte, inclusive, fiscalizar se os atos da CPI não estariam burlando esses impedimentos. Eventuais questionamentos, por parte de parlamentares ou de cidadãos investigados, a atos da CPI são julgados pelo próprio STF, por meio de mandados de segurança ou habeas corpus.

O requerimento da CPI, assinado por 171 deputados, diz que seu objetivo é investigar, num período de quatro meses, violações de direitos e garantias fundamentais e do devido processo legal, bem como atos de censura e de abuso de autoridade supostamente cometidos por ministros do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O principal alvo é o ministro Alexandre de Moraes, que há quatro anos conduz com mão de ferro o inquérito das fake news e que, no comando do TSE desde o ano passado, intensificou o cerco à nova direita e ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Como exemplos, o requerimento lembra a investigação aberta pelo ministro no ano passado contra empresários que, em conversas privadas de WhatsApp, diziam preferir um “golpe” à volta do PT; o bloqueio de bens de pessoas e empresas ligadas a manifestantes que foram a Brasília protestar contra a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva; e atos de censura do TSE no bloqueio das redes sociais de apoiadores de Bolsonaro, na veiculação de um documentário da produtora Brasil Paralelo, bem como sobre a Jovem Pan e a Gazeta do Povo.

A dificuldade de advogados dos réus do 8 de janeiro para defendê-los no STF e a recente morte, na prisão, do comerciante Cleriston Pereira da Cunha, catalisaram a mobilização, na Câmara, para recolher as assinaturas necessárias para a abertura da CPI.

Cabe agora a Arthur Lira autorizar a instalação e abrir prazo para que os líderes partidários indiquem os deputados que irão participar do colegiado. Aberta, a comissão deverá eleger um presidente, para conduzir as sessões e gerir os trabalhos, e um relator, para supervisionar a investigação e elaborar as conclusões.

Um dos primeiros problemas que pode surgir para a CPI é um possível impedimento para investigar e convocar ministros do STF e do TSE para depor. Há mais de 20 anos, o próprio STF tem blindado magistrados que CPIs anteriores tentaram interrogar.

Os precedentes do STF para blindar magistrados em CPIs

Em 1999, uma CPI do Judiciário foi instalada no Senado para apurar irregularidades nas cortes superiores, tribunais federais e estaduais. Na época, um desembargador de Brasília foi chamado a depor sobre suspeitas de que teria prejudicado a herança de um menor de idade num processo de inventário. Ele acionou o STF e conseguiu um habeas corpus para não depor.

Alegou que o Legislativo não poderia investigar decisões judiciais, pois essas só poderiam ser contestadas dentro do Judiciário com recursos; uma intromissão da CPI nesse campo afrontaria a independência dos juízes e a separação dos poderes. A defesa apontou violação das prerrogativas como magistrado e que eventuais reclamações quanto à sua conduta deveriam ser apresentadas ao Tribunal de Justiça ou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“Não é aceitável que se obrigue o paciente a dar explicações sobre suas decisões e sentenças, em ambiente político, em que há divergências e exibicionismos, onde nem sempre se prima pela cortesia que se deve a uma autoridade de outro poder”, disseram seus advogados.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) concordou com o pedido. O Senado protestou, argumentando nos autos que a CPI não queria apurar decisões judiciais, mas atos administrativos e uma postura “hostil” do desembargador com as partes do processo em audiências. A maioria dos ministros do STF à época confirmou a dispensa.

Relator do caso, o ministro Octavio Gallotti, já aposentado, disse que o próprio regimento do Senado impedia que CPIs investigassem atribuições do Judiciário. “Não vemos como enquadrar as decisões na mira das Comissões Parlamentares, quer sob o aspecto da reapreciação direta do acerto de seu mérito, quer sob a forma da avaliação da conduta de seu prolator, o que vem a redundar, em essência, na mesma indesejada ingerência nas atribuições do Poder Judiciário”, escreveu em seu voto.

Nos anos seguintes, várias outras decisões do STF se basearam nesse precedente para barrar a convocação e investigação de magistrados por CPIs. Em 2000, o ministro Nelson Jobim impediu que a CPI do Narcotráfico obrigasse a depor uma juíza que havia soltado dois policiais suspeitos de extorquir o traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar.

“Não pode o juiz ser intimado nem muito menos forçado a comparecer a qualquer CPI para dar satisfação de seus atos jurisdicionais. Goza o juiz de plena independência nos atos jurisdicionais. Corre a paciente risco de ser presa caso não compareça para prestar esclarecimentos”, alegou a defesa da juíza. Jobim concedeu o salvo-conduto. “Parece evidente que o objetivo seja ouvir a paciente em razão da decisão que proferiu. As decisões judiciais só podem ser revistas pelos recursos processuais próprios”, escreveu na decisão.

Em 2019, Gilmar Mendes negou instalação da CPI da "Lava Toga"

De lá para cá, o STF adotou o mesmo entendimento em mais de uma dezena de ações, blindando juízes de investigações parlamentares. Uma das últimas e mais importantes decisões do tipo foi proferida em 2019 por Gilmar Mendes, ao negar um pedido do senador Jorge Kajuru (PSB-GO) para obrigar o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), a instalar a CPI da “Lava Toga”, que havia obtido apoio suficiente na Casa para investigar “condutas ímprobas, desvios operacionais e violações éticas” por parte dos próprios ministros do STF.

Kajuru argumentou que, cumpridos os requisitos, a instalação da CPI era obrigatória, por ser um direito da minoria – trata-se, também, de um entendimento consolidado no próprio STF.

