Ouça este conteúdo
O plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu na tarde desta quarta-feira (9) que não lhe compete legislar sobre a destinação dos presentes recebidos por presidentes da República. A decisão, que permite que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mantenha em seu acervo pessoal dois relógios de luxo recebidos durante seu primeiro mandato, pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no inquérito sobre as joias sauditas, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
O advogado Adriano Soares da Costa avalia que, com essa decisão, o TCU está dizendo que não existe norma sobre o tema e que, por sua natureza, não pode legislar a esse respeito. Na prática, ao declinar da competência, o tribunal deixou de entrar no cerne na questão, o que torna claro um aspecto relevante: fosse um ilícito a incorporação, por certo o TCU se pronunciaria, entendendo tratar-se de bem público. Não foi o caso.
A decisão desta quarta-feira mudou entendimento anterior do TCU a respeito dos presentes recebidos por presidentes da República. Em setembro de 2016, o tribunal determinou à Secretaria de Administração da Presidência da República e ao Gabinete Pessoal do Presidente da República que incorporassem ao patrimônio da União todos os documentos e presentes recebidos, pelos presidentes da República, a partir da publicação do Decreto 4.344/2002, excluindo apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo próprio.
Na ocasião, o TCU determinou que fossem identificados e localizados 568 bens recebidos por Lula em seus dois primeiros mandatos, e 144 itens recebidos pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Todos estavam listados no Sistema de Gestão de Acervos Privados da Presidência da República (Infoap) e deveriam ser incorporados ao acervo público.
Os relógios de que trata a representação julgada agora pelo TCU foram excluídos da lista por se tratar de presentes entendidos como personalíssimos. A representação que levou à nova decisão pelo plenário do Tribunal foi apresentada pelo deputado federal Ubiratan Sanderson (PL-RS) em agosto do ano passado.
Em seu pedido, Sanderson solicitou ao presidente do TCU, Bruno Dantas, que fosse “apurada a legalidade da ausência de registro na lista de presentes oficiais da Presidência da República de relógio dado ao Brasil, em 2005, pelo então presidente da França, Jacques Chirac, em comemoração ao Ano do Brasil na França, bem como, liminarmente, seja determinada sua imediata devolução ao acervo público”.
Defesa de Bolsonaro solicitou mesmo tratamento dado a Lula no caso dos relógios
Na semana passada, a defesa de Bolsonaro pediu à Procuradoria-Geral da República (PGR) que arquive o inquérito que investiga o caso das joias. Os advogados do ex-presidente pediram que ele tivesse o mesmo tratamento dado ao presidente Lula, que teve arquivado um pedido de investigação sobre os relógios de luxo.
A defesa de Bolsonaro afirmou que Lula "manteve consigo relógios de luxo recebidos de presente em seu primeiro mandato – como um Piaget recebido do então presidente francês Jacques Chirac avaliado em R$ 80 mil e um Cartier Santos Dumont de cerca de R$ 60 mil dado pela própria fabricante".
Em novembro do ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes arquivou o pedido de investigação feito pelo deputado Rodrigo Valadares (União-SE). Ele solicitava que Lula fosse investigado, pela posse dos relógios de luxo e de um colar de ouro branco, juntamente com Bolsonaro no caso das joias.
Decisão do TCU não determina e nem vincula decisões do Judiciário
Antonio Carlos de Freitas Jr, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, admite que a decisão do TCU pode beneficiar a defesa de Bolsonaro no caso das joias. No entanto, dada a natureza do tribunal, que é um órgão com a função de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país, suas decisões não têm o poder de vincular quaisquer outras decisões da justiça.
Deste modo, a interpretação do TCU de que não há uma lei específica e explicativa sobre o que pode ficar o que não pode ficar no acervo pessoal quando um presidente da República recebe um presente, não necessariamente precisa ser seguida por órgãos do judiciário, como o STF, por exemplo, e que, por essa razão, a interpretação de que o TCU “liberou geral” não procede.
