A nova investigação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), envolvendo falsificação de cartões de vacina contra a Covid-19, é objeto de críticas entre criminalistas e deputados, que apontam diversas falhas, como a falta de indícios de participação direta do ex-presidente no esquema e o fato de o caso ter sido incluído no inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as "milícias digitais".
A investigação surgiu de uma apuração interna da Controladoria-Geral da República (CGU), braço de fiscalização do governo federal, no início deste ano, quando o órgão avaliava divulgar o cartão vacinal de Bolsonaro, para cumprir uma promessa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de quebrar o sigilo de dados pessoais do antecessor, fixado na gestão passada.
Ao constatar inserções suspeitas de dados no sistema nacional que registra a aplicação de doses, a CGU encaminhou o caso para a Polícia Federal, anexando informações adicionais colhidas junto ao Ministério da Saúde. Dentro da PF, o caso foi parar nas mãos do delegado Fábio Shor, porque apareceu o nome do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid, que já era investigado por ele no âmbito do inquérito das milícias digitais, conduzida por Alexandre de Moraes no STF.
A PF descobriu que Cid mobilizou colegas e servidores para emitir cartão de vacinação falso para que sua mulher pudesse viajar para o exterior. Depois, vários outros funcionários próximos e auxiliares de Bolsonaro foram beneficiados com o esquema, até que, em dezembro do ano passado, dados falsos de vacinação foram inseridos no sistema ConecteSUS, pelo mesmo grupo, para registrar doses para o ex-presidente e sua filha menor de idade, de modo que pudessem emitir certificados de vacinação dentro do aplicativo do sistema e conta no portal do governo. Bolsonaro disse que não foi vacinado contra Covid-19 e negou que tenha adulterado os dados.
Especialistas consideram "frágil" argumento para incluir caso no inquérito de Moraes
O primeiro problema apontado por analistas consultados é o fato de o caso ter sido assumido por Alexandre de Moraes, no inquérito das milícias digitais, com base numa suposta conexão apontada pela PF, mas considerada frágil, entre os atos de inserção de dados falsos no sistema do Ministério da Saúde e o chamado “gabinete do ódio”, grupo que seria formado por outros ex-assessores de Bolsonaro para defender seu governo e criticar adversários nas redes sociais.
No inquérito das milícias digitais, Mauro Cid já era investigado por Moraes, mas por outro assunto, também não diretamente relacionado às redes sociais: transações financeiras que efetuava para pagar contas da família do ex-presidente. Antes, o ministro havia mandado quebrar o sigilo de suas comunicações por um terceiro motivo: o fato de ter ajudado Bolsonaro a divulgar um inquérito da PF sobre a invasão hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018 – o próprio TSE pediu a investigação por suposta violação de dados sigilosos, mas a Procuradoria-Geral da República (PGR) arquivou o caso por considerar que o inquérito não era sigiloso.
Assim como o inquérito das fake news, aberto em 2019, o das milícias digitais é amplamente criticado na comunidade jurídica em razão da ampliação de seu objeto. Oficialmente, tinha como alvo o jornalista Allan dos Santos, mas depois acabou servindo para investigar, entre várias outras coisas, conversas de empresários antipetistas em grupo de WhatsApp; questionamentos do ex-secretário da Receita Marcos Cintra sobre o sistema eleitoral; e até as críticas de executivos do Google sobre o projeto de lei das “fake news”, defendido por Moraes.
Para abarcar tudo isso, Moraes sempre menciona “ataques” ao Estado Democrático de Direito, e a conjectura de delegados da PF dedicados a essas investigações de que haveria uma “organização criminosa”, estruturada em diferentes núcleos – político, financeiro, etc. – responsáveis por disseminar notícias falsas contra as instituições. Nunca ficou claro quem exatamente participa desses grupos e como operam, nem que conteúdo ilícito espalham. Boa parte dos casos nunca levou a denúncias e processos criminais contra os investigados.
No caso da fraude em cartões de vacinação, a PF fez a ligação com as “milícias digitais” pelo fato de um dos interlocutores de Mauro Cid, o advogado e ex-militar Ailton Barros, que também o ajudou a inserir dados falsos no sistema, ter enviado a ele mensagens defendendo protestos contra o STF e uma intervenção militar. Além disso, a corporação aponta falas dos ajudantes contrárias à vacina, o que se ligaria ao discurso de desconfiança do ex-presidente sobre o imunizante contra a Covid-19 e que também seria reverberado pelas tais “milícias digitais”.
