O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendeu, na terça-feira (16), todos os inquéritos e processos judiciais em que tenha havido compartilhamento de informações financeiras de investigados ou réus sem autorização da Justiça. A decisão cautelar atendeu a um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e envolve dados fornecidos pela Receita Federal, Banco Central e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
A medida foi tomada em um processo que discute os limites das informações que o Coaf pode compartilhar com órgãos de investigação sem supervisão e autorização judicial. A ação deve ser julgada pelo plenário do STF em novembro.
A decisão de Toffoli foi alvo imediato de críticas por causa de seu potencial explosivo. Membros do Ministério Público foram os primeiros a externar preocupações mais amplas: 1) porque a lei não estabelece a necessidade de autorização judicial para compartilhamento de indícios de crimes pelo Coaf; 2) porque o Coaf opera de acordo com padrões internacionais a que o Brasil se comprometeu a respeitar; 3) porque serão paralisadas inúmeras investigações não só de corrupção e lavagem de dinheiro, mas também de tráfico de drogas e de pessoas, por exemplo.
Como o processo em que Toffoli se manifestou tramita no STF desde 2017, a decisão cautelar durante o recesso do tribunal despertou ainda a preocupação de que ela seja muito mais política do que jurídica. Veja três pontos para entender as críticas à decisão:
1) Potencial danoso da liminar de Tofolli é grande
O relatório que o Coaf enviou ao MP do Rio de Janeiro, que está entre as bases da investigação que envolve o senador Flávio Bolsonaro, é apenas uma das 10.975 difusões que o órgão fez em 2018, para autoridades do Brasil e do exterior, dos 7.345 Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) produzidas no mesmo ano, a partir das 330.895 comunicações de operações financeiras que recebeu dos setores regulados, envolvendo 378.334 pessoas físicas ou jurídicas. O número de difusões é maior do que o de RIFs porque um mesmo relatório pode ser enviado para mais de uma autoridade.
Os RIFs são produzidos a partir das comunicações de operações financeiras de que trata a Lei nº 9.613/1998, que criou o Coaf, e do recebimento de informações sobre indícios de lavagem de dinheiro identificados por autoridades nacionais e da troca de informações com Unidades de Inteligência Financeira (UIFs) de outros países. Todos são procedimentos previstos pela lei e pelas normas internacionais.
Em 2018, o Coaf realizou ainda 7.446 intercâmbios de informações com autoridades nacionais. As autoridades policiais e o Ministério Público responderam por 85% do total de intercâmbios realizados pelo órgão. Além disso, o Conselho realizou 356 intercâmbios de informações com autoridades estrangeiras, tendo recebido 187 e enviado 159. O Coaf tem 42 Memorandos de Entendimentos assinados com UIFs de outros países. Essa é a extensão das investigações que a decisão de Toffoli pode paralisar.
Para se ter uma ideia, no caso do mensalão, foram 44 documentos do Coaf só em 2005 e 2006. Um deles mostrava, por exemplo, que Marcos Valério, condenado como operador do esquema, movimentou em dinheiro mais de R$ 70 milhões entre 2003 e 2005.
Na Lava Jato, o Coaf também foi crucial para o início da operação e em diversas fases da investigação. Só até 2015, com um ano de operação, o Coaf já tinha identificado R$ 51,9 bilhões em movimentações atípicas mostradas em 267 relatórios feitos desde 2011 a pedido da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF).
A decisão deve afetar também operações contra o tráfico de drogas. Nesta quarta-feira (17), o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio, declarou à BBC que “todas as investigações (que utilizaram dados do Coaf e da Receita Federal), inclusive as do PCC, vão ficar paradas por meses e não vamos poder obter novos dados".
Outro tipo de operação que deve ser afetada são as relativas ao tráfico de pessoas. Na Operação Princesas do Sertão, por exemplo, os relatórios do órgão foram essenciais para a identificação e o rastreamento de valores pagos aos operadores de uma quadrilha internacional que aliciava mulheres em Feira de Santana, na Bahia, para prostituição em clubes de Ibiza, na Espanha, e Brescia, na Itália.
2) Interpretação da lei ainda precisa de palavra final do STF
O Coaf opera nesses termos desde a sua criação, em 1998, embora o número de RIFs, comunicações e intercâmbios tenha mais que quadruplicado desde 2011. A Lei 9.613/1998 prevê que as instituições sujeitas a controle devem enviar ao Coaf as operações que possam constituir “sérios indícios” de crimes e que o conselho, por sua vez, informará às autoridades competentes práticas ou indícios de crimes.
Desde 2001, com a edição da Lei Complementar 105, o Coaf não precisa de autorização judicial para ter acesso às movimentações financeiras, embora a comunicação dos dados deva ocorrer sempre em sigilo. A edição da lei causou polêmica que terminou parcialmente resolvida pelo STF em 2016, quando o tribunal, embora sem discutir especificamente o caso do Coaf, decidiu que o compartilhamento de informações sigilosas no âmbito da administração pública, desde que permaneçam em sigilo, não precisa de autorização judicial.
Com base nessa decisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu, em 2016, que o repasse de dados sigilosos ao Coaf é regular. Em 2017, o STJ decidiu que, se a Lei 9.613/1998 diz que o Coaf deve informar às autoridades indícios ou práticas de crimes, as autoridades podem requerer ao Coaf que analise as operações de pessoas investigadas.
No entanto, de acordo com a garantia constitucional do sigilo bancário, o STJ passou a entender que o Coaf pode até comunicar os indícios à autoridade policial e ao Ministério Público, mas não o conteúdo dos dados protegidos pelo sigilo, a que se deve ter acesso somente por meio de decisão judicial.
Gianpolo Smanio comentou esse ponto na entrevista à BBC: "Parece que está havendo uma confusão entre o que é meio de prova e o que é prova. As informações do Coaf são um meio de prova. É um sistema de alerta. A partir dos indícios que elas trazem, nós pedimos autorizações para quebrar sigilos". A decisão final, porém, depende ainda de manifestação do STF.
3) País precisa respeitar normas internacionais
Desde 1999, o Brasil faz parte do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro (Gafi/FATF). As operações do Coaf, que é a UIF brasileira, seguem as recomendações do grupo. A Nota Interpretativa da Recomendação 29, por exemplo, diz que “a UIF deverá ser capaz de disseminar, espontaneamente ou a pedido, as informações e os resultados de suas análises para as autoridades competentes relevantes”.
Como a implementação das regulamentações pelos países membros são avaliadas por instituições internacionais, membros do Ministério Público alertam que a decisão de Toffoli pode expor o Brasil a pressões da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), do Escritório para o Crime da ONU (UNDOC), além do próprio Gafi, uma vez que enfraqueceria a capacidade do país de fazer cooperação internacional contra os crimes de terrorismo e lavagem de dinheiro, já que cria uma etapa não prevista em lei no diálogo entre a UIF e os órgãos de persecução criminal.
A própria criação do Coaf vem na esteira de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, principalmente os resultantes da Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), que é base da edição da Lei 9.613/1998. O COAF coordena ainda a participação brasileira em diversas organizações multigovernamentais de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo: além do Gafi, o Grupo de Egmont de Unidades de Inteligência Financeira e Grupo de Ação Financeira da América Latina (Gafilat).