Uma das coisas mais certas no Brasil é que, sempre que uma crise envolve a Presidência da República, o tema parlamentarismo volta a rondar o cenário político. Este ano, com as trocas de farpas entre o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e o Congresso, deputados com mais tempo de Câmara se movimentaram em torno da ideia de propor que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), estabeleça uma comissão para um “debate profundo” sobre a mudança de regime.
Com a bandeira branca sinalizada de ambos os lados – Bolsonaro e Maia trataram das "caneladas" trocadas recentemente como “página virada” e “assunto encerrado” – o tema deve esfriar. Mas nem tanto. Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o presidente nacional do Cidadania (ex-PPS), Roberto Freire, defendeu a mudança para o parlamentarismo para o próximo governo, a ser eleito em 2022. O regime é uma bandeira histórica do partido, que informa que o assunto segue em constante discussão interna, ainda que, por enquanto, não haja uma ação formal em curso no Congresso por parte da legenda.
Em 29 de maio do ano passado, a então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, pautou uma ação que discutia se o Congresso poderia utilizar uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para instituir o parlamentarismo. Uma semana depois, a ministra retirou o julgamento da ação da pauta da corte.
Antes disso, em agosto de 2017, o então presidente Michel Temer (MDB) disse, em entrevista ao programa do colunista Reinaldo Azevedo na Band News FM, que a adoção do parlamentarismo a partir do ano seguinte “não seria despropositado”. Sua defesa ao regime aconteceu logo após se livrar de uma investigação por corrupção pela Câmara dos Deputados. Curiosamente, o ex-deputado Eduardo Cunha, preso desde outubro de 2016 e condenado a 15 anos de prisão por recebimento de propina em contas no exterior por contratos da Petrobras, também defendeu a adoção do sistema.
Em julho de 2017, o então presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), afirmou que uma comissão para discutir a implementação do regime parlamentarista seria instalada no mês seguinte. Em março de 2016, a casa havia aprovado um requerimento para a criação de uma comissão para analisar uma possível mudança para o parlamentarismo ou semipresidencialismo. Senadores da oposição conseguiram convencer o presidente da casa à época, Renan Calheiros (MDB-AL), a postergar a instalação da comissão. As discussões ocorriam em meio ao embate entre governo e legislativo, que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT).
Diferença entre presidencialismo e parlamentarismo
A principal diferença entre os dois regimes políticos está na divisão de forças entre os poderes Executivo e Legislativo. No parlamentarismo, as ações executivas do governo são exercidas pelo primeiro-ministro, cuja nomeação precisa do aval da maioria parlamentar, e cabe ao presidente da República a representação do Estado, por exemplo, em questões internacionais. No presidencialismo, essas duas atribuições se concentram nas mãos do chefe do Executivo.
Com algumas variações, o parlamentarismo é o sistema utilizado por quase todos os países europeus, enquanto o presidencialismo é o modelo adotado pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da América Latina, além de grande parte da África e da Ásia Central.
No parlamentarismo clássico, aplicado em monarquias constitucionais como o Reino Unido e em repúblicas democráticas como a Alemanha, o Congresso escolhe o primeiro-ministro, normalmente o líder do partido ou da coalizão majoritária. O monarca ou um presidente eleito indiretamente pelo Parlamento exerce a chefia de Estado. Em países como França e Portugal, há uma variação conhecida como semipresidencialismo, com eleição direta para presidente da República, que indica o primeiro-ministro. A indicação, no entanto, precisa ser aprovada pelos parlamentares.
Retórica
“Para mim, [a discussão sobre a volta do parlamentarismo] funciona como retórica para reduzir o poder do Executivo”, analisa Maria do Socorro Braga, cientista política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “A minha crítica em cima dessa visão é que, em um sistema parlamentarista, a gente tem partidos que têm quase a maioria [no parlamento], e a gente não tem isso no Brasil. Antes disso, a gente vai precisar mudar certos dispositivos e instituições no país, mudar o sistema eleitoral, o tipo de forma, tem muito mais mudanças a serem desenvolvidas. Penso que hoje não há clima nenhum para fazer algum tipo de reforma política séria”, acrescenta.
Ela destaca que, nos momentos recentes de crise, tanto no impeachment da Dilma quanto nas acusações que envolveram Temer, vê-se o Legislativo independente do Executivo, agindo de forma proativa - como acontece em alguns regimes parlamentaristas.
A cientista política entende que Bolsonaro demonstra dificuldades para manejar os mecanismos que fazem o Executivo forte. Uma dessas inabilidades está na distribuição, a seu ver, equivocada de poder. “É preciso distribuir, dividir poder. No que ele [Bolsonaro] não faz isso, não consegue formar uma base parlamentar para governar. Ele colocou generais para ocupar ministérios, não vai funcionar assim. Ou ele coloca os partidos que o apoiam para dentro, e assim ele forma uma base, ou ele vai ficar refém do Legislativo, como a Dilma ficou do [ex-deputado Eduardo] Cunha.”
