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Fora de controle

Crime organizado: 23 milhões de pessoas estão em áreas dominadas por 72 facções e milícias

Plano Pena Justa está focado no desencarceramento e melhores condições nas prisões. (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil/Ilustração)

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Três diferentes mapas e relatórios de grupos criminosos divulgados neste ano revelam um cenário aproximado da atuação de 72 organizações e milícias pelo Brasil. Segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, os levantamentos revelam dados sobre o avanço do crime organizado e a perda de controle das forças de segurança e do Estado diante do domínio que os grupos passaram a exercem. Esses levantamentos revelam que cerca de 23 milhões de pessoas em todo o país relataram viver em áreas dominadas ou com atuação das facções ou grupos milicianos.

As apurações distintas são do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a partir da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Datafolha. Os estudos indicam que em 2024 surgiram quatro novas organizações criminosas além das existentes em 2023, quando 68 tinham sido mapeadas. Apesar de as forças de segurança não divulgarem o nome destas novas organizações, explicam se tratar de pequenos grupos armados que operam, principalmente, em pareceria com grandes facções.

Juntas, as organizações criminosas e milícias exerceriam influência ou estão próximas de cerca de 11% da população brasileira, que é de quase 212,6 milhões de pessoas, segundo estimativa do IBGE. Essas mesmas facções estão presentes em presídios e penitenciárias em praticamente todo o território nacional, ampliando seus tentáculos.

“O que temos visto ao longo dos últimos anos é um avanço das organizações e do crime organizado no Brasil e, algumas delas, com forte atuação internacional. Elas saíram dos presídios, de onde nasceram, para se tornarem grandes multinacionais bilionárias do crime”, disse o cientista político, especialista em Segurança Pública, Marcelo Almeida.

Para Lincoln Gakiya, promotor do Gaeco de São Paulo, que há mais de duas décadas se empenha em investigar organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Estado foi negligente.

“Houve décadas de negligência do Estado que levaram o que era uma pequena facção em 1993 no interior de São Paulo [PCC] a hoje ser uma grande organização criminosa transnacional com matiz mafiosa, com mais de 40 mil integrantes no Brasil todo e na maioria dos países da América do Sul, com atuação em vários países da Europa e do Estados Unidos”.

Para o promotor, a negligência ocorreu pela falta de vontade política que iniciou pela negação do problema. Ele disse que negar algo que estava crescendo no interior dos presídios brasileiros foi o “pior dos mundos”. “A gente falhou e eu me incluo também neste papel porque a gente perdeu o controle”, afirmou.

A perda de controle à qual o promotor se refere é traduzida pelos números. Os levantamentos distintos indicam que em praticamente todos os estados há forte ação de organizações criminosas, principalmente do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV), rivais que já foram parceiros e que voltaram a disputar espaço e poder nas atividades de tráfico internacional de drogas e armas.

“A ineficiência do Estado e em alguns casos a própria tentativa do Estado de fazer de conta que as facções não existiam, como ocorreu nos anos de 1990 com o PCC em São Paulo, fez com que esses grupos armados crescessem, avançassem e se tornassem uma espécie de Estado paralelo”, completa Almeida.

Em uma pesquisa divulgada em julho deste ano, o Datafolha relevou que facções criminosas e grupos milicianos (que também são criminosos organizados) influenciaram o cotidiano de cerca de 11% dos brasileiros. O levantamento, realizado a pedido do think tank Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que aproximadamente 23 milhões de pessoas têm de forma direta ou indireta a convivência em áreas sob controle de organizações criminosas e milicianos.

“Isso é altamente preocupante, a cada 100 pessoas, 11 viram ou têm perto de suas casas, das suas vidas, o domínio ou a atuação das organizações criminosas. Isso revela uma deficiência do Estado e um avanço das organizações sobre a vida das pessoas inclusive para cooptá-las”, destaca o especialista em segurança pública Sérgio Gomes. Gomes, hoje aposentado, foi do serviço de inteligência das forças federais de segurança por cerca de duas décadas.

O estudo do Datafolha ouviu 2.508 pessoas com 16 anos ou mais em municípios de diferentes portes e regiões do Brasil no período de 11 e 17 de junho deste ano com uma margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Os entrevistados foram questionados se a região onde vivem sofreu com a presença explícita das organizações criminosas ou grupos milicianos.

O levantamento revelou, de acordo com o Datafolha, que o impacto dessas facções é sentido especialmente nas capitais e regiões metropolitanas, onde 20% dos moradores relatam presença explícita de milícias ou facções em seus bairros. O número se mantém elevado nas periferias das regiões metropolitanas (17%) e diminui no interior (11%). “Mas essa é a prova que as facções se enraizaram e estão em todos os lugares, das capitais ao interior porque o tráfico de drogas é um negócio rentável em todos os cantos”, completa o especialista.

