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Fiscalização e controle

Crime organizado usa bets para lavar dinheiro do tráfico e de jogos ilegais

Bets, com apostas online, são usadas para lavagem de dinheiro do crime organizado. (Foto: Tung Lam/Pixabay)

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Ao menos 80 investigações contra sites e empresas de apostas online, conhecidas como "bets", estão sendo realizadas pelo Ministério Público e por órgãos policiais em todo o Brasil, segundo levantamento realizado pela Gazeta do Povo. Parte das "bets" viraram instrumentos de facções criminosas como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) e de bicheiros para lavar dinheiro e para arrecadar recursos em jogos onde o apostador sempre sai perdendo.

As "bets" abrangem tanto casas de apostas esportivas, onde o cliente aposta em resultados de competições oficiais de diversas modalidades, quanto cassinos do tipo caça-níquel, nos quais o apostador transfere dinheiro para comprar créditos na plataforma e participa de jogos de azar que prometem prêmios em dinheiro.

Uma pesquisa feita pelo instituto de pesquisas em tecnologia Datahub em abril deste ano identificou 217 empresas do tipo "bet" registradas de forma legal no Brasil. Consultorias independentes falam em mais de 400 sites ativos no país neste momento. Apenas uma parte desses sites é alvo das investigações. Outros operam como casas de apostas legítimas.

O governo, no entanto, não tem dados oficiais sobre as "bets" e admite que atualmente elas não arrecadam tributos pelas apostas no país. “O poder público não sabe quantas empresas estão explorando as bets e quanto faturam no país. Também desconhece a destinação do ganho auferido, o número de pessoas empregadas no setor e a quantidade de apostadores”, descreve publicação do fim de agosto deste ano da Agência Brasil, a agência de notícias estatal. A reportagem entrou em contato com o governo federal pedindo posicionamento sobre o tema, mas não recebeu resposta.

Por esses e outros motivos que grupos criminosos enxergam nelas, e na legislação que as ampara, a possibilidade de ampliar negócios e transformar dinheiro sujo em dinheiro legal, aos bilhões. Nos últimos dois anos, inquéritos policiais para investigar suspeitas de ações envolvendo facções criminosas se espalharam em delegacias e nos Ministérios Públicos pelo país.

Os criminosos operam irregularmente parte das "bets" de duas formas. A primeira visa a lavagem de dinheiro obtida pelo crime organizado com tráfico de drogas e armas, taxas de "proteção", comercialização irregular de produtos e serviços em áreas de favela dominadas pelo crime e com o jogo do bicho, que é ilegal. Os criminosos inserem no sistema das "bets" o dinheiro sujo na forma de apostas e depois direcionam os sorteios para pagar pessoas pré-selecionadas que fazem parte do esquema. Assim o dinheiro do prêmio passa a ser capital "limpo".

O segundo modelo é operar as "bets" no ambiente virtual como faziam com as máquinas irregulares de caça-níquel, que funcionavam escondidas em bares e também em cassinos clandestinos. Ou seja, os apostadores jogam e são premiados com pequenas quantias. Mas eles depois acabam viciados no jogo e perdem muito mais dinheiro do que ganharam, gerando lucro aos operadores do sistema. Isso porque as máquinas são programadas para nunca dar prejuízo aos operadores. Em alguns casos, apostadores que ganham prêmios mais altos simplesmente não são pagos.

A Gazeta do Povo pesquisou na Justiça dos 26 estados e do Distrito Federal neste mês investigações criminais envolvendo as bets e encontrou 80 procedimentos em curso ou recém abertos. A maioria deles investiga crimes de lavagem de dinheiro, estelionato, formação de quadrilha e participação em organização criminosa.

“Precisamos avaliar que é só uma parcela de bets que se utiliza destas estruturas de aposta para ações ilegais, mas criminosos viram nelas essa possibilidade e estão se aproveitando disso”, avalia o advogado Márcio Berti, especialista em Direito Penal.

PF prendeu parentes do líder do PCC em ação no Ceará

Entre as ações que confirmam isso está uma operação da Polícia Federal (PF) realizada no mês de abril deste ano no Ceará, que mirou o uso de pelo menos seis "bets". Elas operavam com apostas esportivas em sites, para lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC).

