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Além de colocar em xeque a política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na região, o envolvimento do Brasil na tensão política da Venezuela também pode respingar em fatores internos. Para analistas ouvidos pela reportagem, o tema pode ser levado em consideração pelos brasileiros e aumentar a rejeição do PT nas eleições municipais de outubro.
Com um alinhamento histórico a ditaduras latino-americanas, o PT voltou a evidenciar essa aproximação ao reconhecer a reeleição fraudada do ditador venezuelano, Nicolás Maduro. Em nota assinada pela Nacional Executiva, a legenda parabeniza o autocrata e celebra a "jornada pacífica, democrática e soberana" do processo eleitoral no país.
Tal posicionamento evidenciou um racha na legenda e também no governo, com figuras se opondo à declaração do partido do presidente Lula. Na avaliação de especialistas, o declarado apoio do PT a Maduro pode boicotar os candidatos da legenda e os apoiados por ela durante as disputas municipais, sobretudo nas principais capitais dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás.
"Nas regiões com menos habitantes esse é um tema que não entra tanto e a disputa é muito local, mas nas regiões com mais de 100 mil habitantes pode prejudicar bastante [os candidatos apoiados por Lula] porque é um tema que oposição vai usar contra ele”, pontua a cientista política Deysi Cioccari.
Além disso, Vito Villar, analista de política internacional da BMJ Consultores Associados, pontua ainda que a política externa é um tema de interesse dos brasileiros e que pesa em períodos eleitorais. Discussões envolvendo a Venezuela, contudo, têm um peso depreciativo e devem pesar contra Lula e seu partido.
“Uma coisa que a gente tem no governo atual - e que não teve nos dois primeiros mandatos do presidente Lula e no próprio governo Dilma - é o custo político interno de você ser abertamente favorável ao Nicolás Maduro. Acho que não tem nenhum país no mundo hoje que carregue uma visão tão negativa na visão da opinião pública brasileira quanto a Venezuela”, pontua Villar.
Ditadura na Venezuela é vista como negativa pelos brasileiros
Vito Villar explica que assuntos sobre política externa começaram a ganhar maior peso entre os brasileiros. “Dificilmente isso acontece em nações em desenvolvimento. Mas, por algum motivo, o eleitorado brasileiro está tendo um olhar bastante atento para o que acontece na política externa”, observa.
Lula ajudou a "popularizar" assuntos internacionais ao cometer erros diplomáticos gritantes que causaram indignação e repulsa entre muitos brasileiros. Entre eles estão a comparação que fez no ano passado da guerra de Israel contra o terrorismo com o Holocausto, e a afimação enviesada de que a Ucrânia era tão culpada quanto a Rússia pela invasão de 2022.
Após voltar ao poder, uma das primeiras ações de Lula foi restabelecer o relacionamento diplomático com a Venezuela, que havia sido interrompido pelo seu antecessor, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O petista ainda recebeu o ditador venezuelano no país e defendeu o regime chavista.
Na ocasião, disse que a Venezuela era vítima de uma “narrativa de antidemocracia e autoritarismo”. A declaração rendeu a Lula críticas de opositores, mas também de aliados esquerdistas, como o então presidente da Argentina Alberto Fernandéz e Gabriel Boric, presidente chileno. Para especialistas ouvidos pela reportagem, o tema tem virado consenso para os brasileiros.
“[A situação na Venezuela] é um tema que já foi muito polarizado no Brasil, mas hoje eu acredito que não é mais. É um tema que tem uma visão negativa pura e simplesmente”, avalia Villar. Conforme relembra o especialista, até mesmo uma base petista e membros do governo discordam do posicionamento de Lula e do PT sobre a situação política na Venezuela e sobre Nicolás Maduro.
Governo tem cautela, mas PT reconhece vitória de Maduro em eleições marcadas por irregularidades
Na última segunda-feira (29), o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela anunciou a reeleição do ditador Nicolás Maduro com 51% dos votos. De acordo com o CNE, a apuração de 80% das urnas já apontava para um resultado "irreversível". Para o órgão, o segundo lugar no pleito ficou com Edmundo González, da Plataforma Unitária Democrática (PUD), o principal nome da oposição, com 44% dos votos.
Os resultados, contudo, foram divulgados sem a devida comprovação e são contestados pela oposição e por outros países. Desde então, o regime chavista tem sido pressionado a divulgar atas eleitorais que comprovem os resultados anunciados pelo CNE. Mas não há expectativa de quando elas serão divulgadas e se isso realmente irá acontecer. A suspeita sobre os números ganhou ainda mais peso depois que o site da autoridade eleitoral foi retirado do ar, inviabilizando o acesso aos documentos eleitorais.
Devido à falta de comprovação, o Brasil optou por esperar para se posicionar oficialmente sobre o resultados das eleições. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que aguarda "a publicação pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE) de dados desagregados por mesa de votação".
O Palácio do Planalto se uniu a México e Colômbia para se posicionar sobre o tema. "Acompanhamos com muita atenção o processo de escrutínio dos votos e fazemos um chamado às autoridades eleitorais da Venezuela para que avancem de forma expedita e divulguem publicamente os dados desagregados por mesa de votação. As controvérsias sobre o processo eleitoral devem ser dirimidas pela via institucional. O princípio fundamental da soberania popular deve ser respeitado mediante a verificação imparcial dos resultados", diz o documento assinado por Lula e os presidente do México e Colômbia.