“O inquérito de fato tem que ter objeto limitado instaurado em tese para apurar fatos passados, não futuros. Está tendo algum nível de exacerbação. Isso de chamar os diretores das redes sociais é bastante controversa. Qual o crime que cometeram? Nenhum. Por serem contra o projeto de lei? No caso de Bolsonaro, poderia até ter crime, mas deveria ser instaurado inquérito novo, e levando em conta que não tem mais prerrogativa, o foro seria a Justiça Federal de primeira instância em Brasília. A partir do momento que deixou o mandato, perdeu a prerrogativa. Então, sim, é perigoso ter esse tipo de inquérito, abarcando qualquer fato, sobretudo futuros”, diz o advogado Matheus Falivene, mestre e doutor em Direito Penal pela USP.
Falta de indícios da participação de Bolsonaro
Outro problema no caso, segundo analistas consultados pela reportagem, é a falta de indícios da participação direta de Bolsonaro na inserção dos dados e emissão de cartões falsos de vacinação.
Embora os dados dele e de sua filha tenham sido alterados para que fosse atestada a vacinação, o inquérito da PF ainda não apontou uma ordem ou aquiescência do ex-presidente para o ato. É o que afirmou a Procuradoria-Geral da República (PGR) em parecer enviado a Moraes no qual opinou contra a busca e apreensão realizada na quarta-feira na casa de Bolsonaro.
“Diversamente do enredo desenhado pela Polícia Federal, o que se extrai é que Mauro Cesar Barbosa Cid teria arquitetado e capitaneado toda a ação criminosa, à revelia, sem o conhecimento e sem a anuência do ex-Presidente da República Jair Messias Bolsonaro”, escreveu a subprocuradora Lindôra Araujo.
Ela ainda ponderou que o ex-presidente e sua família tinham passaporte diplomático e, com ele, não precisariam comprovar vacinação contra a Covid para entrar nos Estados Unidos. Os dados falsos foram inseridos no ConecteSUS em 21 de dezembro, e retirados no dia 27, pouco antes do embarque de Bolsonaro e sua família em direção à Flórida, no final do mandato presidencial.
Outro argumento apontado por Lindôra é o fato de que Bolsonaro sempre disse que não se vacinou. Uma eventual autorização para comprovar que teria se vacinado seria “desnecessária”, “absolutamente paradoxal” e, caso revelada, traria a ele “prejuízo político irreparável, justamente no ano em que concorreria a um novo mandato como Presidente da República”.
Para o criminalista Rafael Paiva, mestre e professor de Direito Penal, o inquérito conseguiu demonstrar bem a materialidade do crime, mas não a suposta autoria de Bolsonaro.
“O que justificaria a inserção dos dados, para emissão das carteiras, é algo que chama a atenção. Mas isso não é suficiente para responsabilização criminal. Por isso as investigações são importantes. Os presos [ex-auxiliares de Bolsonaro] serão chamados a depor e podem ser instados a uma delação e talvez saia informação daí. Mas são elucubrações”, diz.
Apoiadores de Bolsonaro na Câmara criticam operação
No meio político, entre apoiadores de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, houve indignação com a operação. Numa reunião com colegas na quarta-feira (3), o presidente da Comissão de Segurança Pública, Ubiratan Sanderson (PL-RS), que é deputado e também policial federal, criticou as prisões pelo fato de os crimes envolverem falsificação de cartões de vacina, um delito menos grave, em sua opinião. “Aqui temos delegados de polícia, promotores, agentes federais, coronéis... Ora se um cartão de vacina dá azo [motivo] para prender alguém?”, afirmou, durante discurso a deputados da comissão.
Para ele, algo semelhante ocorreu com o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, preso por Moraes há mais de três meses por suposta omissão nos ataques às sedes dos Poderes em 8 de janeiro. “Com o objetivo de tortura psicológica, buscaram algo que não acharam. Quando botam um cartão de vacina, é porque não tem nada para achar mais”, disse.
O deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB) também vê excesso de Alexandre de Moraes nas investigações. “Uma ação totalmente desastrosa, viciada, sem amparo legal, ao arrepio da lei. É um inquérito aberto de ofício totalmente inconstitucional. Sem concordância do Ministério Público. O presidente não tem mais foro privilegiado, nem os outros investigados têm. Não estou falando da Suprema Corte em si, porque ela tem que existir e eu respeito, eu defendo. O que falo é da atuação de alguns ministros que rasgam a Constituição constantemente”, disse o deputado, que também criticou uma “pequena parte” da PF que aceita cumprir decisões que, segundo ele, são inconstitucionais.
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