A PF revelou que, além do PCC, o Comando Vermelho e outros grupos criminosos estão utilizando esses mecanismos de aposta online para operar recursos do tráfico de drogas e de armas no estado. “Não é de hoje que isso acontece e o problema reside frequentemente na falta de regulamentação específica ou na dificuldade de aplicação das normas já existentes ao contexto das apostas online”, avaliou o advogado.

Na operação do Ceará, a PF prendeu parentes próximos de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, principal líder do PCC. “[Há] robustos indícios, também, da prática de lavagem de dinheiro obtido de forma ilícita”, descreveu o delegado da PF Igor César Conti Almeida no indiciamento de quatro suspeitos.

Somente nesta ação foram mapeados mais de R$ 300 milhões em movimentação ilegal com pelo menos duas dezenas de investigados suspeitos de envolvimento com o PCC. O inquérito também revelou que o CV tenta ampliar e demarcar território diante do avanço da facção rival. O Ministério Público registrou incêndios criminosos a casas de apostas físicas de rivais do CV no estado em uma disputa que antes estava mais focada em território para o tráfico.

Polícia mira "bets" com suspeita de operação de bicheiros e prende influenciadora

Um dos casos mais recentes e polêmicos foi registrado na semana passada, quando um grupo suspeito de operar mais de R$ 2,1 bilhões foi preso pela polícia no estado de Pernambuco, com mandados cumpridos em ao menos outros quatro estados. Entre os presos estava a influenciadora Deolane Bezerra, que se diz inocente e vítima de uma perseguição. A mãe da influenciadora, Solange Alves dos Santos, também foi presa. Deolane chegou a ir para prisão domiciliar no início da semana, mas poucas horas depois voltou para o encarceramento após descumprir medidas determinadas pela Justiça.

A influenciadora disse à polícia que seus recursos vêm de honorários advocatícios – ela é advogada criminalista –, de publicidade e como influencer. Deolane afirmou em depoimento que fez publicidade para uma casa de apostas, mas que jamais operou de forma irregular e que todos seus bens são declarados.

Na operação que mirou Deolane Bezerra, o caso estaria relacionado com uma casa de apostas de propriedade da influenciadora chamado Zero Um Bet. Segundo a polícia, a influenciadora é suspeita de lavar dinheiro com o site. O secretário de Defesa Social do estado de Pernambuco, Alessandro Carvalho Liberato de Matos, afirmou que a plataforma seria uma forma de Deolane “canalizar para dentro da estrutura” recursos vindos de apostas e jogos como o "Tigrinho", que é proibido no Brasil.

Parte das "bets" que operam a serviço do crime disponibilizam a plataforma de apostas do "Tigrinho" em um cassino online onde, segundo a polícia, o sistema foi programado para que os apostadores percam sempre.  A promessa do jogo, no entanto, é de multiplicar recursos em até 2,5 mil vezes.

A "bet" suspeita da influenciadora foi criada em julho passado e tem capital social de R$ 30 milhões. A Gazeta do Povo tentou fazer contato pela rede social com a casa de apostas, mas até a publicação desta reportagem não obteve retorno. No site não constam telefones para contato nem e-mails.

A ramificação do grupo organizado exigiu a participação na operação de policiais civis de São Paulo, da Paraíba, do Paraná e de Goiás, além da Interpol e do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Ainda na investigação aparece outra "bet": a Esportes da Sorte que pertence a Darwin Henrique da Silva Filho, de quem Deolane comprou, segundo a polícia, um carro esportivo Lamborghini no valor estimado de R$ 3,9 milhões.

A investigação trata de indícios de prática de lavagem de dinheiro com cassino online e apostas esportivas da "bet", além da suspeita de lavagem de dinheiro para o jogo do bicho que viriam do pai do empresário, apontado pela polícia como proprietário de banca de bicho.

A defesa de Darwin Henrique da Silva Filho tem afirmado que seu cliente não opera de forma ilegal e que “a situação dos últimos dias, deflagrada pela operação Integration, presta um desserviço à nação e atenta contra o que deveria ser a sua finalidade: a verdade”. “Somos culpados por termos comprovação e funcionarmos dentro da legalidade. Temos a certeza da nossa inocência. Seguimos onde sempre estivemos, à disposição da Justiça”, segue a defesa.

Segundo Berti, a exemplo de outras formas de aposta, se a regulamentação do sistema não for bem operacionalizada, este será um caminho aberto à lavagem de dinheiro e de difícil controle. "Há uma lacuna operacional no controle eficaz dessas atividades, o que pode permitir que o crime organizado se beneficie do mercado desregulado ou mal supervisionado", avalia o especialista em Direito Penal.