A pesquisa também aponta que o domínio territorial desses grupos é concentrado em áreas estratégicas, facilitando o fluxo de distribuição de drogas. “Como exemplo temos a atuação das facções na região das fronteiras, como com o Paraguai, para comprovar isso. PCC e CV estão na região de onde traficam para o Brasil e para o mundo”, diz o especialista, que atuou nos serviço de inteligência em áreas de fronteira.

Segundo levantamento do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de São Paulo, somente o PCC envia todos os meses para a Europa, de forma camuflada em cargas lícitas em navios que partem do Porto de Santos, cerca de quatro toneladas de pasta base de cocaína.

A realidade criminosa afeta, segundo os levantamentos, principalmente moradores de regiões da periferia. Outro levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2022 estimou que seis mil mortes possam ter passado despercebidas nas estatísticas oficiais.

“Muito disso se deve aos chamados tribunais dos crimes. Em territórios com domínio das facções, há julgamentos próprios, assassinato, cemitérios clandestinos, mortes que não chegam às estatísticas oficiais”, lembra o especialista Marcelo Almeida.

Segundo o levantamento, esse dado reforça o impacto das facções não apenas na segurança pública, mas também na qualidade das informações disponíveis sobre violência, colocando em dúvida “a aparente redução nos números de homicídios no país”.

Sem estrutura, Coaf não consegue rastrear movimentações financeiras atípicas do crime organizado

Outro levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a Esfera Brasil, outro think tank que se apresenta como independente e apartidário, divulgado no segundo semestre de 2024, revelou que as 72 facções dominam atividades ilegais que vão além das fronteiras nacionais e com destaque à atuação em quase duas centenas de municípios da Amazônia Legal.

O levantamento sobre o crime organizado também apontou que, apesar das tentativas de rastrear as transações financeiras relacionadas a esses crimes, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) se vê sobrecarregado. O órgão é a principal ferramenta usada pelo governo brasileiro para rastrear movimentações financeiras destinadas a lavagem de dinheiro do crime.

Em 2023, o Coaf recebeu cerca de 1,7 milhão de Comunicações de Operações Suspeitas e mais de quatro milhões de transações em espécie, mas o número limitado de servidores impossibilita a análise detalhada de todas elas. Isso resulta, segundo o levantamento, de um cenário em que crimes como tráfico de drogas, contrabando e fraudes financeiras ocorrem com menor chance de serem identificados pelas autoridades. O Coaf não se manifestou sobre o que apontou o levantamento.

O estudo aponta que as facções criminosas têm ramificações que vão do tráfico de drogas e armas ao roubo de veículos, contrabando de ouro, e envolvem crimes financeiros e ambientais, como a exploração de recursos na Amazônia.

Segundo a análise, sem uma coordenação nacional entre as 86 forças policiais do país e as 1,5 mil organizações com poder de polícia, o combate efetivo ao crime organizado segue fragmentado e insuficiente. O estudo também considerou como organização com poder de polícia as guardas municipais que à época do levantamento estavam presentes em cerca de 1,4 mil cidades brasileiras.

“É preciso ter coordenação, mas não uma centralização de poder como indica o próprio governo federal quando apresenta um texto inicial de uma Proposta de Emenda à Constituição [PEC da Segurança Pública] na qual aparentemente retira poderes dos estados e município e canaliza para a União”, completa o analista de segurança, Sérgio Gomes.

A pesquisa sugere medidas de resposta como a criação de um Comitê Interministerial para o Combate ao Crime Organizado, a aprovação de uma Lei Geral de Proteção de Dados voltada para a segurança pública, e o fortalecimento do Coaf com recursos tecnológicos e pessoal.

Ministro da Justiça diz que Brasil vive explosão do crime organizado

O ministro Ricardo Lewandowski disse, em entrevista à CNN em outubro, que o crime deixou de ser local, se tornou nacional, evoluiu para transacional e que para combater esses grupos organizados são necessárias duas medidas: coordenação da ação policial e um sistema de formações robustos que possa trocar dados de forma rápida e ágil de enfrentamento ao crime organizado. A fala foi uma defesa ao que prevê a PEC da Segurança Pública, muito criticada por governadores diante do risco de centralização de decisões e de poder somente à União.

O ministro reconhece no Brasil uma “explosão da criminalidade”, mas diz se tratar de um fenômeno não apenas do país e que vai além dos limites da ilegalidade, com ações que já se sobressaem ao tráfico e contrabando, por exemplo.

Lewandowski confirma a ida, em massa, de dinheiro sujo de facções para o mercado formal “explorando várias atividades legais” e que diante disso, é preciso uma “perspectiva nova para combater essas organizações”, mas não detalhou que perspectivas e ações seriam e como o Ministério da Justiça pretende colocá-las em prática.

O ministro nega, no entanto, que o Estado seja ineficiente no enfrentamento aos criminosos e disse que graças à atuação do Estado foi possível mapear como se dá e onde está a presença das organizações dentro e fora das unidades prisionais, mais uma vez, na tentativa de justificar a tramitação da PEC da Segurança Pública.