A comissão tinha por objetivo, segundo seu requerimento, apurar 13 fatos, que incluíam a atuação do próprio Gilmar Mendes e de Dias Toffoli em processos de bancos, partes ou escritórios de advocacia com os quais teriam ligações; palestras de ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) pagas por empresas que eram partes nos tribunais; e ainda a atuação de filhos de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) como advogados em ações na Corte.

Ao negar a instalação da CPI, Alcolumbre citou a jurisprudência da Corte que impede tentativa de investigação, por CPIs, de atos jurisdicionais “quanto ao acerto ou não de decisões”. “Admitir a investigação de decisões judiciais implicaria outorgar ao Poder Legislativo a possibilidade de cercear a livre aplicação das leis pelos magistrados, ou seja, admitir os chamados crimes de hermenêutica”, escreveu Alcolumbre à época.

Gilmar Mendes, ao negar o pedido de instalação da CPI no Senado, ratificou esse entendimento. Afirmou que seu objeto era “demasiadamente amplo e genérico”, destacando que, na justificativa, os senadores criticavam um “hiperbólico ativismo judicial” e “decisões desarrazoadas”, sobretudo liminares monocráticas do STF. Desde aquela época, já havia no Congresso grande insatisfação com interferências do STF no Legislativo.

“Da mesma forma que, nos termos da jurisprudência desta Corte, é vedado ao Poder Judiciário adentrar matéria interna corporis do Congresso Nacional, também não se permite ao Poder Legislativo realizar o controle da atuação jurisdicional, tendo em vista o princípio da separação de poderes [...] Registro que o STF já assentou a impossibilidade de convocação de magistrado para prestar depoimento perante CPI acerca de decisões jurisdicionais, por ofensa ao princípio da separação de poderes”, escreveu Gilmar Mendes em sua decisão.

O que diz o autor da CPI do Abuso de Autoridade

A Gazeta do Povo questionou o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS), principal articulador da CPI do Abuso de Autoridade, sobre esses obstáculos jurídicos. O primeiro deles pode ser a recusa de Arthur Lira em instalar a CPI usando os mesmos argumentos de Alcolumbre em 2019. Van Hattem afirma que o próprio STF entende que as CPIs são um direito assegurado às minorias no Legislativo.

“Há jurisprudência pacificada do STF que assevera que a CPI é uma prerrogativa político-jurídica das minorias parlamentares, a quem a Constituição assegura os instrumentos necessários ao exercício do direito de oposição e à fiscalização dos poderes constituídos, como decorrência da cláusula do Estado Democrático de Direito”, diz o deputado. “Não se pode considerar o Poder Judiciário como um superpoder soberano e inatingível”, enfatiza o parlamentar.

Ele lembra que, em 2019, foi aprovada uma nova Lei de Abuso de Autoridade que elenca como possíveis autores desses crimes membros do Judiciário. O requerimento da CPI, destaca, tem por objeto de investigação atos desse tipo praticados pelos ministros do STF e do TSE.

" A CPI não adentra em questões jurisdicionais, mas sim sobre a conduta do magistrado, o animus que motivou essas decisões e se elas levaram em conta interesses pessoais ou de grupos simpatizantes. O requerimento de abertura da CPI do Abuso de Autoridade atende a todos os requisitos", diz Van Hattem.

“Os casos listados no pedido delimitam o escopo da Comissão e deixam claro que a CPI não adentra em questões jurisdicionais, mas sim sobre a conduta do magistrado, o animus que motivou essas decisões e se elas levaram em conta interesses pessoais ou de grupos simpatizantes. O requerimento de abertura da CPI do Abuso de Autoridade atende a todos os requisitos para sua instalação e está alinhada à jurisprudência pacificada do STF, devendo ser instalada imediatamente. Acredito que o presidente Lira dará seguimento ao requerimento e, muito breve, iniciaremos os trabalhos da CPI de Abuso de Autoridade”, afirma Van Hattem.

No requerimento de abertura da CPI, ele citou diversos crimes de abuso de autoridade que, em tese, supostamente poderiam ter sido cometidos pelos ministros do STF e do TSE, com penas que variam de 6 meses a 2 anos de detenção. São eles:

  • prestar informação falsa sobre procedimento judicial com o fim de prejudicar interesse de investigado;
  • estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado;
  • negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação;
  • exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal.

Van Hattem entende que não existe proibição para convocação de ministros quando o que está em investigação são condutas como essas. E ele acrescenta que testemunhas ou vítimas de abusos podem ser convidadas a depor para esclarecer os fatos.

“Os depoimentos que serão colhidos ao longo dos trabalhos da CPI serão definidos quando da aprovação do plano de trabalho e de requerimentos apresentados pelos membros da Comissão. Lógico que há grande probabilidade de chamar-se vítimas desses abusos de autoridade e outras pessoas, inclusive servidores públicos e agentes políticos, que possam esclarecer os fatos investigados pela CPI”, disse.

Quanto à possibilidade de outros parlamentares tentarem barrar as investigações sobre os ministros do STF na própria Corte, diz Van Hattem:

“Em primeiro lugar, tenho de acreditar no papel republicano que cabe ao Poder Judiciário em uma situação como esta que estamos investigando. Não penso que o STF tome decisões que venham a limitar os trabalhos da CPI. Ao contrário, desejo que o STF seja um dos maiores apoiadores do bom andamento do inquérito, afinal de contas, como fala a doutrina penal, não há melhor instrumento de defesa do que os depoimentos e as oitivas de investigados, vítimas e testemunhas. O STF deve ser o maior interessado na conclusão dos trabalhos da Comissão de Inquérito de Abuso de Autoridade, pois lhe cabe comprovar a sua imparcialidade e a não ocorrência de qualquer conduta indevida”, detalhou o deputado.

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