O advogado disse não acreditar que se trate necessariamente de brechas na legislação, mas de uma deficiência na fiscalização e de regulamentações incompletas ou mal aplicadas que dificultam o controle sobre o mercado de apostas online.

“Além disso, a natureza global das apostas online cria um desafio adicional, pois os criminosos podem operar de países com legislações mais permissivas ou fracas, dificultando a jurisdição e a atuação das autoridades brasileiras”, acrescenta Berti.

Legislação, regulamentação e sistema de controle às "bets" precisam ser eficientes

As "bets" no Brasil não são uma terra sem lei, mas ainda há muitos flancos para serem explorados por criminosos enquanto a regulamentação completa não chega, avalia o economista Rui São Pedro. As operações policiais que miram movimentações ilegais deixam "bets" que operam ilegalmente sujeitas às penalidades previstas nas leis 13.756/2018, do fim do governo de Michel Temer (MDB), que trata da regulamentação das apostas esportivas, e 14.790/2024, que amplia alcance da legislação, exigindo que as empresas tenham endereço no Brasil, definindo a tributação e incluindo os jogos online.

A legislação passa pelo processo de regulação pelo Ministério da Fazenda com critérios técnicos e jurídicos. Quem quiser operar no país em 2025 terá de se habilitar pagando ao governo cerca de R$ 30 milhões para receber autorização para exploração comercial. Quem não fizer, será considerado ilegal logo no início do ano.

A Secretaria de Prêmios e Apostas continua recebendo pedidos de outorga e exploração do mercado brasileiro de apostas de quota fixa. Essa modalidade de aposta corresponde ao sistema de apostas que inclui eventos virtuais de jogos online e eventos reais de temática esportiva, como jogos de futebol, por exemplo. Nessa modalidade, o apostador ganhará caso acerte alguma condição do jogo ou o resultado final da partida.

Pedidos para registro e regulamentação de sites de apostas que deram entrada após agosto deste ano serão avaliados em 180 dias com resultado previsto somente para o ano de 2025. As que solicitaram antes do fim de agosto terão o processo analisado ainda neste ano.

Para o economista Rui São Pedro, o papel não está em proibir as apostas nem os sites, mas em regular, fiscalizar e adotar mecanismos que coíbam práticas ilegais e criminosas como a dominação das facções criminosas. “Se houver brechas, o crime vai se utilizar delas para lavar muito dinheiro e é o mau uso das bets que preocupa e muito”, completa.

No Rio de Janeiro, o Ministério Público estadual mapeou “bicheiros” que ampliaram seus negócios com o mundo das apostas online, as "bets", com criação de sites de aposta dentro e fora do Brasil. Em um dos casos investigados, a polícia interceptou uma mensagem na qual membros da organização confirmavam a criação de uma "bet" em Curaçao.

Outra investigação da polícia, no estado de Rondônia, que se iniciou há pelo menos três anos, apura a atuação de criminosos ligados às "bets" e jogos online em pelo menos oito estados brasileiros. As suspeitas são que um dos sites, chamado de Rondo Esportes, fazia a lavagem de dinheiro do tráfico de maconha e de cocaína. A partir dessa investigação, a participação das facções em "bets" não saiu mais do radar da polícia.

Segundo as investigações policiais, o dinheiro sujo entrava como apostas em sites e saía mascarado como prêmios lícitos, que eram concedidos a membros da organização criminosa. Em uma única semana a casa de apostas chegou a pagar R$ 13 milhões em prêmios. O site acabou suspenso pela Justiça. A reportagem tentou contato com os responsáveis pela plataforma, mas as redes sociais e demais canais estão desativados.

“Mas de nada adianta retirar um do ar. Fecha-se um, abrem-se diversos outros e o esquema será mantido se a fiscalização, o controle e a regulamentação não funcionarem”, reforça o economista.

As "bets", o crime organizado e o endividamento das famílias

Com mais de uma centena de pedidos de autorização para regulamentação e autorização à operação de sites de apostas esportivas tramitando na Secretaria de Prêmios e Apostas, a segunda preocupação está no endividamento das famílias.