“É uma mudança constitucional aonde o Sistema Único de Segurança Pública que está hoje dentro de uma lei ordinária seja constitucionalizado de maneira que a União possa estabelecer uma política nacional de segurança pública, diretrizes dessa área e que sejam vinculantes para os estados e municípios quando for o caso”.

O ministro diz que a cooperação existente entre as forças de segurança se dá hoje de forma voluntária, mas que é necessário um planejamento global para o enfrentamento e acompanhar o avanço desses criminosos. O outro levantamento ao qual o ministro se refere indicou a presença e atuação destas mesmas 72 organizações criminosas dentro do sistema penitenciário brasileiro, indicando a disseminação e influência dessas organizações no país. Segundo a pasta, este levantamento foi realizado a partir de dados de agências de inteligência penitenciária dos 26 estados e do Distrito Federal, e mostra o alcance de facções maiores, mais uma vez com destaque ao PCC e o CV, assim como dezenas de grupos regionais, muitos que operam como parceiros estratégicos ou do PCC ou do CV.

Facções que exercem poder dentro e fora do sistema prisional brasileiro, segundo o Ministério da Justiça

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Fonte: Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça

Penitenciárias: em que estados as facções estão presentes

Segundo o estudo do MJSP, o PCC possui presença em, no mínimo, 23 estados, enquanto o CV está ativo em cerca de 20 estados. Juntas, essas duas facções somam a maior parte dos detentos afiliados em dois importantes redutos das organizações, São Paulo, casa do PCC, e Rio de Janeiro, local de origem do CV. Especialistas observam que, em um cenário no qual há pouca supervisão e condições precárias, o sistema prisional se torna um “escritório do crime,” com líderes coordenando atividades ilícitas e recrutando novos membros.

“O que temos visto é que, mesmo de dentro das prisões, faccionados seguem dando ordens a quem está do lado de fora, a cadeia de comando não foi quebrada e isso é importante para frear o avanço das organizações. Líderes estarem presos não significa facções estarem sem comando”, completa o advogado, especialista em Direito Penal, Márcio Nunes.

Entre os exemplos recentes está a operação realizada em parceria com diferentes forças policiais em dezembro de 2024 que revelou que Fernandinho Beira-Mar, mesmo preso na Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Catanduvas, seguia determinando o que faccionados deveriam fazer em um esquema milionário de roubo de cargas.

O relatório da ação das organizações criminosas no sistema prisional aponta que o crescimento de facções locais é resultado do déficit de vagas e superlotação nos presídios, o que permite que os detentos assumam certa autogestão e uma espécie de controle informal do sistema. “Logo que chegam à cadeia, muitos detentos que sequer tinham ligações com as organizações acabam cooptados. Muitos aceitam para se sentirem mais protegidos dentro do sistema e assim o bolo só cresce”, completa o advogado.

Entre as medidas propostas para conter o poder das facções mencionadas por especialistas estão: o aumento da capacidade dos presídios, a implementação de procedimentos de segurança padronizados, a fiscalização de presos com monitoramento eletrônico e o incentivo à profissionalização e educação dos detentos. “E isso não passa por um processo de desencarceramento em massa como o próprio Ministério da Justiça e Segurança Pública tem defendido. Desencarcerar com poucos critérios é tornar a segurança ainda mais vulneráveis e fortalecer facções criminosas, não é o caminho”, reforça o analista de segurança, Sérgio Gomes.

Apesar de independentes, os levantamentos apontaram que a rivalidade entre PCC e o CV afeta rotas de tráfico e que, após um período de intensos conflitos entre os grupos, ambas as facções agora buscam expandir suas rotas pelo interior e no Norte do país. Essa expansão contribui para uma aparente trégua e a descentralização do conflito entre os grupos, o que, segundo pesquisadores, pode estar associado à recente queda nas taxas de homicídio no Brasil. “Mas não podemos nos enganar, se uma ocupar ou tentar avançar sobre o espaço da outra haverá mais derramamento de sangue”.

Organizações criminosas aplicam dinheiro sujo em atividades lícitas

A complexidade da situação é agravada pelo uso de artifícios de fachada para lavagem de dinheiro, complicando o controle dessas organizações, como a intensificação de investimentos de recurso sujo em atividades lícitas, somado à deficiência em aparelhos do Estado para conter esse avanço.

“Temos uma cena recente de um corretor de imóveis assassinado no aeroporto de Guarulhos por supostamente lavar milhões de reais do PCC, temos a mesma facção vencendo licitações no transporte público em São Paulo, financiando campanhas eleitorais para estar próxima do poder, adquirindo estabelecimentos comerciais, dando ar de legalidade para dinheiro ilegal”, completa o analista de segurança Gomes.

Segundo ele, conforme essa lavagem de dinheiro do crime organizado avança, fica cada vez mais difícil rastrear e chegar ao dinheiro. Gomes diz que é preciso agir mais rápido para identificar recursos sujos. “Seguir o dinheiro é o caminho, secar a fonte, prender os responsáveis e os isolar do bando que está fora das prisões para enfim quebrar a linha de comando. É preciso se estrutura para isso”, completa.

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