Apesar do posicionamento cauteloso adotado pelo Brasil oficialmente, o PT foi na direção oposta e reconheceu a reeleição de Maduro. O presidente Lula, filiado e fundador da legenda, tentou se esquivar das tentativas de enquadrá-lo no mesmo posicionamento. "Eu acho que o PT fez o que tem de fazer", disse Lula após ser questionado pela nota divulgada pelo seu partido.
"O PT não tem de pedir para o governo para fazer as coisas. O PT é um partido que tem autonomia, embora seja o meu partido, não precisa pedir licença para mim: ‘Lula, eu posso fazer isso?’. Não. Faça o que você se sentir melhor fazendo. E o governo faz aquilo que se sente melhor fazendo”, afirmou o mandatário em entrevista à TV Centro América, filiada da TV Globo no Mato Grosso. Lula não reconheceu a reeleição de Maduro, mas voltou a fazer acenos ao regime chavista na mesma entrevista.
Apoio do PT a Maduro pode prejudicar candidatos nas eleições
O PT tenta se recuperar da derrota nas urnas nas últimas eleições municipais de 2020, quando não conseguiu eleger candidatos para nenhuma das capitais do país. Para as eleições de outubro, a legenda tem candidatos filiados em 11 capitais brasileiras.
Em busca de um resultado melhor no pleito, o Partido dos Trabalhadores já tem apostado, inclusive, no apoio a candidatos de centro e também de direita. A legenda ainda abriu mão de lançar candidatos próprios em todas as capitais e apoiar postulantes de partidos da mesma linha ideológica com a intenção de barrar aqueles que são apoiados por Bolsonaro.
O posicionamento de Lula sobre a Venezuela não deve definir os votos dos cidadãos, mas deve ter um peso na rejeição de candidatos petistas. A cientista política Deysi Cioccari avalia que os nomes apoiados pelo PT podem sair em desvantagem na corrida eleitoral. De acordo com ela, o reconhecimento do partido pela reeleição de Nicolás Maduro - em um processo marcado por manobras eleitorais e opressão à oposição - enfraquece a legenda.
“Entre os eleitores medianos, aquelas pessoas que não queriam votar no Bolsonaro e votaram no PT como uma alternativa, elas podem se questionar agora. Entre essas pessoas, pode ter uma perda de apoio”, pontua Cioccari. Na avaliação da especialista, as falas podem virar munição para a oposição na disputa eleitoral e enfraquecer os nomes apoiados por Lula e seu partido.
“Nesse momento, pode vir à tona aquele discurso muito forte dos anos 80 e 90, que dizia que o PT é comunista e quer colocar uma ditadura no Brasil. Isso funcionou muito e ainda funciona entre eleitores do ex-presidente Bolsonaro e é muito fácil de voltar para o resto da população. Então [o tema Venezuela] virou uma arma contra o PT e uma arma chancelada pelo Lula”, avalia a cientista política.
Tema da Venezuela é discordância entre petistas
Apesar do PT ter parabenizado o autocrata venezuelano pelo suposto novo mandato, Lula não reconheceu os resultados das eleições que deram a reeleição para Nicolás Maduro. O petista, contudo, tratou o processo eleitoral como democrático – ainda que em meio a denúncias de opressão à oposição e desclassificação de opositores. “Eu estou convencido que é um processo normal, tranquilo”, disse o mandatário.
As declarações não foram acompanhadas por parlamentares da legenda e nem partidos aliados. Guilherme Boulos (PSOL-SP), candidato de Lula para a prefeitura de São Paulo, evitou grandes comentários, mas disse que “acompanha com preocupação” a situação no país vizinho. O deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), ex-líder do partido na Câmara, divergiu de seu partido e afirmou que Maduro tem a “postura de um ditador".
O líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), foi um dos que também se manifestou de maneira crítica ao que está acontecendo na Venezuela. A ministra do Meio-Ambiente, Marina Silva, também discordou do partido de Lula e afirmou que a Venezuela “não se configura como uma democracia”.
Para analistas, a Venezuela evidencia um racha na legenda e também no governo. “Existe um núcleo mais duro, onde está Gleisi, que sempre existiu ali dentro das estruturas do PT. Mas também existe uma ala mais moderada. Quando ele coloca o Haddad no Ministério da Fazenda, mas mantém a Gleisi do seu lado, isso mostra que Lula está oscilando entre esses dois lados”, avalia a cientista política Deysi Cioccari.
Cioccari pontua ainda que Lula tenta transitar entre esses dois lados ao enxergar a necessidade de um PT mais moderado para alcançar diferentes núcleos eleitorais, mas que os atuais posicionamentos sobre a Venezuela evidenciam seu lado extremista. "O PT é um partido vertical e o Lula manda em tudo no partido", pontua a especialista.
Nesse sentido, apesar da tentativa de Lula em se esquivar da nota da legenda, os analistas ouvidos pela reportagem acreditam que é difícil afastar o mandatário brasileiro dos posicionamentos adotados pelo partido que ele fundou.
A reportagem buscou o posicionamento do PT e da assessoria da deputada e presidente do partido, Gleisi Hoffmann, mas não obteve retorno.