“Quem aposta não é o milionário, muitas vezes são as pessoas que deixam de pagar uma conta essencial iludidas em tentar a sorte, mas não avaliam que estão lutando muitas vezes contra sistemas bem preparados, programados, que não foram projetados para as empresas perderem, mas para as pessoas perderem”, reforça o economista Rui São Pedro ao avaliar a necessidade de medidas à população sobre o jogo consciente.

“Isso vira uma bola de neve, além de estimular o vício. Se o governo quer regulamentar, precisa apresentar mecanismos eficazes de fiscalização e controle, senão veremos famílias cada vez mais endividadas e grupos criminosos cada vez mais fortalecidos”, alerta.

Na operação que levou a influenciadora Deolane Bezerra à prisão na semana passada, o delegado-geral da Polícia Civil de Pernambuco, Renato Rocha, afirmou que se estava “investigando uma organização criminosa que tem origem através da atuação no campo dos jogos ilegais”. “A organização criminosa também operava no ramo das bets, mas o crime de origem diz respeito aos jogos não autorizados pela legislação. As bets e outras empresas eram utilizadas na lavagem do dinheiro oriundo deste ramo ilegal de jogos”, detalha o investigador.

A utilização de sistemas "bets" legais ou que buscam regularização para “esquentar” sistemas fraudulentos também fez vítimas no Rio Grande do Sul. Em julho deste ano, uma operação realizada no estado investigou a suposta manipulação de resultados de jogos de futebol, beneficiando apostadores direcionados.

Segundo a polícia gaúcha, uma facção criminosa é suspeita de operar por meio de manipulação dos resultados das partidas esportivas do Campeonato Gaúcho. Segundo a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil, entre os alvos estão empresários, investidores, ex-membros de comissões técnicas e ex-jogadores de futebol.

O diretor do Grupamento de Operações Especiais da Core, delegado Marco Antônio Duarte de Souza, afirmou que se percebeu uma “conexão com o crime organizado estabelecido no estado”.  Segundo o delegado, alguns investigados também possuem conexão com o jogo do bicho.

“Ou seja, existe uma diversificação nos negócios das apostas bet, são muitas as formas de ganhar dinheiro e aplicar golpes, desde pessoas que se dizem especialistas em apostas e provocam pirâmides financeiras a facções que lavam seu dinheiro sujo dando um ar de recurso lícito. E tem gente que perde tudo o que tem apostando”, completou o economista Rui São Pedro.

Lei que regulamenta "bets" foi aprovada para aumentar arrecadação

Sob a justificativa de aumentar a arrecadação, no fim do ano passado o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, com alguns vetos, a lei que regulamenta as apostas esportivas online, das chamadas bets. A Lei 14.790/2023 determina que empresas e apostadores que praticam a atividade terão que recolher os tributos no Brasil a serem destinados à saúde, à educação e à segurança pública. A expectativa é de que parte do processo de regulamentação das empresas esteja concluída até o fim do ano.

Os deputados incluíram no texto as apostas pela internet, conhecidas também como cassinos online. Pela legislação, as empresas ficam com 88% do faturamento bruto para o custeio da atividade. Quanto ao produto da arrecadação, 2% serão destinados à Contribuição para a Seguridade Social e 10% divididos entre educação, saúde, turismo, segurança pública e esporte.

O tema polêmico dividiu opiniões no campo político. Para o relator da proposta no Senado, Ângelo Coronel, (PSD-BA), a regulamentação era necessária para que as empresas que praticavam esse tipo de atividade no Brasil recolhessem impostos que agora serão devidos.

O senador Eduardo Girão (Novo-CE) afirmou que a nova legislação legitima um sistema que, além de sujeito a fraudes, vicia o cidadão e distorce a natureza do esporte.

Ele também criticou um projeto que ainda está em tramitação no Senado para regularizar cassinos, bingos e o jogo do bicho. Segundo ele, a “volta de bingos e cassinos no Brasil” não se trata de uma pauta de direita ou de esquerda, mas de técnica, estatística social e ciência.

“[Basta] pegar os períodos em que tínhamos bingo no Brasil, que até o governo Lula acabou devido a tantos escândalos de corrupção, lavagem de dinheiro, de aposentados que perdiam até o último centavo dos seus rendimentos e aposentadoria jogando dia e noite”, avalia.

Girão, que foi presidente do time do Fortaleza, disse que é procurado com frequência sob argumentos de torcedores perdendo tudo e ficando endividados. “Além do envolvimento das organizações criminosas. É uma porta escancarada para a lavagem de dinheiro”, diz.

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