Professor de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Roberto Neves Costa amplia a discussão para além da – até o momento demonstrada – falta de habilidade do atual presidente da República no relacionamento com o Congresso. Ele defende que é preciso considerar inabilidades também no Legislativo, e que isso não seria resolvido pela simples adoção do regime parlamentarista. “Só temos problemas no âmbito do Executivo? O funcionamento do governo também seria um problema no parlamentarismo, só que institucional e politicamente mais restrito, embora dificilmente passasse por uma alteração profunda em apenas 100 dias de governo.”
O ponto positivo a favor do parlamentarismo, explica, seria uma forma menos emocional e errática de composição de um governo desde o processo eleitoral, com um significado mais programático e previsível atribuído ao próprio governo, e uma referência mais precisa dos interesses em jogo tanto para a oposição quanto para a população sobre o que esperar do Executivo.
“Normalmente, quando o presidencialismo de coalizão funciona, a gente tem uma agenda em comum entre o Legislativo e o Executivo”, retoma Maria do Socorro. “A ideia é que os partidos que apoiam o presidente, que por sua vez divide o poder no Executivo, colaborem com o Executivo na esfera legislativa.” O que evitaria, por exemplo, as tão tradicionais ameaças de pautas-bomba, ou "pacotes de maldades" por parte de parlamentares como forma de colocar o governo federal contra a parede.
Plebiscito de 1993
O país passou por momentos parlamentaristas em algumas ocasiões: no século 19, durante o 1º e o 2º Reinados (com o imperador exercendo o Poder Moderador e nuances diferentes do parlamentarismo clássico), e entre 1961 e 1963, durante o governo João Goulart. Uma expectativa de adoção do regime pairou sobre o país por alguns meses entre 1987 e 1988, até que a disputa política na Assembleia Nacional Constituinte, que escreveu a Constituição de 1988, manteve a tradição presidencialista.
Plebiscito realizado em 21 de abril de 1993 confirmou, com larga vantagem, a preferência da população pelo regime que vigora no país até hoje: enquanto 24,87% optaram pelo parlamentarismo, 55,58% defenderam o presidencialismo, e 19,55% votaram em branco ou nulo.
“O plebiscito de 1993 é a confirmação da forma precária como o parlamentarismo vem sendo colocado como alternativa de modelo político, seja entre aqueles que estão ocupando cargos políticos, seja para a sociedade brasileira”, critica Costa. Para ele, seria temerário um movimento de defesa do parlamentarismo nos moldes do debate eleitoral do ano passado, com a polarização política levada a níveis extremos. “O debate sobre o parlamentarismo só ganharia substância se mostrasse as mazelas não apenas do governo atual, mas do presidencialismo e, principalmente, fosse não apenas aceito como também compreendido pela população”.
Costa diz ser importante estudar detalhadamente esse fenômeno que, a cada crise política, traz o assunto da adoção do regime parlamentar à tona, e por entender que o tema é apresentado de forma rasa nesses momentos de tensão entre Legislativo e Executivo, evita até chamar de debate. “Não podemos desprezar a oportunidade que essas situações trazem para pensar formas de aprofundar a democracia e tirar dela proveitos para a sociedade, mas não se pode vincular este debate às ondas de crise do governo em vigência, como pode estar acontecendo agora”.
PEC do ‘semipresidencialismo’
Em 2015, foi lançada a Frente Parlamentar Franco Montoro em Defesa do Parlamentarismo, com apoio de 225 deputados. A frente defende a PEC 20/95, do ex-deputado federal Eduardo Jorge (PV-SP). A PEC se aproxima mais do semipresidencialismo francês do que do parlamentarismo clássico inglês. Ainda não foi votada em plenário e prevê a realização de um referendo após ser aprovada pelo Congresso.
Pela proposta, a administração do país caberia ao presidente de um conselho de ministros (primeiro-ministro). O nome seria indicado pelo presidente da República, mas precisaria ter o programa de governo aprovado por maioria absoluta da Câmara dos Deputados. Em caso de duas rejeições, caberia à Câmara fazer a indicação.
Esse conselho responderia coletivamente perante a Câmara dos Deputados pela política do governo e pela administração federal. O presidente do Conselho de Ministros deveria ter idade mínima de 35 anos e precisaria obrigatoriamente ser um deputado ou senador. O presidente continuaria sendo eleito por voto direto e teria as funções de presentar o Brasil internacionalmente e comandar as Forças Armadas. Já o primeiro-ministro cuidaria apenas da gestão do Poder Executivo.
A alteração para o regime parlamentarista daria mais força à Câmara dos Deputados. Ela poderia ser dissolvida, porém, a pedido do presidente, em caso de uma sequência de discordâncias com o primeiro-ministro. O Senado e o presidente ficariam com funções institucionais, menos práticas. O gabinete e o primeiro-ministro ganham poder e, ao mesmo tempo, são mais vigiados pelos deputados.
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