O jurista ainda lembra que, no caso das joias, Bolsonaro é acusado não somente de manter os itens em sua posse, mas há outras condutas envolvidas no inquérito, como a venda, a não declaração de alguns itens, entre outros pontos. No entanto, ele avalia que mesmo que a nova interpretação do TCU não afaste totalmente a ilicitude no caso das joias, pode diminuir sua gravidade.
A defesa de Bolsonaro já se pronunciou afirmando que usará o novo entendimento do TCU em prol do ex-presidente. O advogado Paulo da Cunha Bueno, que representa Bolsonaro no caso das joias, afirmou ao jornal o Estado de S. Paulo, pouco depois do julgamento, que irá utilizar a decisão.
“É uma decisão acertada, vamos usar, sim [na defesa de Bolsonaro no caso das joias]. Não há legislação específica e o TCU estava legislando, como bem pontuou o ministro Jorge Oliveira”, disse ao jornal.
Entenda como foi o julgamento no TCU
O julgamento do relógio de Lula no TCU havia sido iniciado em março deste ano e foi interrompido devido ao pedido de vista do ministro Walton Rodrigues, que queria mais tempo para analisar o caso.
Em maio desse ano, a área técnica do TCU divulgou parecer no qual defendeu que Lula deveria ficar com o relógio. O parecer considerou que, em 2005, ano em que Lula recebeu os presentes, a regra que obrigava o presidente da República a esperar o fim do mandato para ficar com os chamados itens personalíssimos ainda não existia.
Na tarde desta quarta-feira, o primeiro a ler seu voto foi o relator, ministro Antonio Anastasia, que não acatou a representação. Ele destacou a necessidade de “razoabilidade e da moralidade administrativa”, segundo as quais, diante do alto valor dos presentes em questão, avaliou que os relógios deveriam ser declarados de posse do Estado, de acordo com o acórdão de 2016.
No entanto, por terem sido recebidos em 2005 e pela irretroatividade do acordão de 2016, o ministro não acatou a representação, permitindo que Lula mantivesse os relógios em seu acervo pessoal. A procuradora-geral do MP junto ao TCU, Cristina Machado de Costa e Silva, também se manifestou endossando o entendimento do relator.
O segundo ministro a votar, Walton Alencar, revisor do caso e relator do acórdão de 2016, destacou a decisão unânime do plenário do Tribunal naquela ocasião. Ele afirmou que, desde então, não houve mudanças que justifiquem a adoção de um entendimento diferenciado daquele.
“A Constituição Federal é a mesma, o princípio da moralidade administrativa é o mesmo, a legislação é a mesma, só mudaram mesmo os presidentes da República”, afirmou. O ministro acatou a representação e afirmou que não só Lula deveria devolver os relógios, assim como todos os ex-presidentes deveriam incorporar presentes recebidos ao acervo da Presidência da República.
O terceiro ministro a votar, Jorge Oliveira, apresentou uma terceira proposta. Veio dele o entendimento de que não existe uma lei específica sobre presentes personalíssimos recebidos por presidentes da República. Por essa razão, ele afirma que não cabe ao TCU decidir a respeito e estabelecer uma norma.
Em seguida, o presidente do tribunal, Bruno Dantas, afirmou que, de acordo com o regulamento do órgão, diante das três propostas apresentadas, todos os ministros deveriam optar por uma delas, sendo vencedora a que obtivesse a maioria dos votos.
O ministro Marcos Bemquerer Costa seguiu a proposta do ministro Anastasia. Todos os demais, ministros – Jhonatan de Jesus, Vital do Rêgo, Aroldo Cedraz e Augusto Nardes – seguiram a decisão de Jorge Oliveira e não acataram a representação por falta de competência do TCU para decidir a respeito do caso.
Mesmo que não vincule outros órgãos do Judiciário a suas decisões, o novo entendimento do TCU não deixa de ser um referendo importante para dar peso e consistência a qualquer argumentação teórica em favor do ex-presidente.
Antônio Carlos relembra que no caso de Bolsonaro, as acusações não se restringem a manter os bens, mas que, nesse ponto, a interpretação do TCU pode ser utilizada por sua defesa em busca de uma resolução mais favorável.